segunda-feira, 3 de julho de 2017

Lugar de Fala, Lugar de Escuta


Após a leitura do livro "Prisioneiras" do Drauzio Varela, fiquei impactada por muitos assuntos tratados no livro. Começo pelo que mais me chamou atenção:

Por que o narrador da história das mulheres encarceradas em um presídio feminino de São Paulo teve que ser um homem, branco e não-preso?

Essa é um tema que já apareceu nas discussões GEBianas: o lugar da fala. A trilogia do doutor Drauzio Varela sobre o sistema carcerário no Brasil (Estação Carandiru, Carcereiros e Prisioneiras), divulgada ao longo dos últimos 18 anos tem uma grande importância - inclusive sendo transposta pra outras mídias, como filme e série televisiva, e traduzida para diversos idiomas. São obras de leitura gostosa e compreensão fácil, permitindo que um tema tão "não-mainstream" tivesse um grande alcance social. Mas o que está em questão não é a importância dos livros, mas sim por uma questão de percepção: a percepção da experiência carcerária é muito diferente para quem esteve preso, para quem trabalha no sistema punitivo ou para quem nunca teve contato com este mundo. Memórias do Cárcere expressa uma percepção muito diferente sobre a prisão do que Estação Carandiru apresentou - e não se trata apenas de uma questão de estilo. Contudo, essa diferença de percepção é ainda mais sensível em Prisioneiras, ao termos um homem construindo uma narrativa sobre mulheres.

Em diversos momentos o autor demonstra curiosidade (às vezes até um tom de espanto) em relação às relações afetivas existentes entre as mulheres, apontando as diferenças em relação ao que ele viu nas instituições voltadas a presidiários. Será que teríamos um peso tão grande para as relações afetivas se a narradora do livro fosse uma mulher? E se tivesse sido prisioneira, será que não haveria um foco maior na relação com os carcereiros homens (e será que não houve nenhum relato de maus tratos de carcereiros e carcereiras sobre as prisioneiras?) do que nas relações afetivas Entre as presidiárias?

Em entrevista recentemente divulgada no site Huffpost, Lázaro Ramos aponta o seguinte (e vou transcrever, porque achei muito legal a colocação dele):

"Geralmente, quando se fala em questão racial e quando tem um não negro que não quer escutar sobre esse assunto, ele fala também de alguma dor que teve: "ah, mas eu também passo por isso", "eu também sofri isso em determinado momento", negando o assunto e negando o ouvido. Acredito que a escuta é um lugar muito importante dos não negros para entender os outros lugares. Não que ele precise anular a sua dor. As dores estão aí e elas precisam ser trabalhadas. Mas o não negro precisa entrar em contato também com a escuta. Geralmente um não negro percebe a sua branquitude quando um negro, através da sua dor ou seu incômodo, provoca algum incômodo nele. Só aí a pessoa levanta e percebe. Eu acho que isso deveria ser um trabalho diário e natural. A questão da discriminação não deve ser um problema apenas dos negros. Essa é uma questão que faz parte da construção de país, da construção das nossas humanidades, da potencialização das nossas relações políticas e culturais. Pensar na questão racial é pensar em potência, em energia criativa, em energia tecnológica, em potência cultural."

A questão do lugar de fala e do lugar da escuta é muito importante, não apenas para o debate sobre não-prisioneiros escrevendo sobre prisioneiros (e Prisioneiras), mas também para o debate sobre não-negros falando sobre negros (e que diferença de perspectiva sobre Dear White People, que vi Ainda poucos episódios, e todas as outras séries que trazem dilemas da vida universitária americana, não acham?).

Falta interpretação de texto (como diria o Sakamoto). Falta percepção. E, acima de tudo, falta empatia.

Como bem colocou Lázaro Ramos, empatia e percepção são trabalhos diários e naturais, um exercício cotidiano para percebermos nosso lugar de fala, quando é o momento da escuta e quais são os pré-conceitos que precisam ser desconstruídos - e construídos, conforme o caso.

