Praça Paris, ao mesmo tempo praça e jardim
‘O jardim e a praça’, de Nelson
Saldanha é um livro pouco marcante. Parte disso tem a ver com o tempo decorrido
de sua leitura: cerca de três semanas. Nesse período, muita coisa aconteceu na
minha vida, e também nas minhas leituras. Ao me deparar com a tarefa de
escrever algo sobre ele, sou obrigado a retomá-lo, dar uma breve olhada nas
anotações e parágrafos marcados, e tentar extrair disso alguma coisa, alguma
crítica.
De todas as ideias apresentadas
nesse livro obscuro (não se o acha nem mesmo na Estante Virtual), a única que
me deixou alguma marca (a ponto de lembrá-la a posteriori) é a ideia de que somos todos tributários da
burguesia. O autor argumenta que, mesmo no polarizado século vinte, as
discussões teóricas, e mesmo práticas, entre os sistemas político-econômicos,
são todas burguesas. A discussão comunismo versus
capitalismo, marxismo versus
liberalismo, tudo isso remete a uma vida burguesa. O interessante argumento do
autor é o de que, por conta desse pensamento polarizado herdado do século
vinte, e também por uma certa tradição marxista de pensamento, a ideia de
burguesia foi sendo empurrada à direita, se opondo frontalmente aos sistemas
socialistas de pensamento e ação. Para Nelson, a noção de burguesia se opõe
verdadeiramente ao sistema feudal, ao modo de ser medieval europeu, ruralizado,
árcade. Mesmo as revoluções comunistas (russa, cubana, chinesa) não tiveram
interesse em atacar a revolução burguesa de 1789 na França. Nenhuma delas
pregou a volta da monarquia, da nobreza, do clero. Em contrapartida, mantiveram
a relação de dominação da cidade sobre os campos, não destituíram de sentido as
profissões liberais pequeno-burguesas, valorizaram a burocracia e fortaleceram
a ocupação dos grandes centros urbanos. Nas palavras do autor: “o fosso entre feudalismo e capitalismo – ou sociedade
moderna, ou burguesa – é mais profundo do que o que pode existir entre
capitalismo e socialismo. Estes dois são, no fundo, resultantes do processo
geral de secularização, que tanto afeta a esfera cultural quanto a econômica,
enquanto o mundo feudal foi anterior àquele processo.”. Apresentar o
deslocamento da noção de burguesia ao longo a história é uma excelente ideia
(embora, muito francamente, eu também não seja capaz de precisar o quanto ela
tem de original).
Quanto à oposição central
proposta pelo título do livro (jardim versus
praça), e que me motivou a comprá-lo, as ideias são meio embaralhadas. Trata-se
de uma discussão interessante sobre o público e o privado, algo como ‘A casa e a rua’, do Roberto da Matta
(que não li). A noção que fica é a de que Nelson Saldanha, nesse livro,
apresenta uma espécie de pensamento divergente. Gosto do conceito ‘divergência’,
acho que o feixe de significados proporcionado por ele é bem adequado à
impressão que tive do livro. Se na oftalmologia, divergência tem a ver com a
dificuldade de colocar algo em foco, no estudo de séries temporais (da matemática
avançada), divergir tem o signficado de não ser possível chegar a um resultado
com as condições de acumulação (somas ou produtos) fornecidas. Portanto,
considerando ambas as possibilidades, creio ser este um termo que se aplica
bem. ‘O jardim e a praça’ tem um problema de foco, mas também de resultados. Sem
saber exatamente qual deles é a causa do outro, o que se pode dizer é que o ensaio
apresentado nem bem focaliza o tema principal, nem chega a bom termo em termos
de resultado, conclusão.
O que se depreende do parágrafo
anterior, talvez erroneamente, é que o autor apresenta uma escrita frouxa. Mas,
mea culpa, talvez frouxa possa ter
sido a minha leitura.
Para além das ideias
apresentadas, e pensando um pouco na forma, o que senti ali foi uma espécie de
medo. Um medo de que, na ânsia de abarcar todas as esferas do conhecimento (história,
sociologia, filosofia) e misturar isso com algum grau de poesia e um certo
diletantismo, eu também venha caminhando para me tornar um pouco disso nas
coisas que escrevo: uma coisa plástica, em certo sentido bonitinha, mas que não
consegue dar ao leitor o mínimo esperado em termos de foco e resultado para que
a leitura possa ser avaliada, ao final, como tendo tido algum valor, de alguma
forma sido proveitosa.
Voltemos ao livro. Uma outra discussão
bastante interessante que se apresenta é sobre as utopias. Acostumamo-nos a
pensá-las de maneira positiva. A descontrução proposta por Nelson é a de que as
utopias, ao primar pelo público em detrimento do privado, apresentam uma
sociedade castradora, planificada, e na qual não há conflitos sociais. Diz
Nelson: “as utopias são uma imagem anti-sociológica das coisas (...) Configuram
uma sociedade em que nada muda, em que não há processos sociais.”. O que
consigo pensar é que, se por um lado, as utopias insitgam o movimento (para que
se possa alcançá-las), por outro, projetam um mundo estático, em que esse
movimento cessa. Se pensarmos a felicidade como a grande utopia da vida
privada, fico com a impressão de que é mesmo assim que as pessoas se pensam e
se projetam: a felicidade é tanto um lugar/tempo estático, parado, quanto,
subjetivamente, a felicidade também está associada ao repouso, à calma, ao olhar
para o mar numa praia paradisíaca enquanto o tempo passa. É claro que a ideia
do movimento como algo negativo está impregnada pelas opressões do mundo do
trabalho, em que a fruição do próprio tempo em benefício de si mesmo é somente
admitida em momentos estritamente demarcados (férias, final de semana,
feriados). Entretanto, ainda considerando esses atravessamentos, penso que as
pessoas gostam de acreditar nesse mundo ideal, bonitinho, sem conflitos; a
felicidade como esse grande paraíso, esse lugar idílico em que as pessoas
acariciam tigres tranquilamente, como nos folhetos oferecidos pelas testemunhas
de Jeová.
