segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Um defeito de sociedade

Apesar de ser um livro de literatura, “um defeito de cor” é tão importante para entender a formação social do Brasil como qualquer outro livro clássico ou acadêmico que lemos no GEB. A diferença é que lendo com empatia (ou talvez nem seja preciso) é preciso ter estômago. A história de Kehinde foi apenas uma de milhares de meninas africanas vindas para o Brasil durante todos os séculos de escravidão. Enxergar a vida do negro escravo pelo olhar dela foi como se virássemos de cabeça para baixo os livros de história. O livro se inicia mostrando uma África de exploração, violência, pobreza, mas também uma rica cultura de povos, costumes e crenças. O Brasil, com base na escolástica (igreja católica) e sua população de brancos, senhores das fazendas, os estrangeiros e os escravos, num momento em que a vida ainda era rural, mas já com a formação de algumas principais cidades. Assim, ao longo do livro a riqueza de detalhes daquele tempo também fez parte da imersão para conseguirmos alcançar em todos os sentidos, um pouco da história da nossa população negra, tão marginalizada e ao mesmo tempo tão forte e viva.

A discussão que gostaria de propor ao GEB diz respeito as mudanças da nossa sociedade a partir da história narrada a partir de 1810 e o que significou isso na perspectiva histórica de 1910 e o que hoje é ser negro no Brasil dos anos 2010.

Em 1910, teses como a de Nina Rodrigues influenciavam com seus estudos sobre a inferioridade do negro que ainda era vista como um fenômeno de ordem perfeitamente natural, “produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões e seções". Assim, não houve nenhum tipo de política pública para inserção do negro no mercado do trabalho, sendo incentivado a imigração dos estrangeiros para o trabalho e branqueamento da população, já que para muitos países, se o nosso país fosse formado por negros, ele nunca seria desenvolvido. A teoria da Eugenia era defendida também por Oliveira Vianna, assim todo projeto dele foi em torno de um tipo único e a tesa do branqueamento que visava o “cruzamento” de homens brancos com mulatas. O negro era visto como incapazes (imputáveis), por conta do determinismo racial, ideia defendida nessa época.

Olhando de maneira superficial, podemos cair na armadilha de afirmar veementemente que a vida do negro e, de como ele é visto pela sociedade, melhorou ao longo desses 200 anos. Eu diria que não. É notório e diário o preconceito pelas ruas, escolas, universidades e outros locais públicos e privados, o percentual gritante de mortes (3x mais do que brancos), o percentual de negros pobres e abaixo da linha da pobreza (em relação aos brancos), a violência policial e o estigma da mulher mulata promíscua.

Indico alguns aspectos que, de alguma maneira, já passaram pelo GEB e que hoje poderão ser melhor discutidos como possíveis marcos de uma tentativa de igualdade dos negros na sociedade brasileira.  (i) a liberdade oriunda da abolição (séc. XIX) e a apropriação de direitos; (ii) comprovação pela ciência (infelizmente tivemos que recorrer a esta) da não existência de raças e, consequentemente de uma não inferioridade ou, melhor, de uma não hierarquização de povos e cores (séc. XX); (iii) presença de intelectuais brasileiros, como Florestan Fernandes, que desmascarou o mito da miscigenação como elemento essencial para formação do povo brasileiro e apresentou elementos que a sociedade brasileira não deu ao negro atenção devida após a abolição e na urbanização do país (séc. XX); e (iv) políticas públicas focadas na população negra (cotas e etc.), a partir da constituição de 88 (séc. XX e XXI), (v) empoderamento do negro, da multiplicação de movimentos sociais e da ampliação de direitos (séc. XX e XXI).
                 