A leitura de Prisioneiras me colocou essa discussão: do lugar de fala de um médico Branco, não-prisioneiro, falando sobre a vida de Prisioneiras. Mas também me despertou a reflexão sobre o lugar da escuta. A minha percepção sobre as narrativas de mulheres que vieram de classes sociais, vivências e valores muito diferentes dos meus e acabaram sendo presas (e quantas não cometeram mais Crimes e por mais tempo do que aquelas condenadas, mas estão em casa, seja pelo indulto da prisão domiciliar [sim, estou falando da Adriana Ancelmo], seja por questões da burocracia penal [sim, estou falando da Claudia Cunha]) é muito diferente da percepção de quem já passou/trabalha pelo sistema penal. Me impressionou muito a diferença no número de visitas Entre encarcerados e encarceradas - e sobre como o julgamento moral das famílias é muito mais duro para mulheres do que para homens - mas será que eu ficaria tão espantada se meu lugar de escuta seria outro?

A leitura de Prisioneiras me trouxe muito forte a reflexão do lugar de fala e do lugar de escuta, e adoraria escutar (e falar, rs) com os demais colegas GEBianos sobre este tema. Mas também me chamou muito a atenção os seguintes temas:

  • A importância das facções na organização da prisão feminina;
  • A prisao como local de liberdade para q as mulheres realizem suas fantasias sexuais;
  • Como a política de combate às drogas foi mais cruel com as mulheres; 
  • As facções criminosas como uma "ideologia do crime" mais eficiente para manter a paz nas cadeias e nas comunidades do que o Estado;
  • A prisão de uma filha ou da mãe envergonhe mais do que a de um filho ou do pai, já que a expectativa da sociedade é ver as mulheres “no seu lugar”, obedientes e recatadas. O preconceito sexual faz parte desse contexto. O bandido pode ser considerado mau-caráter, desalmado, perverso, mas ninguém questiona sua vida sexual. A mulher, além dos mesmos rótulos, recebe o de libertina - muito pior nessas comunidades (Posfácio)


Essas foram as questões que mais me chamaram atenção na leitura de Prisioneiras e gostaria de ouvir esses temas debatidos no GEB hoje. Esses foram os temas que - do meu lugar de escuta - mais me chamaram a atenção neste livro.

Nuance e Militância - Cara Gente Branca

O certo seria escrever um textão por episódio de Cara Gente Branca. Mas vou escrever só um textinho mesmo.

O grande mérito dessa série, comparada ao acumulado de produções anteriores sobre o tema, na minha opinião, é abordar as nuances. É comum o racismo aparecer nas artes de maneira romantizada, com situações claras de opressão. Mas em Cara Gente Branca as nuances e sutilezas, tanto do racismo quanto dos conflitos e suas possíveis soluções, são a parte principal do enredo. Elas aparecem em outras obras, mas talvez não tão problematizadas quanto nesta. As diferenças de abordagem e de pontos de vista mesmo sobre a questão racial dentro do movimento e entre suas subdivisões; a questão do amigo/ namorado branco e sua posição; o humor; as interseções da questão racial com gênero e sexualidade. Até mesmo a questão do financiamento das universidades nos EUA é pincelada. Isso tudo é mostrado a partir de situações articulando conflitos individuais e coletivos/sociais. É de fato uma série genial. 

Me chamou atenção o olhar que é dirigido ao namorado branco de Samantha White. Quando ele chega para acompanhá-la numa reunião, ele recebe olhares reprovadores, também dirigidos a ela, por namorar um branco. Isso vira uma questão. Será que todo o branco representa todo o racismo?


