Durante a leitura do livro
“Retrato do Brasil” de Paulo Prado, me veio uma lembrança do tempo em que eu
morava em Teresina. Provavelmente por conta de alguns trechos sobre os
bandeirantes. Nessa memória, recordei o caminho que pegava para ir ao colégio que
passava por um prédio de esquina que ficava numa das principais avenidas da
cidade. O prédio era uma escola (inclusive, lugar onde minha avó tinha dado
aula durante alguns anos). Lembro que na parede branca do muro da escola tinha
o nome do colégio em letra azul e em caixa alta. Chamava-se Unidade Escolar
Domingos Jorge Velho. Só bem mais tarde fui saber quem esse homem tinha sido e
que, dentre outras coisas, havia comandado a destruição do Quilombo dos
Palmares (um dos mais emblemáticos refúgios do período de escravidão). Paulo
Prado, homem branco, milionário, vinha de uma influente família paulista de
cafeicultores. No livro transparece claramente a sua arrogância, seu racismo,
machismo, elitismo, preconceito. Seu desgosto por se saber parte de um país formado
por negros e índios. Seu remorso por ter falhado o lusitano, “tinha faltado a Portugal a verdadeira
compreensão histórica e econômica da sua missão metropolitana”. Uma faceta
interessante do livro é a sua grande honestidade ao retratar claramente a forma
como aqueles que estão no seu lugar de fala pensaram e, infelizmente, ainda
pensam o Brasil. De certa forma, existe uma relação relevante entre essa escola e as ideias de Paulo Prado.
O livro mostra que antes da
colonização do Brasil, Portugal se deteriorava. Miséria, fraqueza, imoralidade
reinavam. A sociedade vivia em íntima mistura com os mouros (povos do norte da
África que praticavam o islamismo) e negros. Uns alforriados, outros
escravizados. A escravidão minava o organismo social em toda a parte onde existiu.
O horror e degradação do cativeiro fez desaparecer o heroico português do
século XV (com todas as suas virtudes). O homem que colonizou o Brasil não era
mais do que uma corruptela do branco europeu lusitano heroico de outrora.
Paira sob Paulo Prado o
espectro de Conde Gobineau (teórico do racismo). O principal na sua tese
racista é a concepção de que a escravidão estragava a sociedade. Não porque o
ato em si fosse abominável, mas pelo fato dela permitir o contato do negro com
o homem branco. Paulo Prado escreve: “em
represália aos horrores da escravidão (o negro), perturbou e envenenou a
formação da nacionalidade, não tanto pela mescla de seu sangue como pelo
relaxamento dos costumes e pela dissolução do caráter social, de conseqüências
ainda incalculáveis”. Embora admita
que as raças sejam iguais em capacidade, reafirma a questão dos problemas que a
mestiçagem traz e levanta a possibilidade dessa mistura contribuir para a
fraqueza, doença, vício, preguiça. Ao que parece o grande mal é ter o homem
negro se misturado ao branco. Enquanto cita cientistas americanos que dizem que
nos Estados Unidos o problema da mestiçagem não tem solução, a não ser que os
negros sejam esterilizados, no Brasil esse mal é irremediável.
No capítulo sobre a luxúria,
Prado escreve que os primeiros homens branco que vieram ao Brasil não eram lá
os mais santos. Eram exilados, náufragos, desertores, criminosos. Só vinham ao
Brasil por vontade própria o aventureiro miserável resolvido a tudo, o
desesperado. Chegando ao Brasil, se entregaram aos prazeres da luxúria. Mas a
culpa da depravação do português deveu-se ao clima, a falta de mulheres
brancas, a sensualidade dos trópicos, as índias, que segundo ele eram de
submissão fácil, e que segundo relatos “Procurava e importunava os homens
brancos nas redes em que dormiam” e posteriormente “a passividade infantil da
negra africana, que veio facilitar e desenvolver a superexcitação erótica em
que vivia o conquistador e povoador”. Disso tudo se desenrola todos os males da
nossa sociedade até hoje.
Quanto a Cobiça, Paulo Prado
destaca a insaciável ganância e loucura pelo enriquecimento rápido que dominava
os homens da época. Por toda parte o aventureiro corria atrás da prata do ouro
e das pedras preciosas, que durante quase dois séculos não foram senão ilusões
e desenganos. Só nas últimas dezenas do século XVII se desvendaram ao mundo as
minas riquíssimas das Gerais que forneceram riquezas fantásticas. Porém o
século XVIII, apesar de tanta riqueza, foi o século do martírio do Brasil
justamente por causa ouro. Guerra Civil. Fome (por conta do abandono da cultura
e da criação). Para Portugal, o enriquecimento com as minas brasileiras
significou desperdício e esbanjamento. Nem o Estado melhorou e nem aumentou a
fortuna pública, tudo por conta da estúpida administração portuguesa nesse
século XVIII. Tanto que quando D. João V morreu, foi preciso pedir dinheiro
emprestado para que enterro fosse pago. Quiseram viver sem trabalhar.
Prado conclui que, o homem sem
a religiosidade, sem a cultura intelectual ou artística somado aos fatores da
cobiça, que absorvia toda a energia psíquica do colono aventureiro (por ser uma
paixão eternamente insatisfeita) mais a luxuria e a mestiçagem tomou o
brasileiro pela tristeza que se estende por todo país. A tristeza que leva ao enfraquecimento, a
fadiga, insensibilidade, abatimento físico e moral e, ainda, a preguiça.
