quinta-feira, 21 de maio de 2015

Terceira raiz

                                                            Terceira raiz


          A atemporalidade é não somente um fator proeminente de caracterização às grandes obras, mas consequência e indício de permeabilidade às eras, mútua de integridade aos 'movimentos' quais referem o período. Em Raízes do Brasil, o caráter essencialmente ensaístico também não reduz a forma orgânica à pedantismos; forma-se uma grande orquestra de cognições fatídicas e líricas, sonante aos labores eruditos e de seus brios resguardos idílios. Ainda que aparente auto reger-se, Sérgio Buarque de Holanda ali esteve sempre com as mesmas virtuosidades de um discreto e exímio tecelão, qual a presença dá-se por notória quando evidentes se tornam as descrições qualitativas - que mais sabem compor do que destoar. Desta forma em que seguem as mais sinceras veleidades, indigno seria propor críticas que mais encargam de destruir do que compor. 
          A colonização predatória ainda é - por maior distância qual diste de um assumido plano - um processo - curiosamente autêntico a América, e enfadonho a África - de formação cultural. Tal coincidência cultural da colonização portuguesa é senão um encontro acaso, uma convergência de interesses dado ao modo pródigo com qual se administrava. Todo o desleixo português para com a colônia permitiu a instantânea absorção de valores secundários, e não seria de todo certo reafirmar a didática eurocêntrica de Camões que 'os portugueses aqui puderam converter índios em brasileiros'; talvez precisamente o inverso: 'os índios aqui puderam converter portugueses em brasileiros'. A tétrica dicotomia das relações de domínio seria um tanto imprecisa quanto à apropriação de valores, pois os maleáveis processos de identificação cultural podem de certa maneira suspender as funções sociais - cedendo à massa servil a poderosa vontade de indivíduo.
          As impessoais formalidades europeias, ávidas por eriçar planos socioeconômicos, são amplamente rejeitadas pelos ibéricos devido às proximidades com as quais se fixam os laços mercantis e de interesse. Enlaçam-se comerciantes e consumidores, farsadamente despidos de suas primeiras desígnias para a realização das mesmas. Este enlace, talvez tenha sido pioneiro do malogro damatistta ao definir o 'jeitinho brasileiro' como principal perfurador social à sociedade brasileira, ao tratar um complexo processo de aglutinação como mera atitude matreira de comunhão. Comparadamente - como que não comparáveis -, Raízes do Brasil traça um perfil etimológico de indeterminada aplicação que finda por avançar os traços passadouros de O que faz o brasil, Brasil?, mesmo que o segundo tenha sido escrito próximo ao quinquagenário do primeiro. 
         Ilustre ao expor: os portugueses precisaram anular-se durante longo tempo para afinal vencerem. Como o grão de trigo dos Evangelhos, o qual há de primeiramente morrer para poder crescer e dar frutos. E adiante por algumas páginas com Joaquim Nabuco: em nossa política e sociedade são os orfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam. Fora seus alicerces contextuais, define-se o quão atuante é toda e qualquer mortificação para o princípio de nascimento, ou seja, sem mais estratagemas poéticos, filosóficos ou teológicos, o quão necessário é a ruptura de velhas ordens para a criação de novas mais adequadas, e anterior a produção desta ainda seria preciso construir distâncias de desvencilhamento. 
          Porém o capitalismo, em seu sistema de apropriação técnica usual, induz a construção de distâncias que criam novas ordens que mais sabem dissimular do que adequar - adequam-se em prol de si mesmas! - e que são causa e consequência da esterilização das relações agora setoriais, como os novos empregadores e empregados. O sistema age como provedor da normatização mundana das relações sociais, e atua em contra fluxo às pesquisas embrionárias de identificação sociocultural, pois poderia o próprio ser considerado o reflexo de identidade sociocultural da era contemporânea. Em contrapartida, Costa e Silva ao resguardar aos variados impactos mundanos no Brasil, uma profunda e cadente influência escrava-africana, constitui uma nova interpretação que não mais perpetua a função terciária (atrás de portugueses e índios) ao negro, mas tonifica este elemento como de fácil aplicação contemporânea e ainda delineador de políticas socioeconômicas mais recentes. Atenta-se ainda que Sérgio Buarque de Holanda não considerou de toda importância a influência negra, pois ao aproximar sua pesquisa etimológica ao período seiscentista - época em que a mão de obra escrava valorizava-se por não disseminada -, a África ainda não havia moldado de maneira relevante o insipiente perfil brasileiro, cabia-lhe de fato o fatídico papel terciário. [Evidente que meu intento seja de propor recusas às fraquezas de Raízes do Brasil, justificando-as. Mas não pareço tão partidário, nem mesmo tão incoerente]. 
          Sobre este sistema de múltiplas engendrações que tramam os atuais cotidianos, o escritor uruguaio Eduardo Galeano incumbiu-se de tecer críticas ao longo de toda sua vida, enaltecendo suas progressivas consequências na América Latina. Em O livro dos Abraços, há um curioso trecho sobre toda desumanização remanescente do desenlace sistemático: Em nossas terras, os numerinhos têm melhor sorte que as pessoas. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento? 
          Ressalta-se a necessidade de diferenciação entre: burocratização e relação pessoal ao campo político-administrativo, e esterilização e relação pessoal ao campo político-social. Ambos são traços de máxima importância para construção de identidade - atuando em campos distintos -, e não se encarregam de conjurar identificações estanques, mas de conflitar paradoxalmente em modelos interfaciais. Talvez, precisamente neste fator a sociedade brasileira tenha se erigido, na ‘simples’ confluência de paradoxos culturais, e não algo meia parte. Neste caso, apoiam-se as culturas umas às outras, e mesmo a sociedade apoia-se nela mesma. Pois a capacidade de existência de paradoxos é não o conflito de formas antagônicas, mas a existência de ambas as partes bivalentes. De todo certo seria afirmar que vivemos uns nos outros, de acordo com Sérgio Buarque de Holanda, em respaldo à cordialidade pagã às relações sociais. E que desta forma – tal forma insurgente a solenidades, brasileira - estaríamos fadados a carregar os fardos históricos de nossos antepassados e ainda os nossos, dando assim toda credibilidade ao conto de Guimarães Rosa em ‘A terceira Margem do Rio’ de outro ponto de vista: há de o filho ocupar a mesma jangada em que pai houve de morar sozinho; e enfim quando se dá o momento de transpasse, de encargo de valores de pai para filho, da eminência do devir, da congênita transformação de partes antagônicas ao espaço, da terra firme dos círculos familiares para as águas fluidas da vida prática, da criação do elemento terceiro produto dos mais variados encargos; é justo o instante da fuga - o imponderável medo da entrega -, que perpetua a existência de forças bivalentes e congruentes, esta permanência de integridades caracterizada modernista e esta aglutinação caracterizada contemporânea, e que não é senão a produção do mais genuíno terceiro.

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