Mas o que me salta aos olhos, e eu acho que talvez seja um dos pontos de onde nossa discussão pode partir, é a especificidade da questão racial nos EUA e sua comparabilidade com o racismo à brasileira. O Risério já tinha apontado algo assim, como de certa forma alguns setores brasileiros se baseiam na noção racial americana da “gota de sangue”. E que isto seria artificial e “colonizado” no Brasil, já que aqui a gente trabalha mais com miscigenação. O racismo não é tudo ou nada, segue gradações de acordo com a tonalidade da pele. Outro ponto que merece destaque é que nos EUA a população negra não chega a 15%, e no Brasil ultrapassa 50%. Ainda assim, que universidade brasileira teria negros em número suficiente para criar uma comunidade como a casa onde vivem os personagens principais da série? Será que esse modelo de comunidade se aplica no Brasil, onde a mistura costuma ser o caminho? Será que a mistura ainda é o caminho escolhido pelos brasileiros? A hipótese da miscigenação pode ter perdido força desde Gilberto Freyre; e o racismo tem aparecido com mais força conforme os avanços sociais se consolidaram e, agora, são ameaçados. Na minha opinião, ainda não vivemos o período mais acirrado do racismo brasileiro. Quando o negro está na senzala, longe, é fácil não enxergar o próprio racismo. A distância tampona o conflito e o preconceito. Ele aparece mais quando o negro chega na faculdade, no avião, quando o médico ou o professor universitário são negros.

Da Destruição da Cidadania

De início torci o nariz para a forma um tanto debochada com que o autor se refere a determinadas práticas das presas, como as orações e louvores em voz alta. Depois essa resistência minha foi cedendo, para dar lugar a uma grande admiração. Dráuzio se coloca. Apesar de dizer no epílogo que é avesso a religiões e ideologias, mostra-se extremamente humano, confessando alguns erros e tropeços e, principalmente, colocando as próprias opiniões.

Logo no começo, quando fala da hierarquia e organização dos presídios, e depois quando descreve os “tipos”, salta aos olhos o machismo — não o do autor, que nem vi aparecer tanto, mas do próprio esquema de poder lá dentro. Mesmo num presídio feminino, o machismo se reproduz intensamente. De cara, com o comando masculino da facção que organiza a vida das presas. Talvez isso não seja apenas reprodução de machismo, mas machismo puro e simples. O impressionante de verdade é como as classificações das relações homossexuais seguem padrões machistas e opressores, que determinam as interações sociais dentro do presídio. Quanto mais comportamento macho tem a mulher, mais respeitada. Em paralelo, corre a homofobia no organograma do PCC, que não admite que seus integrantes tenham histórico de comportamento homossexual.

Coirmão do machismo, o autoritarismo é impressionante, como forma de manutenção da ordem. A passagem em que Varella compara o código penal do PCC com o do Estado organizado mostra como o autoritarismo é eficaz em manter a ordem em ambientes fechados, ao mesmo tempo em que a celeridade dos julgamentos e execuções admite erros como parte do processo.

Impossível não articular “Prisioneiras” com “Vigiar e Punir”, de Foucault. Essa articulação se impõe em uma passagem que diz “só um irmão virou cidadão”, ou algo parecido. Essa frase é dita por uma presa que fala que toda a sua família, de uma forma ou de outra, se envolveu com o crime. A frase é emblemática no sentido de colocar claramente que o preso deixa de ser cidadão. A punição deixa de ser relacionada ao ato, apesar de assim ser colocada nos códigos, e passa a ser biográfica (vide Foucault). A passagem pela prisão passa a ser definidora de uma vida ligada ao crime, à exclusão da cidadania. Do lado de fora, a vida é uma merda, tanto antes quanto depois de ser presa. Dentro pode haver alguma organização se as leis severas do comando forem respeitadas.

Além de machismo e autoritarismo, para completar a tríade na organização do comando, entra o capitalismo. Vários pontos-chave no organograma e processos de trabalho do PCC estão em absoluta consonância com o caminho do verdadeiro livre mercado. O controle dos processos pela força, a tendência ao monopólio, formação de carteis e destruição da concorrência. Dráuzio deixa claro que mesmo o que pode ser enxergado como uma contribuição benéfica da instalação do comando do PCC — como a proibição do crack nos presídios e da execução de presos — são na verdade decorrentes de decisões baseadas em estratégias e táticas visando à preservação e ampliação do negócio. Assim como a função nominal do presídio de proteção da sociedade e recuperação do cidadão encobrem vingança e destruição da cidadania, o lema livre concorrência e equilíbrio do mercado escondem vantagens injustas e busca incessante do lucro e do monopólio.