Entretanto, apesar dos avanços não fomos capazes de superar “um defeito de sociedade” que ainda enxerga na cor da pele um abismo entre as relações e um verdadeiro projeto de nação (provocação!). 

domingo, 11 de setembro de 2016

Coleirinho



Encerrei a leitura de Um Defeito de Cor, romance semi-ficcional da Ana Maria Gonçalves, e fiquei sem saber o que escrever sobre o livro. É uma trajetória densa, em que a vida da protagnista cobre quase todo o século XIX (não há um relato claro do seu nascimento, pois a narrativa começa com a personagem tendo 6-7 anos, sem registros de datas), passando por eventos históricos importantes, como a Revolta dos Malês (1835), a Sabinada (1837-38), a Independência do Brasil (1822), a Proclamação da República (1889) e a Abolição da Escravatura (1888).  


Uma coisa que me chamou a atenção foi o fato de que os eventos e personagens históricos ganham pouca relevância neste livro, por vezes servindo como mero pano de fundo para acontecimentos pessoais da narradora. O centro da narrativa está nas ditas “pessoas comuns”, que, sem serem mencionadas pelos livros de História, tiveram profunda relevância para a história a que somos apresentados por Ana Maria Gonçalves.


Pesquisando um pouco sobre o assunto, descobri que existe uma controvérsia sobre o romance histórico, formato aparentemente utilizado pela autora. Alguns aspectos do texto que reforçam esta ideia (colocam mais tonalidades na já infinita gradação que separa a ficção da realidade) são apontados por Michele Gemin em sua monografia defendida pela Universidade Federal do Paraná sobre “Um Defeito de Cor”: (i)  toda a narrativa está localizada no tempo passado, e a especificidade histórica é condicionante para o modo de ser e agir dos personagens, que tem suas ações definidas pela época em que vivem; (ii) A protagonista não é uma heroína daquelas que estão nas epopéias, não é um grande personagem da história do Brasil e não realizou grandes feitos do ponto de vista histórico; (iii) A narrativa traz à tona os seres humanos que viveram esta experiência e focaliza detalhes do cotidiano que pareceriam insignificantes vistos com outros olhos; (iv) A autora pode recriar e reinventar personagens na busca de melhor representar suas ideias, sem necessidade de se criar ou identificar o patriotismo ou a nacionalidade como nos romances históricos do século XIX, sem compromisso com a História oficial (Gemin, 2015, página 16).


Curioso é que esta controvérsia entre ficção e realidade não parece incomodar a autora. Em recente entrevista à Editora Record, responsável pela publicação do livro, Ana Maria Gonçalves comenta que:
 
“Eu ficaria imensamente feliz se isso do que é verdade ou ficção pudesse ser respondido pelo leitor, que ele se interessasse em pesquisar o período histórico a que me ative. Tenho certeza de que deixei muitos fatos interessantes de fora, pois o livro tinha um propósito a ser seguido. Aliás, de todo o material de pesquisa que reuni, não cheguei a usar nem a metade, e muitos outros livros poderiam ser escritos com o que "sobrou". Diante de tanto material, confesso que até eu me confundo, tomando por realidade o que posso ter inventado a partir de alguns fatos, de algumas circunstâncias e mesmo de algumas pistas e leituras de entrelinhas. Grande parte dos personagens realmente existiu e os fatos históricos podem ser facilmente comprovados, mas a maneira como tais personagens atuaram ou deixaram de atuar sobre eles, pode ter sido apenas imaginado. Foi isso que tentei fazer, tendo em mente que sou romancista, e é como um romance  deve ser lido, deixando o rigor histórico para quem de direito.”

Talvez esta seja a melhor maneira de se ler a História: degustá-la, como se fosse um dos muitos quitutes preparados pela protagonista, e deixar para quem tenha mais autoridade (e paciência) que se preocupe com a (sempre flutuante) fronteira entre ficção e realidade...


O que mais dizer sobre esta bela narrativa?


