quinta-feira, 11 de junho de 2015

Das índias - Em Paulo Prado, Retrato do Brasil

vindos além mar, esses homens tão peludos parecem estar perdidos de si mesmos, não seguem senão suas vontades mais toscas que desviam de sua gloriosa missão. mas que paixões seriam maiores do que a nossa gostosura de indiada? que vale o ouro nesta terra de mangas tão maduras? não são estes os melhores homens para dominar esta terra, não parecem estar dispostos a abrir nosso involuto mistério ao qual nem suspeitamos. mas preferimo-os, antes estes perdidos que se acham às longas distâncias do que esses índios que mal caçam sem esquecer o caminho da volta. as moças aqui sequer aprendem a servir, só esse homem, francamente insidioso, que nos arrebata o amor de querê-los servir também com franca servidão. como são amáveis as plumas tecidas às almofadas que lhes servem de uniformes anterior as pinturas, são mais vivos os pássaros em que seu peito se eriçam as penas, que força o corpo franzino demonstra ao mero segurar de punhal. ainda que nossa devoção lhes pregue ocupação, parecem querer fugir. que levem os homens, esses brutos que se esgarçam de coceiras como cachorros pelados, matando-os se assim quiserem, que façam o que lhes servir de bom agrado. que aproveitem também o virgem de nossas moças, e lhes ensinem o muito de compaixão que nos tem ensinado. somos gratos a tudo, mas há homens de outra raça – de variada cor - que nos tratam mal, alguns até parecem  pertencer a indiada. como engraçam ao nosso martírio no breve exalar de fúria, são tão obstinados quanto a paixão daqueles que nos amam. são belos de tão feios, e de admirável força quanto a tudo. estes são os que tanto esperávamos.  feios mesmo só os nossos que conosco vivem,  e que muito estão aprendendo.