Dito isso, cabe refletir como
devemos levar em conta o retrato de um país sem considerar ou menosprezar seu
principal elemento formador. Não que a fala de Paulo Prado seja completamente
nula, mas como Alberto da Costa e Silva disse em seu livro “Um rio chamado
atlântico” não se pode estudar a história do Brasil sem estudar a história da África.
O Brasil se formou na escravidão. “Foi o
processo mais longo e mais importante da nossa história, de onde compramos o
grosso dos nossos antepassados. Do outro lado do oceano é que principiam outras
histórias com as quais compomos a história do brasileiro. Não numa África
mítica, mas em cada uma das nações que tão diversamente nela vivem e possuem
passado. Só conhecendo como foram, ao longo dos séculos em que tiveram parte de
sua gente transplantada para as Américas, é que poderemos contar coerentemente
por que e como no Brasil assumiram novas identidades e acabaram por se misturar
entre si, de maneira quase impossível de desenredar”.
Em 1870 eram imensos os
espaços vazios no conhecimento que a Europa tinha da África. O Europeu pensava
a África como um continente vazio que pedia ocupação. Achavam-se detentores de
uma missão civilizadora. Tinha a superstição da África como um lugar primitivo.
Nada mais do que racismo e arrogância cultural. Tudo que não é padrão europeu é
selvagem ou bárbaro. Os britânicos sob o pretexto de acabar com a ignomínia do
comércio de negros, iniciou a transformação da África em colônia Europeia.
Humilharam e depuseram chefes. Destruíram o monopólio comercial em que muitos
fundavam o seu poder.
Sir Hugh Trevor-Hoper afirmou em 1963 não haver uma
história da África, mas tão somente a história dos europeus no continente,
porque o resto era escuridão, e a escuridão não é matéria de história. A
mudança dessa visão começa a acontecer no século XX com a figura do
administrador. O administrador colonial tinha, entre suas tarefas, a de
produzir relatórios sobre as gentes de quem cobrava impostos. Muito desses
funcionários imperiais deram-se a tarefa com zelo e alguns mais que zelo,
paixão. Alguns desses funcionários já chegaram à África com curiosidade e
erudição. Para exercer com eficiência o
ofício de agente político, tinha de aprender o idioma, conhecer crenças,
familiarizar-se com estruturas sociais e os costumes dos povos que
administravam. O que era exigido desses funcionários acabou por transformar
alguns poucos em antropólogos, linguistas, geógrafos e historiadores. Por sua
vez, o impacto da presença europeia e a resistência à ocupação colonial influenciou
o interesse pelo próprio passado. Assim, embora sendo antiga a ampla
bibliografia histórica sobre a África, a história da África é uma nova
disciplina. Só há algumas décadas se incorporou ao currículo das universidades,
tendo a historiografia africana como período áureo a partir da segunda Guerra Mundial.
O
ponto de vista em si de Paulo Prado é inócuo, qualquer indivíduo tem o direito
de escrever sobre o que quiser. O verdadeiro problema é o lugar dessa fala.
Paulo Prado representa uma poderosa estrutura de poder e a sua fala tem grande
impacto. Renegar, diminuir, culpar e desumanizar o negro, o índio e o mestiço
vai além do cruel. É criminoso. Da gênese desse tipo de pensamento surgem tragédias
que tem o racismo, desigualdade e a segregação como pano de fundo. Desde a criminalização
do porte de armas brancas e redução da maioridade penal aos vários casos como
Amarildo, Cláudia, DG, Eduardo, mortos arbitrariamente pela polícia (porque
eram pobres, negros ou favelados).
Na minha última visita a
Teresina, ainda esse ano. Descobri que o colégio público Unidade Escolar
Domingo Jorge Velho não existe mais. Decorrente de um projeto de lei, em 2007,
a escola se transformou no Memorial Zumbi dos Palmares e hoje é um espaço de
difusão e divulgação da cultura negra. O empoderamento proporcionado pela
memória e a identidade provocam mudanças. Longe do ideal, mas ideias, posturas
e pensamento conservadores de outros tempos já não se reproduzem tão facilmente
hoje em dia. Não tenho resposta sobre qual será o futuro disso, mas me anima
pensar que obras como a de Paulo Prado terão cada vez mais rejeição.
Reproduzo abaixo o último
parágrafo do capítulo intitulado “Ser africano no Brasil dos séculos XVIII e
XIX” do livro “Um rio chamado atlântico” de Alberto da Costa e Silva: “O Africano no Brasil, o livre, o liberto,
mas, sobretudo o escravo, foi um elemento altamente civilizador, como já
pensava um dos grandes políticos brasileiro do século XIX, Bernardo Pereira de
Vasconcelos. Bernardo Pereira de Vasconcelos disse alto no Senado, em 1843,
esta frase em tudo verdadeira:“ A África civiliza a América.” Eu a tenho na
memória, ao voltar-me para o africano escravizado que vivia em terras
brasileiras nos séculos XVIII ou XIX e ao perguntar-lhe como é que gostaria de
ser lembrado por nós, brasileiros de hoje. Creio que gostaria que dele não
esquecêssemos a criatividade com que se deu a uma terra que logo fez sua,
ocupou com seu trabalho e encharcou de beleza. Seríamos não só injustos e
ingratos, mas também não merecedores de seu exílio, de sua humilhação e de seu
sofrimento, se olvidássemos o papel enorme e decisivo do escravo na construção
do Brasil. Se alguém merece ser herói nacional deste país, este alguém é ele.”