domingo, 26 de novembro de 2017

Um privatismo sem jardins?

Praça Paris, ao mesmo tempo praça e jardim

‘O jardim e a praça’, de Nelson Saldanha é um livro pouco marcante. Parte disso tem a ver com o tempo decorrido de sua leitura: cerca de três semanas. Nesse período, muita coisa aconteceu na minha vida, e também nas minhas leituras. Ao me deparar com a tarefa de escrever algo sobre ele, sou obrigado a retomá-lo, dar uma breve olhada nas anotações e parágrafos marcados, e tentar extrair disso alguma coisa, alguma crítica.

De todas as ideias apresentadas nesse livro obscuro (não se o acha nem mesmo na Estante Virtual), a única que me deixou alguma marca (a ponto de lembrá-la a posteriori) é a ideia de que somos todos tributários da burguesia. O autor argumenta que, mesmo no polarizado século vinte, as discussões teóricas, e mesmo práticas, entre os sistemas político-econômicos, são todas burguesas. A discussão comunismo versus capitalismo, marxismo versus liberalismo, tudo isso remete a uma vida burguesa. O interessante argumento do autor é o de que, por conta desse pensamento polarizado herdado do século vinte, e também por uma certa tradição marxista de pensamento, a ideia de burguesia foi sendo empurrada à direita, se opondo frontalmente aos sistemas socialistas de pensamento e ação. Para Nelson, a noção de burguesia se opõe verdadeiramente ao sistema feudal, ao modo de ser medieval europeu, ruralizado, árcade. Mesmo as revoluções comunistas (russa, cubana, chinesa) não tiveram interesse em atacar a revolução burguesa de 1789 na França. Nenhuma delas pregou a volta da monarquia, da nobreza, do clero. Em contrapartida, mantiveram a relação de dominação da cidade sobre os campos, não destituíram de sentido as profissões liberais pequeno-burguesas, valorizaram a burocracia e fortaleceram a ocupação dos grandes centros urbanos. Nas palavras do autor: “o fosso entre feudalismo e capitalismo – ou sociedade moderna, ou burguesa – é mais profundo do que o que pode existir entre capitalismo e socialismo. Estes dois são, no fundo, resultantes do processo geral de secularização, que tanto afeta a esfera cultural quanto a econômica, enquanto o mundo feudal foi anterior àquele processo.”. Apresentar o deslocamento da noção de burguesia ao longo a história é uma excelente ideia (embora, muito francamente, eu também não seja capaz de precisar o quanto ela tem de original).

Quanto à oposição central proposta pelo título do livro (jardim versus praça), e que me motivou a comprá-lo, as ideias são meio embaralhadas. Trata-se de uma discussão interessante sobre o público e o privado, algo como ‘A casa e a rua’, do Roberto da Matta (que não li). A noção que fica é a de que Nelson Saldanha, nesse livro, apresenta uma espécie de pensamento divergente. Gosto do conceito ‘divergência’, acho que o feixe de significados proporcionado por ele é bem adequado à impressão que tive do livro. Se na oftalmologia, divergência tem a ver com a dificuldade de colocar algo em foco, no estudo de séries temporais (da matemática avançada), divergir tem o signficado de não ser possível chegar a um resultado com as condições de acumulação (somas ou produtos) fornecidas. Portanto, considerando ambas as possibilidades, creio ser este um termo que se aplica bem. ‘O jardim e a praça’ tem um problema de foco, mas também de resultados. Sem saber exatamente qual deles é a causa do outro, o que se pode dizer é que o ensaio apresentado nem bem focaliza o tema principal, nem chega a bom termo em termos de resultado, conclusão.

O que se depreende do parágrafo anterior, talvez erroneamente, é que o autor apresenta uma escrita frouxa. Mas, mea culpa, talvez frouxa possa ter sido a minha leitura.

Para além das ideias apresentadas, e pensando um pouco na forma, o que senti ali foi uma espécie de medo. Um medo de que, na ânsia de abarcar todas as esferas do conhecimento (história, sociologia, filosofia) e misturar isso com algum grau de poesia e um certo diletantismo, eu também venha caminhando para me tornar um pouco disso nas coisas que escrevo: uma coisa plástica, em certo sentido bonitinha, mas que não consegue dar ao leitor o mínimo esperado em termos de foco e resultado para que a leitura possa ser avaliada, ao final, como tendo tido algum valor, de alguma forma sido proveitosa.

Voltemos ao livro. Uma outra discussão bastante interessante que se apresenta é sobre as utopias. Acostumamo-nos a pensá-las de maneira positiva. A descontrução proposta por Nelson é a de que as utopias, ao primar pelo público em detrimento do privado, apresentam uma sociedade castradora, planificada, e na qual não há conflitos sociais. Diz Nelson: “as utopias são uma imagem anti-sociológica das coisas (...) Configuram uma sociedade em que nada muda, em que não há processos sociais.”. O que consigo pensar é que, se por um lado, as utopias insitgam o movimento (para que se possa alcançá-las), por outro, projetam um mundo estático, em que esse movimento cessa. Se pensarmos a felicidade como a grande utopia da vida privada, fico com a impressão de que é mesmo assim que as pessoas se pensam e se projetam: a felicidade é tanto um lugar/tempo estático, parado, quanto, subjetivamente, a felicidade também está associada ao repouso, à calma, ao olhar para o mar numa praia paradisíaca enquanto o tempo passa. É claro que a ideia do movimento como algo negativo está impregnada pelas opressões do mundo do trabalho, em que a fruição do próprio tempo em benefício de si mesmo é somente admitida em momentos estritamente demarcados (férias, final de semana, feriados). Entretanto, ainda considerando esses atravessamentos, penso que as pessoas gostam de acreditar nesse mundo ideal, bonitinho, sem conflitos; a felicidade como esse grande paraíso, esse lugar idílico em que as pessoas acariciam tigres tranquilamente, como nos folhetos oferecidos pelas testemunhas de Jeová.