17/08/1539

Outra História



 Durante a leitura do livro “Retrato do Brasil” de Paulo Prado, me veio uma lembrança do tempo em que eu morava em Teresina. Provavelmente por conta de alguns trechos sobre os bandeirantes. Nessa memória, recordei o caminho que pegava para ir ao colégio que passava por um prédio de esquina que ficava numa das principais avenidas da cidade. O prédio era uma escola (inclusive, lugar onde minha avó tinha dado aula durante alguns anos). Lembro que na parede branca do muro da escola tinha o nome do colégio em letra azul e em caixa alta. Chamava-se Unidade Escolar Domingos Jorge Velho. Só bem mais tarde fui saber quem esse homem tinha sido e que, dentre outras coisas, havia comandado a destruição do Quilombo dos Palmares (um dos mais emblemáticos refúgios do período de escravidão). Paulo Prado, homem branco, milionário, vinha de uma influente família paulista de cafeicultores. No livro transparece claramente a sua arrogância, seu racismo, machismo, elitismo, preconceito. Seu desgosto por se saber parte de um país formado por negros e índios. Seu remorso por ter falhado o lusitano, “tinha faltado a Portugal a verdadeira compreensão histórica e econômica da sua missão metropolitana”. Uma faceta interessante do livro é a sua grande honestidade ao retratar claramente a forma como aqueles que estão no seu lugar de fala pensaram e, infelizmente, ainda pensam o Brasil. De certa forma, existe uma relação relevante entre essa escola e as ideias de Paulo Prado.
O livro mostra que antes da colonização do Brasil, Portugal se deteriorava. Miséria, fraqueza, imoralidade reinavam. A sociedade vivia em íntima mistura com os mouros (povos do norte da África que praticavam o islamismo) e negros. Uns alforriados, outros escravizados. A escravidão minava o organismo social em toda a parte onde existiu. O horror e degradação do cativeiro fez desaparecer o heroico português do século XV (com todas as suas virtudes). O homem que colonizou o Brasil não era mais do que uma corruptela do branco europeu lusitano heroico de outrora.
Paira sob Paulo Prado o espectro de Conde Gobineau (teórico do racismo). O principal na sua tese racista é a concepção de que a escravidão estragava a sociedade. Não porque o ato em si fosse abominável, mas pelo fato dela permitir o contato do negro com o homem branco. Paulo Prado escreve: “em represália aos horrores da escravidão (o negro), perturbou e envenenou a formação da nacionalidade, não tanto pela mescla de seu sangue como pelo relaxamento dos costumes e pela dissolução do caráter social, de conseqüências ainda incalculáveis”.  Embora admita que as raças sejam iguais em capacidade, reafirma a questão dos problemas que a mestiçagem traz e levanta a possibilidade dessa mistura contribuir para a fraqueza, doença, vício, preguiça. Ao que parece o grande mal é ter o homem negro se misturado ao branco. Enquanto cita cientistas americanos que dizem que nos Estados Unidos o problema da mestiçagem não tem solução, a não ser que os negros sejam esterilizados, no Brasil esse mal é irremediável.
No capítulo sobre a luxúria, Prado escreve que os primeiros homens branco que vieram ao Brasil não eram lá os mais santos. Eram exilados, náufragos, desertores, criminosos. Só vinham ao Brasil por vontade própria o aventureiro miserável resolvido a tudo, o desesperado. Chegando ao Brasil, se entregaram aos prazeres da luxúria. Mas a culpa da depravação do português deveu-se ao clima, a falta de mulheres brancas, a sensualidade dos trópicos, as índias, que segundo ele eram de submissão fácil, e que segundo relatos “Procurava e importunava os homens brancos nas redes em que dormiam” e posteriormente “a passividade infantil da negra africana, que veio facilitar e desenvolver a superexcitação erótica em que vivia o conquistador e povoador”. Disso tudo se desenrola todos os males da nossa sociedade até hoje.
Quanto a Cobiça, Paulo Prado destaca a insaciável ganância e loucura pelo enriquecimento rápido que dominava os homens da época. Por toda parte o aventureiro corria atrás da prata do ouro e das pedras preciosas, que durante quase dois séculos não foram senão ilusões e desenganos. Só nas últimas dezenas do século XVII se desvendaram ao mundo as minas riquíssimas das Gerais que forneceram riquezas fantásticas. Porém o século XVIII, apesar de tanta riqueza, foi o século do martírio do Brasil justamente por causa ouro. Guerra Civil. Fome (por conta do abandono da cultura e da criação). Para Portugal, o enriquecimento com as minas brasileiras significou desperdício e esbanjamento. Nem o Estado melhorou e nem aumentou a fortuna pública, tudo por conta da estúpida administração portuguesa nesse século XVIII. Tanto que quando D. João V morreu, foi preciso pedir dinheiro emprestado para que enterro fosse pago. Quiseram viver sem trabalhar.
Prado conclui que, o homem sem a religiosidade, sem a cultura intelectual ou artística somado aos fatores da cobiça, que absorvia toda a energia psíquica do colono aventureiro (por ser uma paixão eternamente insatisfeita) mais a luxuria e a mestiçagem tomou o brasileiro pela tristeza que se estende por todo país.  A tristeza que leva ao enfraquecimento, a fadiga, insensibilidade, abatimento físico e moral e, ainda, a preguiça.