Bom, ao longo da leitura, percebi que já havia ouvido ecos da história narrada por Kehinde (ou Luísa Andrade da Silva, ou Sinhá Luísa ou Dona Luísa, algumas das muitas alcunhas recebidas pela protagonista) em outros lugares. Será que foram em outros romances, ou em livros de História mesmo? Fiquei com a impressão de que o eco não era literário, mas sim em outras formas de Arte… Me ajudem então, a dizer se, à medida que avançamos pela bela história trazida por Gonçalves, não encontramos ecos dessa narrativa em outras formas de Arte da nossa vida contemporânea. (transcritas abaixo para cada trecho do livro - e para quem não leu, fica o *spoiller alert* dado aqui):  


1. Começamos o livro sendo apresentadas a Kehinde de 6-7 anos de idade. A despeito da tragédia que acontece com sua mãe e seu irmão, ela consegue se instalar na cidade de Savalu. Por obra do destino, a protagonista é levada por um traficante de escravos; porém, não realiza a travessia para o Brasil sozinha, sendo acompanhada da avó e da irmã gêmea Taiwo - que, pelas condições degradantes da viagem, acabam não sobrevivendo. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Boa Esperança - Emicida - https://www.youtube.com/watch?v=AauVal4ODbE


O tempero do mar foi lágrima de preto
Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto
Só desafeto, vida de inseto, imundo
Indenização? Fama de vagabundo
Nação sem teto, Angola, keto, congo, soweto
A cor de Eto'o, maioria nos gueto
Monstro sequestro, capta três, rapta
Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis
Tipo campos de concentração, prantos em vão
Quis vida digna, estigma, indignação
O trabalho liberta, ou não
Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu? extinção
Depressão no convés


2. Ao chegar no Brasil, Kehinde foge do batismo (onde recebe o nome de Luísa) e acaba indo trabalhar em uma fazenda na ilha de itaparica. Escrava “doméstica”, faz muitos amigos (Tico e Hilário, Esméria, Sebastião e a “sinhazinha” Carolina), aprende alguns serviços domésticos (e também a ler e a escrever com Fatumbi, aproveitando às escondidas as aulas da sinházinha) e desperta inveja da sinhá - razão pela qual é enviada para trabalhar na fundição, ficando com os escravos da senzala por um tempo. É um trabalho duro e perigoso, mas é o momento em que a protagonista faz contato mais intenso com a cultura dos negros, conhecendo personagens importantes para o seu futuro, como a Nega Florinda e Agontimé, e testemunhando revoltas e as punições aplicadas aos revoltosos. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


África Brasil - Jorge Ben Jor - https://www.youtube.com/watch?v=cf6ZyR_BUJ0
“Aqui onde estão os homens
Dum lado cana de açúcar
Do outro lado o cafezal
Ao centro senhores sentados
Vendo a colheita do algodão tão branco
Sendo colhidos por mãos negras
(..)
Eu quero ver
Quando Zumbi chegar
O que vai acontecer
Zumbi é senhor das guerras
È senhor das demandas
Quando Zumbi chega e Zumbi
É quem manda”


3. Ao chegar aos 14 anos, Kehinde chama a atenção o bastante para voltar a trabalhar na Casa Grande. Apaixona-se pelo preto Lourenço - o que talvez tenha sido a perdição para ambos - e sofre os maus tratos do sinhô, que se julga dono da virgindade de todas as escravas que possui. Após uma reviravolta do destino, toda a família se transfere para a capital, São Salvador. Na chegada à capital, Kehinde tem seu primeiro filho, Banjokô, que é adotado pela sinhá como “madrinha” - relação que vai gerar dissabores para ela no futuro. Devidos aos ciúmes da “madrinha”, acaba indo trabalhar por um tempo com uma família de ingleses - onde aprende a fazer cookies e a falar inglês, conhecimentos que a ajudarão muito no futuro. Ao retornar par a casa da sinhá, torna-se “escrava de ganho”, indo trabalhar nas ruas para ganhar o “aluguel” semanal que tinha de pagar a sinhá e decidida a lucrar o bastante para comprar a sua alforria e a do seu filho. Encanta-se com a cidade de São Salvador, faz muitos amigos, como Claudina, Padre Heinz e os muçurumins (muçulmanos negros) da loja onde vai morar, e conquista uma grande e variada clientela, com os sabores que consegue colocar nos quitutes à venda no seu tabuleiro. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Você já foi â Bahia? - Dorival Caymmi - https://www.youtube.com/watch?v=WG8T-ppqY3g


