segunda-feira, 8 de junho de 2015

Retrato Impressionista

De forma geral, pode-se dizer que é um livro com muitos adjetivos, e a quase totalidade deles pouco elogiosos no que se refere ao nosso país, e principalmente ao povo. Tentou passar uma mensagem de otimismo no fim, com o post scriptum, mas falhou. Não desenvolve ali o que seriam a revolução ou a guerra que propõe como solução. O que mais me incomodou foi o caráter biográfico e determinista dos juízos produzidos por PP. O país está fadado ao fracasso porque seu povo foi constituído desta maneira.  
PP apresenta uma tese sobre “por que esse país não vai pra frente.” A diferença é que uma  pessoa sem seu berço diria “é porque ninguém tem deus no coração”, ou “porque não matou esses safados todos quando foram presos pela primeira vez”, ou “porque o voto é obrigatório”, ou “por causa dos comunistas”, "é muita corrupção". Como PP é um endinheirado rebento de família quatrocentona, a tese veio com citações em francês e latim, mas o subtexto é parecido. Ele padece de um mesmo fatalismo apontado por SBH. O povo é assim, então o país é uma bosta. 

O ensaio reforça uma noção de degenerescência, não muito distante do que Gobineau - que acho que já fora citado por um antropólogo populista ou pelo SBH  - colocava em relação ao nosso povo. A questão da dissolução moral oriunda da miscigenação está presente em cada tema abordado. 
Outro ponto que achei interessante no livro como um todo foi a falta de preocupação com a precisão das datas, o que dá maior fluidez à narrativa. Isso, entretanto, torna certas análises excessivamente gerais, com prejuízo das nuances de cada período. 

PP não se preocupa em dar roupagem científica a seu Retrato. Ele traz o ponto de vista de uma classe que ainda hoje pensa daquela maneira, com poucas variações. Muito racista, higienista, eurocêntrico. Algumas vezes comete erros em suas citações, referências e name dropping (expressão em inglês usada para designar, pejorativamente, quem recita nomes célebres para se promover) que, de tão numerosas, parecem mais servir a valorizar a pesquisa do autor do que enriquecer seu conteúdo. 
Isto posto, vamos aos capítulos. 


Luxúria 
Gostei muito. PP fez uma bela pesquisa, e cita inúmeras fontes que parecem ser bem interessantes. Do jeito que ele põe a coisa, parece que na Europa nada daquilo acontecia. PP analisa com olhos vitorianos o Brasil em seu nascimento. PP teve um filho ilegítimo. Não comprou no Boticário o perfume que deu de presente a sua amante.  

Ele se refere aos primeiros habitantes de uma forma animalesca. Tive por inúmeras vezes ao longo do livro, talvez até menos um pouco em Luxúria do que nos capítulos seguintes, a impressão de se tratava de um burguês tupiniquim que se sente superior a todos os outros por ser bem-nascido, se colocando à  parte de tudo o que descreve como sendo a desgraça nacional. Talvez o livro tenha feito tanto sucesso naquela época por isso, por dar vazão ao complexo de vira-lata que provavelmente era o que pensavam as cabeças leitoras daquele então. As outras cabeças não liam. Agora me deu curiosidade de saber a opinião de tenentistas sobre este Retrato. 

Assim como no Raízes do Brasil, aparece a característica voltada pra fora da construção do país. Eu vim aqui para pegar o meu e me mandar; o “transoceanismo”. Vejo isso ainda muito presente na sociedade brasileira atual, onde o compromisso coletivo é muito incipiente, na melhor das hipóteses. No post-scriptum PP diz, a meu ver acertadamente, que "não conseguimos preparar a argamassa que liga os grandes povos idealistas. Explosões esporádicas de reação e entusiasmo apenas servem para acentuar a apatia quotidiana." Tenho a impressão que isto mudou muito ao longo das décadas, mas penso também que o engajamento político com compromisso coletivo sempre será insuficiente. Vivemos uma crise de da democracia representativa no Brasil e no mundo que talvez seja "o novo normal".   


Cobiça 
Considero este o melhor capítulo. A descrição das bandeiras e dos bandeirantes é interessantíssima em seu detalhamento e vivacidade. A essa altura já não me importava tanto com os juízos de valor e passei a me ater mais às descrições que às análises propriamente ditas. 

É neste capítulo que ele destaca o papel rebelde dos jesuítas, representando a resistência contra a selvageria dos colonizadores contra os selvagens. Até agora, em nossas leituras, não tinha percebido esta característica ou função da presença daqueles religiosos. 