Dito isso, cabe refletir como devemos levar em conta o retrato de um país sem considerar ou menosprezar seu principal elemento formador. Não que a fala de Paulo Prado seja completamente nula, mas como Alberto da Costa e Silva disse em seu livro “Um rio chamado atlântico” não se pode estudar a história do Brasil sem estudar a história da África. O Brasil se formou na escravidão. “Foi o processo mais longo e mais importante da nossa história, de onde compramos o grosso dos nossos antepassados. Do outro lado do oceano é que principiam outras histórias com as quais compomos a história do brasileiro. Não numa África mítica, mas em cada uma das nações que tão diversamente nela vivem e possuem passado. Só conhecendo como foram, ao longo dos séculos em que tiveram parte de sua gente transplantada para as Américas, é que poderemos contar coerentemente por que e como no Brasil assumiram novas identidades e acabaram por se misturar entre si, de maneira quase impossível de desenredar”.
Em 1870 eram imensos os espaços vazios no conhecimento que a Europa tinha da África. O Europeu pensava a África como um continente vazio que pedia ocupação. Achavam-se detentores de uma missão civilizadora. Tinha a superstição da África como um lugar primitivo. Nada mais do que racismo e arrogância cultural. Tudo que não é padrão europeu é selvagem ou bárbaro. Os britânicos sob o pretexto de acabar com a ignomínia do comércio de negros, iniciou a transformação da África em colônia Europeia. Humilharam e depuseram chefes. Destruíram o monopólio comercial em que muitos fundavam o seu poder.
Sir Hugh Trevor-Hoper afirmou em 1963 não haver uma história da África, mas tão somente a história dos europeus no continente, porque o resto era escuridão, e a escuridão não é matéria de história. A mudança dessa visão começa a acontecer no século XX com a figura do administrador. O administrador colonial tinha, entre suas tarefas, a de produzir relatórios sobre as gentes de quem cobrava impostos. Muito desses funcionários imperiais deram-se a tarefa com zelo e alguns mais que zelo, paixão. Alguns desses funcionários já chegaram à África com curiosidade e erudição.  Para exercer com eficiência o ofício de agente político, tinha de aprender o idioma, conhecer crenças, familiarizar-se com estruturas sociais e os costumes dos povos que administravam. O que era exigido desses funcionários acabou por transformar alguns poucos em antropólogos, linguistas, geógrafos e historiadores. Por sua vez, o impacto da presença europeia e a resistência à ocupação colonial influenciou o interesse pelo próprio passado. Assim, embora sendo antiga a ampla bibliografia histórica sobre a África, a história da África é uma nova disciplina. Só há algumas décadas se incorporou ao currículo das universidades, tendo a historiografia africana como período áureo a partir da segunda Guerra Mundial.
                O ponto de vista em si de Paulo Prado é inócuo, qualquer indivíduo tem o direito de escrever sobre o que quiser. O verdadeiro problema é o lugar dessa fala. Paulo Prado representa uma poderosa estrutura de poder e a sua fala tem grande impacto. Renegar, diminuir, culpar e desumanizar o negro, o índio e o mestiço vai além do cruel. É criminoso. Da gênese desse tipo de pensamento surgem tragédias que tem o racismo, desigualdade e a segregação como pano de fundo. Desde a criminalização do porte de armas brancas e redução da maioridade penal aos vários casos como Amarildo, Cláudia, DG, Eduardo, mortos arbitrariamente pela polícia (porque eram pobres, negros ou favelados).
Na minha última visita a Teresina, ainda esse ano. Descobri que o colégio público Unidade Escolar Domingo Jorge Velho não existe mais. Decorrente de um projeto de lei, em 2007, a escola se transformou no Memorial Zumbi dos Palmares e hoje é um espaço de difusão e divulgação da cultura negra. O empoderamento proporcionado pela memória e a identidade provocam mudanças. Longe do ideal, mas ideias, posturas e pensamento conservadores de outros tempos já não se reproduzem tão facilmente hoje em dia. Não tenho resposta sobre qual será o futuro disso, mas me anima pensar que obras como a de Paulo Prado terão cada vez mais rejeição.
Reproduzo abaixo o último parágrafo do capítulo intitulado “Ser africano no Brasil dos séculos XVIII e XIX” do livro “Um rio chamado atlântico” de Alberto da Costa e Silva: “O Africano no Brasil, o livre, o liberto, mas, sobretudo o escravo, foi um elemento altamente civilizador, como já pensava um dos grandes políticos brasileiro do século XIX, Bernardo Pereira de Vasconcelos. Bernardo Pereira de Vasconcelos disse alto no Senado, em 1843, esta frase em tudo verdadeira:“ A África civiliza a América.” Eu a tenho na memória, ao voltar-me para o africano escravizado que vivia em terras brasileiras nos séculos XVIII ou XIX e ao perguntar-lhe como é que gostaria de ser lembrado por nós, brasileiros de hoje. Creio que gostaria que dele não esquecêssemos a criatividade com que se deu a uma terra que logo fez sua, ocupou com seu trabalho e encharcou de beleza. Seríamos não só injustos e ingratos, mas também não merecedores de seu exílio, de sua humilhação e de seu sofrimento, se olvidássemos o papel enorme e decisivo do escravo na construção do Brasil. Se alguém merece ser herói nacional deste país, este alguém é ele.”