“Você já foi à Bahia, nêga?
Não?
Então vá!
Quem vai ao "Bonfim", minha nêga,
Nunca mais quer voltar.
Muita sorte teve,
Muita sorte tem,
Muita sorte terá
Você já foi à Bahia, nêga?
Não?
Então vá!
Lá tem vatapá
Então vá!
Lá tem caruru,
Então vá!
Lá tem munguzá,
Então vá!
Se "quiser sambar"
Então vá!”      


4. Em uma das muitas reviravoltas do destino, a sinhá decide se mudar para São Sebastião do Rio de Janeiro e Kehinde vê a chance de comprar a sua liberdade e a do seu filho. Porém, a sinhá dificulta o jogo e coloca um preço de venda proibitivo na carta de alforria de ambos. Junto com o seu amado à época, Francisco, Kehinde elabora um plano muito arriscado para conseguir a sua liberdade e a do seu filho - o que acaba dando certo. Liberta, obtendo o apoio dos muitos amigos que fez à época (e ajudando a comprar a liberdade de outros amigos como a Esméria, Tico e Hilário e Sebastião), Kehinde consegue aproveitar a vida em São Salvador, fazendo muitos amigos, participando das revoltas e acontecimentos políticos mais importantes e despertando alguns amores. Um destes amores, Alberto, talvez seu primeiro amor de verdade, será o pai de seu segundo filho, Omotunde Adeleke Danbiran, mas é fraco de caráter e será responsável por muitas decepções. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Canto de Ossanha - Vinicius de Moraes - Elis Regina - https://www.youtube.com/watch?v=NtbEGvO6010


“O homem que diz dou
Não dá!
Porque quem dá mesmo
Não diz!
O homem que diz vou
Não vai!
Porque quando foi
Já não quis!
O homem que diz sou
Não é!
Porque quem é mesmo é
Não sou!
O homem que diz tou
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha
Traidor!”


5. Ao se apaixonar, Kehinde vê sua vida sofrer uma nova reviravolta: ela deixa a loja onde moravam seus amigos Adeola, Claudina e os muçurumins, e se muda para um sítio grande, no subúrbio da cidade, para onde leva alguns dos seus antigos amigos e inicia a criação dos seus filhos. É neste período de paz e tranquilidade em que ela começa a construir uma padaria: a Saudades de Lisboa, muito bem-sucedida por um tempo. São muitas as reviravoltas de uma só vez, mas a vida de Kehinde é assim: um período de calmaria seguido de muitas mudanças que acontecem de uma vez. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Roda Viva - Chico Buarque e MPB4 - https://www.youtube.com/watch?v=IpAR9DlQV6o


“Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá


Roda mundo, roda-gigante
Rodamoinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração”
6. A fase de calmaria começa a se encerrar quando Kehinde toma parte em algumas das muitas revoltas dos pretos que ocorreram na São Salvador daquela época. Uma delas, frustrada pela delação de uma negra enciúmada, poderia ter mudados os rumos da História se tivesse dado certo. Mas coube ao destino que as revoltas não fossem bem-sucedidas, e que nossa protagonista se saísse delas razoavelmente incólume, mesmo tendo sido presa, durante a Cemiterada, por uma razão injusta. Os guardas que combatiam a turba revoltosa, assim como as punições aplicadas aos participantes capturados, eram mulatos, crioulos e, às vezes, escravos libertos. Negros açoitando negros que lutavam pela liberdade de todos os negros. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?   