Mas negar o movimento é algo empobrecedor. Tanto para a vida privada, como para a vida pública. Nesse sentido, sempre me lembro de uma entrevista do psicanalista Contardo Calligaris na Folha de São Paulo (o link aponta para a Revista Claudia, mas eu jurava ter lido Folha), em que ele diz não querer ser feliz. ‘Eu quero é ter uma vida interessante’, diz Contardo.

A felicidade (a paz, a democracia, e tantas outras coisas) não estão lá esperando ser alcançadas. Essas coisas têm mesmo sua condição de existência no movimento.

Nesse ponto, entra uma outra construção interessante de Saldanha: “a cultura democrática se considera mais dinâmica em relação aos estágios ‘pré-democráticos’ e, nesse dinamismo cabem, como preço, as instabilidades e as crises latentes”.

Ora, a democracia está em crise no Brasil. Talvez no mundo todo. Mas quando não esteve? Quando a democracia foi ‘um dado do problema’? Talvez a estabilidade proporcionada pelo continuum FHC-Lula-Dilma1 nos tenha dado uma falsa impressão de que a democracia era para sempre, mas ‘o pra sempre sempre acaba’, como já dizia Cássia Eller. Talvez para começar de novo, talvez não. Talvez venha nova, reconfigurada, moldada pelas mãos de muitos ou de poucos, não sabemos.

Mas o que sabemos é que as coisas não estão paradas e que, se olharmos para a história do Brasil vamos ver que a democracia sempre foi um paulatino campo de batalha.

Batalha esta que nem todos querem travar. Parte dessa negação tem a ver com a nossa formação burguesa. Mais uma vez Nelson: “o modo de viver dito burguês seria, no caso, um constante evitar riscos, e como a vida é feita de riscos, ela perde em substância com os excessos de cautela.” Essa passagem explica, um pouco, o atoleiro em que nos enfiamos. Gostar do governo ninguém gosta. Mas quem é que está disposto a ir para rua fazer protesto, enfrenter polícia, correr da cavalaria, receber spray de pimenta na cara, ser chamado de vândalo? A maior parte de nós (incluindo a mim mesmo, nos anos recentes) não está. Fomos educados para sermos avessos ao risco. Isso explica o nosso comportamento (mas, não, não nos exime da culpa).

Essa explicação se dá, em parte por sermos historicamente burgueses, mas também por sermos brasileiros. Saldanha argumenta que somos mais afeitos ao privado do que ao público (é importante ressaltar que o livro é de 2005, muito antes, portanto, de 2013, o ano que ainda não acabou, e que ensejou novas formas e pensar e agir sobre os espaços públicos). Ele explicita suas ideias no trecho a seguir: “De certa forma, o problema do privatismo brasileiro, que se prende ao ‘personalismo’ ainda hoje perceptível, deverá ser entendido em conexão com fenômenos idênticos, correntes em toda a América Latina: latifúndios, famílias dinásticas, caudilhismo político, partidos formados por coalizões pessoais, escassa e descontínua presença do povo e do sentido da coisa pública como tal. (...) Há de qualquer sorte, em torno da tendência nacional ao privatismo (o gigantismo de Brasília e da burocracia nacional é outra coisa), algumas observações a fazer. Vejamos, por exemplo, este paradoxo: um povo em que sempre foi uma constante a violência privada, sob diversas formas (crimes de fim de semana, assassinatos, rixas, faclidade do uso de armas, trânsito violento), e que entretanto não tem o hábito da violência pública. Não o tem em geral, sem embargo de sedições aqui e ali ocorrentes na história; não o tem no sentido do enfrentamento com a milícia nem no da própria disposição revolucionária.

Ora, se somos um povo (na visão de Nelson Saldanha pré-2013) que não ocupa as ruas, que não quer correr riscos; se abdicamos do público, da praça, certamente, é porque estamos cuidando dos nossos jardins, certo?

E aí, Nelson Saldanha, nos deixa essa provocação, com a qual teremos de lidar: “Um privatismo sem jardins. Dir-se-ia ser esse o caso brasileiro.”

Aproveito o final do texto para dizer que, relendo com mais calma minhas anotações, ‘O jardim e a praça’ é sim um ensaio bem rico. Quando comecei a escrever, eu não me lembrava de várias reflexões que eu havia tido durante a leitura, e que fui puxando ao longo do processo de escrita. Então, peço desculpas ao Nelson (que morreu em 2015) e aos leitores desta crítica se fui meio ‘azedo’ nos parágrafos iniciais.

Mas é isso, pensemos no caso brasileiro, um privatismo sem jardins.

PS: Acabei de escrever o texto e fui procurar uma imagem para ilustrá-lo. Tive a ideia de pegar a 'Praça Paris', no bairro da Glória (no Rio de Janeiro) que é ao mesmo tempo, praça e jardim. E funciona de maneira muito boa, tanto como jardim quanto como praça. A Praça Paris nos faz questionar o suposto caso brasileiro, do privatismo sem jardins. Porque ela é justamente o oposto: um lugar público com jardins. Esse pensamento me levou a inserir um ponto de interrogação no título, instigando à reflexão sobre esse pensamento pessimista do Saldanha. Tivesse pensado na Praça Paris antes, eu teria escrito uma coisa completamente diferente, tendo esta praça como eixo norteador. :)