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Paulo Prado escreve sobre a formação do Brasil sem romantismo, atiçando o leitor ao citar de forma direta e indireta os pecados capitais.

Ao dar início a Era dos Descobrimentos o Brasil é (sem querer) descoberto, mas será por meio da luxúria (prazeres carnais) e da cobiça (ambição de riquezas) que o Brasil será formado, segundo o autor.

A corrida do ouro foi um fato. Que culpa o colonizador teve sobre isso? Paulo Prado fala com “sangue nos olhos” dos portugueses e a forma da colonização “Por esse povo já gafado do germe de decadência começou a ser colonizado o Brasil” (pag. 95).

Acredito, contudo, que o mesmo erra quando não faz contar no texto que as mulheres (seja índia, negra africana ou até mesmo a órfã branca portuguesa) sofrem do mesmo problema: a exploração pelo homem. A fala simplista da sensualidade da mulher, e não da perversão do homem, faz com que o autor foque a formação brasileira em um tema bastante controverso.

O autor cruza a questão sexual com tristeza. Mas se o Brasil, dentro dos parâmetros dele, tivesse se desenvolvido como os americanos? Ligaria a questão sexual ao orgasmo e a alegria? Além do mais, a característica da sensualidade não é privilégio único do Brasil e sim dos latinos. A relação da raça triste que não tem sua própria identidade, não faz sentido depois da Coleção História do Brasil Nação e do texto lido no grupo do Alberto da Costa e Silva.

Mistura o conceito de romantismo, e do que ele significou para o mundo, com a carta de Joaquim da Maia e nossos primeiros sinais de independência. Mas pode a independência não ser romântica? O autor problematiza, quando sugere que o romantismo cega a verdadeira realidade social. E cita, mais uma vez, que a mistura da raça é o que nos faz perder a força.

Para encerrar, Paulo Prado escreve (podemos sentir a ira dele) sobre o que ainda (naquele tempo e até hoje), ameaça o desenvolvimento do país e, como se fossemos um povo ignorante e preguiçoso, não levantaríamos bandeira alguma sobre o que pairava no mundo daquele tempo (ou será que não foi levantada a bandeira que ele queria que o Brasil levantasse?).

O autor também demostra em outra parte do texto um ar ignorante (e de época) sobre o não conflito de raças no Brasil (pag. 130) e de possíveis doenças oriundas da mistura das raças (pag. 132).
De forma geral, o texto é bem provocativo e, mesmo que possamos discordar facilmente de vários pontos indicados pelo autor, não podemos deixar de concordar que as questões por ele colocadas, fazem algum sentido na nossa formação.


Por fim, uma raça triste sim (séculos de exploração), sensual sim (séculos de exploração), romântica sim (séculos de exploração), contudo, por tudo isso, se forma um povo colorido, festeiro e sonhador, que faz com que ainda estejamos formando o que somos e o que desejamos ser, quase 100 anos depois de Paulo Prado.


Retrato Impressionista

De forma geral, pode-se dizer que é um livro com muitos adjetivos, e a quase totalidade deles pouco elogiosos no que se refere ao nosso país, e principalmente ao povo. Tentou passar uma mensagem de otimismo no fim, com o post scriptum, mas falhou. Não desenvolve ali o que seriam a revolução ou a guerra que propõe como solução. O que mais me incomodou foi o caráter biográfico e determinista dos juízos produzidos por PP. O país está fadado ao fracasso porque seu povo foi constituído desta maneira.  
PP apresenta uma tese sobre “por que esse país não vai pra frente.” A diferença é que uma  pessoa sem seu berço diria “é porque ninguém tem deus no coração”, ou “porque não matou esses safados todos quando foram presos pela primeira vez”, ou “porque o voto é obrigatório”, ou “por causa dos comunistas”, "é muita corrupção". Como PP é um endinheirado rebento de família quatrocentona, a tese veio com citações em francês e latim, mas o subtexto é parecido. Ele padece de um mesmo fatalismo apontado por SBH. O povo é assim, então o país é uma bosta. 