Haiti - Caetano Veloso e Gilberto Gil - https://www.youtube.com/watch?v=MfAxBoxdlb0


“Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados”


7. Nesse período também ocorre a grande decepção com Alberto, que se casa com a Ressequida para se proteger da deportação de portugueses. Em compensação, acontece o flerte com Dr José Manoel, o médico que a ajuda nas fugas e com o refúgio em Itaparica. Durante o refúgio, Kehinde aprende muito sobre a cultura de sua terra e dos seus ancestrais através da Mãezinha e do Zé Manco. Também é nessa época que recebe a missão de levar um recado muto especial para para Nega Florinda e Agontimé, que vivem em São Luiz do Maranhão. Ao chegar em São Luis, Kehinde se instala na Casa das Minas, onde aprende mais ainda sobre voduns e vodunsis, e conhece mais sobre a vida e a cultura dos negros nesta bela cidade do Maranhão. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?  


Ilha Bela - Tribo de Jah - https://www.youtube.com/watch?v=KrI-JOVBq8Y


“Que ilha bela, que linda tela, conheci
Todo molejo, todo chamego, coisa de negro que mora ali
Se é salsa ou rumba balança bumba-meu-boi
Deus te conserve regado a reggae oioioioi
Que a gente segue, tocado a reggae oioioioi


Que ilha bela, que linda tela, conheci
Todo molejo, todo chamego, coisa de negro que mora ali
Se é salsa ou rumba balança bumba-meu-boi
Deus te conserve regado a reggae oioioioi
Que a gente segue, tocado a reggae oioioioi


Quero juçara, que é fruta rara, lambuza a cara e lembra você
E a catuaba, pela calçada, na madrugada até o amanhecer
Na lua cheia, ponta da areia, minha sereia dança feliz
E brilham sobrados, brilham os telhados da minha linda São Luís”


8. Ao retornar para a Bahia, a protagonista decide continuar sua formação religiosa em Cachoeira, cidade que fica no interior da Bahia. A preocupação com a fé e a incrível capacidade de absorver e respeitar diversas culturas religiosas é uma dos aspectos mais interessantes da personalidade de Kehinde. Seu sincretismo religioso é tão grande quanto sua curiosidade, sempre presente nas perguntas sobre política, fatos históricos, cultura, culinária e dança, direcionadas a todos aqueles que a rodeiam. Todas essas informações formam um caldo de cultura que não apenas torna a narrativa mais interessante, como também refletem um pouquinho da diversidade que forma o povo brasileiro. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Lourinha Bombril - Paralamas do Sucesso/Bangalafumenga - https://www.youtube.com/watch?v=Gha5w5gpV9g


“Essa crioula tem o olho azul
Essa lourinha tem cabelo bombril
Aquela índia tem sotaque do Sul
Essa mulata é da cor do Brasil


A cozinheira tá falando alemão
A princesinha tá falando no pé
A italiana cozinhando o feijão
A americana se encantou com Pelé


Häagen-dazs de mangaba
Chateau canela-preta
Cachaça made in Carmo dando a volta no planeta
Caboclo presidente
Trazendo a solução
Livro pra comida, prato pra educação”


9. Mas é em Cachoeira que Kehinde recebe a notícia que dará início à sua longa peregrinação. Após o desespero inicial, a protagonista segue sua intuição e inicia sua jornada indo para São Sebastião do Rio de Janeiro. Lá mora em um cortiço para negros, onde faz novos amigos: dona Balbiana, Piripiri, Mongo, Juana. É lá também onde se encanta com a vida na capital do Império, com suas lojas sofiticadas na Rua Direita e na Rua do Ouvidor; com os saraus e óperas italianas; com as discussões (eternas) sobre política; com a efervescência literária; e com as rodas de capoeira. Também é no Rio de Janeiro que surge um novo amor, que a conquista mostrando suas habilidades de capoeira. Por um período, Kehinde foi feliz - mesmo em sua procura infrutífera. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Preciso me Encontrar - Cartola - https://www.youtube.com/watch?v=5jE2GWa9Sd8
“Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar


Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver”