Mas negar o movimento é algo
empobrecedor. Tanto para a vida privada, como para a vida pública. Nesse
sentido, sempre me lembro de uma entrevista do psicanalista Contardo Calligaris na
Folha de São Paulo (o link aponta para a Revista Claudia, mas eu jurava ter lido Folha), em que ele diz não querer ser feliz. ‘Eu quero é ter uma
vida interessante’, diz Contardo.
A felicidade (a paz, a
democracia, e tantas outras coisas) não estão lá esperando ser alcançadas.
Essas coisas têm mesmo sua condição de existência no movimento.
Nesse ponto, entra uma outra construção
interessante de Saldanha: “a cultura
democrática se considera mais dinâmica em relação aos estágios ‘pré-democráticos’
e, nesse dinamismo cabem, como preço, as instabilidades e as crises latentes”.
Ora, a democracia está em crise
no Brasil. Talvez no mundo todo. Mas quando não esteve? Quando a democracia foi
‘um dado do problema’? Talvez a estabilidade proporcionada pelo continuum FHC-Lula-Dilma1 nos tenha dado
uma falsa impressão de que a democracia era para sempre, mas ‘o pra sempre
sempre acaba’, como já dizia Cássia Eller. Talvez para começar de novo, talvez não.
Talvez venha nova, reconfigurada, moldada pelas mãos de muitos ou de poucos,
não sabemos.
Mas o que sabemos é que as coisas
não estão paradas e que, se olharmos para a história do Brasil vamos ver que a
democracia sempre foi um paulatino campo de batalha.
Batalha esta que nem todos querem
travar. Parte dessa negação tem a ver com a nossa formação burguesa. Mais uma
vez Nelson: “o modo de viver dito burguês
seria, no caso, um constante evitar riscos, e como a vida é feita de riscos,
ela perde em substância com os excessos de cautela.” Essa passagem explica,
um pouco, o atoleiro em que nos enfiamos. Gostar do governo ninguém gosta. Mas
quem é que está disposto a ir para rua fazer protesto, enfrenter polícia,
correr da cavalaria, receber spray de pimenta na cara, ser chamado de vândalo?
A maior parte de nós (incluindo a mim mesmo, nos anos recentes) não está. Fomos
educados para sermos avessos ao risco. Isso explica o nosso comportamento (mas,
não, não nos exime da culpa).
Essa explicação se dá, em parte
por sermos historicamente burgueses, mas também por sermos brasileiros.
Saldanha argumenta que somos mais afeitos ao privado do que ao público (é importante
ressaltar que o livro é de 2005, muito antes, portanto, de 2013, o ano que
ainda não acabou, e que ensejou novas formas e pensar e agir sobre os espaços
públicos). Ele explicita suas ideias no trecho a seguir: “De certa forma, o problema do privatismo brasileiro, que se prende ao ‘personalismo’
ainda hoje perceptível, deverá ser entendido em conexão com fenômenos
idênticos, correntes em toda a América Latina: latifúndios, famílias
dinásticas, caudilhismo político, partidos formados por coalizões pessoais,
escassa e descontínua presença do povo e do sentido da coisa pública como tal.
(...) Há de qualquer sorte, em torno da tendência nacional ao privatismo (o
gigantismo de Brasília e da burocracia nacional é outra coisa), algumas observações
a fazer. Vejamos, por exemplo, este paradoxo: um povo em que sempre foi uma
constante a violência privada, sob diversas formas (crimes de fim de semana,
assassinatos, rixas, faclidade do uso de armas, trânsito violento), e que
entretanto não tem o hábito da violência pública. Não o tem em geral, sem
embargo de sedições aqui e ali ocorrentes na história; não o tem no sentido do
enfrentamento com a milícia nem no da própria disposição revolucionária.”
Ora, se somos um povo (na visão
de Nelson Saldanha pré-2013) que não ocupa as ruas, que não quer correr riscos;
se abdicamos do público, da praça, certamente, é porque estamos cuidando dos
nossos jardins, certo?
E aí, Nelson Saldanha, nos deixa
essa provocação, com a qual teremos de lidar: “Um privatismo sem jardins.
Dir-se-ia ser esse o caso brasileiro.”
Aproveito o final do texto para dizer
que, relendo com mais calma minhas anotações, ‘O jardim e a praça’ é sim um
ensaio bem rico. Quando comecei a escrever, eu não me lembrava de várias reflexões
que eu havia tido durante a leitura, e que fui puxando ao longo do processo de
escrita. Então, peço desculpas ao Nelson (que morreu em 2015) e aos leitores desta
crítica se fui meio ‘azedo’ nos parágrafos iniciais.
Mas é isso, pensemos no caso
brasileiro, um privatismo sem jardins.
PS: Acabei de escrever o texto e fui procurar uma imagem para ilustrá-lo. Tive a ideia de pegar a 'Praça Paris', no bairro da Glória (no Rio de Janeiro) que é ao mesmo tempo, praça e jardim. E funciona de maneira muito boa, tanto como jardim quanto como praça. A Praça Paris nos faz questionar o suposto caso brasileiro, do privatismo sem jardins. Porque ela é justamente o oposto: um lugar público com jardins. Esse pensamento me levou a inserir um ponto de interrogação no título, instigando à reflexão sobre esse pensamento pessimista do Saldanha. Tivesse pensado na Praça Paris antes, eu teria escrito uma coisa completamente diferente, tendo esta praça como eixo norteador. :)