O ensaio reforça uma noção de degenerescência, não muito distante do que Gobineau - que acho que já fora citado por um antropólogo populista ou pelo SBH  - colocava em relação ao nosso povo. A questão da dissolução moral oriunda da miscigenação está presente em cada tema abordado. 
Outro ponto que achei interessante no livro como um todo foi a falta de preocupação com a precisão das datas, o que dá maior fluidez à narrativa. Isso, entretanto, torna certas análises excessivamente gerais, com prejuízo das nuances de cada período. 

PP não se preocupa em dar roupagem científica a seu Retrato. Ele traz o ponto de vista de uma classe que ainda hoje pensa daquela maneira, com poucas variações. Muito racista, higienista, eurocêntrico. Algumas vezes comete erros em suas citações, referências e name dropping (expressão em inglês usada para designar, pejorativamente, quem recita nomes célebres para se promover) que, de tão numerosas, parecem mais servir a valorizar a pesquisa do autor do que enriquecer seu conteúdo. 
Isto posto, vamos aos capítulos. 


Luxúria 
Gostei muito. PP fez uma bela pesquisa, e cita inúmeras fontes que parecem ser bem interessantes. Do jeito que ele põe a coisa, parece que na Europa nada daquilo acontecia. PP analisa com olhos vitorianos o Brasil em seu nascimento. PP teve um filho ilegítimo. Não comprou no Boticário o perfume que deu de presente a sua amante.  

Ele se refere aos primeiros habitantes de uma forma animalesca. Tive por inúmeras vezes ao longo do livro, talvez até menos um pouco em Luxúria do que nos capítulos seguintes, a impressão de se tratava de um burguês tupiniquim que se sente superior a todos os outros por ser bem-nascido, se colocando à  parte de tudo o que descreve como sendo a desgraça nacional. Talvez o livro tenha feito tanto sucesso naquela época por isso, por dar vazão ao complexo de vira-lata que provavelmente era o que pensavam as cabeças leitoras daquele então. As outras cabeças não liam. Agora me deu curiosidade de saber a opinião de tenentistas sobre este Retrato. 

Assim como no Raízes do Brasil, aparece a característica voltada pra fora da construção do país. Eu vim aqui para pegar o meu e me mandar; o “transoceanismo”. Vejo isso ainda muito presente na sociedade brasileira atual, onde o compromisso coletivo é muito incipiente, na melhor das hipóteses. No post-scriptum PP diz, a meu ver acertadamente, que "não conseguimos preparar a argamassa que liga os grandes povos idealistas. Explosões esporádicas de reação e entusiasmo apenas servem para acentuar a apatia quotidiana." Tenho a impressão que isto mudou muito ao longo das décadas, mas penso também que o engajamento político com compromisso coletivo sempre será insuficiente. Vivemos uma crise de da democracia representativa no Brasil e no mundo que talvez seja "o novo normal".   


Cobiça 
Considero este o melhor capítulo. A descrição das bandeiras e dos bandeirantes é interessantíssima em seu detalhamento e vivacidade. A essa altura já não me importava tanto com os juízos de valor e passei a me ater mais às descrições que às análises propriamente ditas. 

É neste capítulo que ele destaca o papel rebelde dos jesuítas, representando a resistência contra a selvageria dos colonizadores contra os selvagens. Até agora, em nossas leituras, não tinha percebido esta característica ou função da presença daqueles religiosos. 

Um marcado desprezo pelo Estado também permeia as páginas desse Retrato - desgastado e amarelado, porém não superado. Exceto talvez alguns elogios ao Marquês de Pombal, em momento algum a presença do Estado foi retratada como potência organizadora. Isto talvez se deva à ênfase dada no livro ao período colonial; calculo que a expansão do Estado brasileiro tenha tido seus primórdios com a vinda dos Braganças e somente se consolidado de fato com Getúlio, posteriormente, portanto, à publicação do livro. Paralelamente a esse desprezo pelo oficial, pintado como ineficaz e contraproducente, está o heroísmo da iniciativa individual de certos cidadãos movidos pela cobiça do ouro de do enriquecimento imediato proporcionado pela posse concreta do metal. 