A facção organiza a vida dentro do presídio. O Estado é incapaz de fazê-lo, ou simplesmente não quer. O presídio é o resultado não de um projeto de reintegração das presas ou de proteção da sociedade, mas um dispositivo de vingança punitiva. Num dos últimos capítulos de Vigiar e Punir, Foucault fala sobre o fato de a prisão já ter nascido necessitando de reforma. Desde que nasceu a primeira prisão se fala em reformular o modelo. A partir daí, muito se fala na ineficácia dos presídios e cadeias em geral, mas temos de pensar, como propõe Michel, o Foucault, onde está a verdadeira eficácia das prisões.

A prisão é eficaz em destruir pobres e negros.
A prisão é eficaz em produzir mais criminosos e mais graves.
A prisão perpetua a pobreza e as privações por que passam as famílias pobres.
A prisão encarna o desejo de vingança do brasileiro, criando mais destruição do que a simples morte, pois ela se dissemina pelas gerações.
A prisão, entendida como prolongamento do judiciário, funciona como mais um fator de exclusão do pobre e proteção do rico, pois os códigos — penal, de processo, criminal, implícitos ou explícitos — contêm, também desde o nascimento, uma pletora de detalhes e brechas sujeitos a interpretações diversas a serem interpretadas por juízes de maneiras diferentes a partir de quanto se pode pagar por um bom advogado, da cor da pele e da origem social do acusado ou condenado (papeis que podem já vir fundidos em muitos casos). Ainda em Vigiar e Punir, Foucault evidencia também a eficácia da prisão em valorizar a pequena delinquência, encobrindo a grande delinquência, que pode ser representada pela própria estrutura excludente da sociedade, das leis injustas e de seu cumprimento e interpretações ainda mais injustos, do controle do poder pelo capital. A realidade mostra isso quando um helicóptero com meia tonelada de maconha fica sem dono, e um zé-povinho pego uma qualquer quantidade pode ser considerado traficante e preso, com as consequências biográficas que a experiência no cárcere implica.

A obra gebiana à qual a comparação com Prisioneiras aparece mais diretamente é “O Dono do Morro”, de Misha Glenny. A favela, assim como o presídio, está sujeita aos desmandos de uma organização de poder “paralelo”. A diferença é que no ambiente fechado do presídio o controle é forte o suficiente para impedir a entrada de crack. Pode ser que em algumas favelas haja proibição ao crack eficaz, mas não sei.

Comparando os autores, o relato jornalístico e cuidadosamente distante de Glenny ao descrever a história de Nem, mesmo com seus muitos adjetivos, contrasta com a maneira pessoal com que Dráuzio relata sua própria experiência como médico no meio das presas. Varella não só descreve as situações, mas conta suas mancadas, erros de juízo e, acima de tudo, opiniões. Diferentemente de Glenny, Dráuzio critica frontalmente a política de guerra às drogas, com argumentos fortes e colocados de maneira muito compreensível.

No epílogo de Prisioneiras, o segmento que poderíamos chamar de mais autoral do livro, Dráuzio coloca a própria história, mesclando-a com uma síntese absolutamente clara do que se sabe sobre os fatores de risco ligados ao aumento da criminalidade e da futilidade das medidas tomadas pelo Estado até o momento para lidar com o problema, não só da violência, mas também do aumento da população encarcerada. O epílogo é a pérola do livro. Além de problematizar as situações sociais, econômicas e culturais, no plano macro, Dráuzio se coloca no particular de sua condição de médico, e mesmo na singularidade de sua vivência com cada presa, ouvindo as histórias e entendendo, ou tentando entender como estabelecer algum contato de qualidade com aquelas pessoas para exercer algum poder de cura, melhora ou alívio de sofrimento.