Um marcado desprezo pelo Estado também permeia as páginas desse Retrato - desgastado e amarelado, porém não superado. Exceto talvez alguns elogios ao Marquês de Pombal, em momento algum a presença do Estado foi retratada como potência organizadora. Isto talvez se deva à ênfase dada no livro ao período colonial; calculo que a expansão do Estado brasileiro tenha tido seus primórdios com a vinda dos Braganças e somente se consolidado de fato com Getúlio, posteriormente, portanto, à publicação do livro. Paralelamente a esse desprezo pelo oficial, pintado como ineficaz e contraproducente, está o heroísmo da iniciativa individual de certos cidadãos movidos pela cobiça do ouro de do enriquecimento imediato proporcionado pela posse concreta do metal. 

Considerando a data de publicação do livro, e quão rico e viajado era o autor, é possível que ele estivesse, como muitos à época, encantado com a pontualidade dos trens italianos após a ascensão de Mussolini. Ou com a proposta de ortopedia moral de Salazar em Portugal. 

A narrativa, livre da pretensão científica, dá boa dimensão humana na apresentação de situações, como na descrição da corrida do ouro, em que “ viviam num contínuo sonho de esperança, vítimas de uma espécie de loucura, forma aguda e crônica de uma doença que é o jogo. Homens de reputada prudência, mesmo parcimoniosos, rapidamente transformavam a avareza em prodigalidade. ” 


Tristeza 
Triste mesmo é este livro. Quanto pessimismo! Tudo é descrito pelo lado ruim. Nenhuma potencialidade é debatida. Pouco se comenta de qualquer progresso que possa ter havido ao longo do período coberto. Pelo que entendi, a tristeza vem de uma retenção nos instintos crus da luxúria e da cobiça, em detrimento de "sentimentos afetivos de ordem superior." PP, aqui, não revela qual foi a fonte dessa hierarquia de sentimentos afetivos nem seus fundamentos. 

Neste capítulo aparece uma das mais valiosas frases do livro, a meu ver; referindo-se à independência, anunciada no início do século XIX, "ainda não se formara a nação; apenas a sociedade, como simples aglomeração de moléculas humanas. Começava, no entanto, a se afirmar a consciência geográfica, que fixava e delimitava o território." 

Ali também ele faz considerações sobre raça e cor bem interessantes, algo que não havia sido comentado em qualquer outro texto que lemos até agora, que é a gradualidade do racismo; o mulato desprezava o mamaluco. Os diversos nomes que usamos para designar as gradações de cor de pele são facilmente extrapoláveis em estratos da sociedade, onde quem é menos preto oprime quem é mais. Segundo Henry Koster (Henrique da Costa), citado no Retrato, o mulato deixa de sê-lo quando passa a ser capitão-mor. 

Em alguns pontos ele põe em evidência a escravidão como grande mácula na formação de nosso povo. Nada diz sobre ter este regime lançado as bases de um fosso de desigualdade que compromete a transformação de brasileiros em cidadãos, mas responsabiliza o negro africano pelo relaxamento de costumes e dissolução do caráter social. 


Romantismo

Este me fez pensar nas peças jurídicas que já li, umas três ou quatro, e que sem exceção são escritas como um romance do século XIX. Como se cada advogado acreditasse que escrevendo como Victor Hugo fica mais fácil convencer um juiz do pleito de seu cliente. Ou então como se cada juiz achasse que um dia suas sentenças serão publicadas e expostas como peças de extrema qualidade literária. É muito difícil entender uma sentença de juiz. 

O curioso desse capítulo é que ele critica o pessimismo do mal-do-século. Não deixa de ser engraçado, o pessimista criticando o mal-do-século. Metalinguagem ou negação? 


Finalizando...

post-scriptum também merece comentários. De volta à questão racial, ele, assim como muitos hoje, incluindo o todo-poderoso do jornalismo da Globo, AlKamel, acredita que reina no Brasil a paz racial. A aproximação entre as raças teria se dado pela luxúria e pelo desleixo social. "Nascemos juntos e juntos iremos até o fim de nossos destinos", diz PP. Essa "completa intimidade" só é possível pela estrita hierarquização da sociedade, a paz é condicionada a que cada um se mantenha no seu lugar. Este tema permanece no ponto cego de PP. Imperdoável. Este "quadro impressionista" - que pena que sinto neste momento de Monet, Sisley e tantos outros - tem uma mancha escura no meio.  O Retrato parece impressionista, mas apenas na medida em que a miopia prejudica a distinção precisa dos tratos e borra a percepção.

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