Considerando a data de publicação do livro, e quão rico e viajado era o autor, é possível que ele estivesse, como muitos à época, encantado com a pontualidade dos trens italianos após a ascensão de Mussolini. Ou com a proposta de ortopedia moral de Salazar em Portugal. 

A narrativa, livre da pretensão científica, dá boa dimensão humana na apresentação de situações, como na descrição da corrida do ouro, em que “ viviam num contínuo sonho de esperança, vítimas de uma espécie de loucura, forma aguda e crônica de uma doença que é o jogo. Homens de reputada prudência, mesmo parcimoniosos, rapidamente transformavam a avareza em prodigalidade. ” 


Tristeza 
Triste mesmo é este livro. Quanto pessimismo! Tudo é descrito pelo lado ruim. Nenhuma potencialidade é debatida. Pouco se comenta de qualquer progresso que possa ter havido ao longo do período coberto. Pelo que entendi, a tristeza vem de uma retenção nos instintos crus da luxúria e da cobiça, em detrimento de "sentimentos afetivos de ordem superior." PP, aqui, não revela qual foi a fonte dessa hierarquia de sentimentos afetivos nem seus fundamentos. 

Neste capítulo aparece uma das mais valiosas frases do livro, a meu ver; referindo-se à independência, anunciada no início do século XIX, "ainda não se formara a nação; apenas a sociedade, como simples aglomeração de moléculas humanas. Começava, no entanto, a se afirmar a consciência geográfica, que fixava e delimitava o território." 

Ali também ele faz considerações sobre raça e cor bem interessantes, algo que não havia sido comentado em qualquer outro texto que lemos até agora, que é a gradualidade do racismo; o mulato desprezava o mamaluco. Os diversos nomes que usamos para designar as gradações de cor de pele são facilmente extrapoláveis em estratos da sociedade, onde quem é menos preto oprime quem é mais. Segundo Henry Koster (Henrique da Costa), citado no Retrato, o mulato deixa de sê-lo quando passa a ser capitão-mor. 

Em alguns pontos ele põe em evidência a escravidão como grande mácula na formação de nosso povo. Nada diz sobre ter este regime lançado as bases de um fosso de desigualdade que compromete a transformação de brasileiros em cidadãos, mas responsabiliza o negro africano pelo relaxamento de costumes e dissolução do caráter social. 


Romantismo

Este me fez pensar nas peças jurídicas que já li, umas três ou quatro, e que sem exceção são escritas como um romance do século XIX. Como se cada advogado acreditasse que escrevendo como Victor Hugo fica mais fácil convencer um juiz do pleito de seu cliente. Ou então como se cada juiz achasse que um dia suas sentenças serão publicadas e expostas como peças de extrema qualidade literária. É muito difícil entender uma sentença de juiz. 

O curioso desse capítulo é que ele critica o pessimismo do mal-do-século. Não deixa de ser engraçado, o pessimista criticando o mal-do-século. Metalinguagem ou negação? 


Finalizando...

post-scriptum também merece comentários. De volta à questão racial, ele, assim como muitos hoje, incluindo o todo-poderoso do jornalismo da Globo, AlKamel, acredita que reina no Brasil a paz racial. A aproximação entre as raças teria se dado pela luxúria e pelo desleixo social. "Nascemos juntos e juntos iremos até o fim de nossos destinos", diz PP. Essa "completa intimidade" só é possível pela estrita hierarquização da sociedade, a paz é condicionada a que cada um se mantenha no seu lugar. Este tema permanece no ponto cego de PP. Imperdoável. Este "quadro impressionista" - que pena que sinto neste momento de Monet, Sisley e tantos outros - tem uma mancha escura no meio.  O Retrato parece impressionista, mas apenas na medida em que a miopia prejudica a distinção precisa dos tratos e borra a percepção.