10. Vem de São Salvador a pista que a leva para São Paulo. Outra vez Kehinde passa por uma dura despedida ao deixar seus amigos e seu amor para trás. A viagem para a vila de São Paulo, um pequeno vilarejo à época, é muito dura, e se mostra como uma jornada ainda mais cansativa ao perceber, após muitas idas e vindas, que ela chegou tarde demais e perdeu o rastro de quem ela procurava. Nossa heroína só encontra frustrações em solo paulista. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Não Existe Amor em SP - Crioulo - https://www.youtube.com/watch?v=f35HluEYpDs


“Não existe amor em SP
Um labirinto místico
Onde os grafites gritam
Não dá pra descrever
Numa linda frase
De um postal tão doce
Cuidado com doce
São Paulo é um buquê
Buquês são flores mortas
Num lindo arranjo
Arranjo lindo feito pra você
Não existe amor em SP”


11. Com a perda das pistas na sua busca, Kehinde retorna para Salvador, onde muitos dos seus amigos morreram, partiram ou estão completamente mudados que ela mal os reconhece - como é o caso da separação dos antes inseparáveis Tico e Hilário. Talvez pela busca frustrada, talvez por não reconhecer mais a São Salvador que um dia amara, nossa protagonista decide iniciar um novo ciclo: voltando para Africa. Durante a travessia, uma vez mais se apaixona ao conhecer John, representante de um comerciante inglês que entende as regras de funcionamento do comércio em África. E novamente a vida recomeça, reencontrando amigos em Savalu que ela havia conhecido quando menina - e que, felizmente, ainda se lembravam dela - e retomando àquilo que ela sabe fazer melhor: usar as oportunidades que aparecem a seu favor, da melhor maneira possível. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Metamorfose Ambulante - Raul Seixas - https://www.youtube.com/watch?v=7VE6PNwmr9g


“Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo


Eu quero dizer
Agora o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou”


12. A vida em África é carcterizada pelo comércio, pela prosperidade e pea nova família. A vida de Kehinde prossegue, com seus altos e baixos (ainda mais considerando as muitas guerras que acontecem em África), mas sempre seguindo em frente, criando seus filhos da melhor maneira que pôde e ajudando muitos outros a constituírem e protegerem a sua família. Kehinde se transforma na “dona Luíza”, fundando a Casas da Bahia, empresa bem-sucedida de construção de casas. Vira uma comerciante famosa e respeitada, politicamente influente, casada com John e mãe dos Ibejis Maria Clara e João. Uma vida boa e próspera. É nesta época que Kehinde rebate o dito “defeito de cor”, ao explicar com um padre francês que desfruta da hospitalidade da sua casa (assim como muitos estrangeiros e nativos também o fizeram):


Não tenho defeito algum e talvez, para mim, ser preta foi, e é, uma grande qualidade, pois se fosse branca não teria me esforçado tanto pra provar do que sou capaz, a vida não teria exigido tanto esforço e recompensada com tanto exito. Eu me sinto mais orgulhosa de ter nascido Kehinde do que sentiria se tivesse nascido padre Clement, um bom homem com certeza, mas que se submetia à necessidade de agradar aos brasileiros ricos de Lagos, Porto Novo e Uidá para se estabelecer com segurança e conforto nessas cidades.” (página 853)


Essa é, pra mim, a maior lição que pode ser tirada da história da protagonista: a capacidade de seguir adiante e conquistar tudo o que quis, mesmo sendo negra, mulher e escrava, num Brasil colônia machista, escravocrata e profundamente violento e arcaico. Sem se desesperar nem trair seus valores, dando valor à amizade, ao amor e ao aprendizado, sem nunca esquecer de sua jornada. Vocês já ouviram sobre isso em algum lugar?


Tocando em Frente - Almir Satler - Paula Fernandes e Leonardo - https://www.youtube.com/watch?v=Jb7LTOMJ3Qg


“Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais


Hoje me sinto mais forte
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei
Ou nada sei


Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs


É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir”


13. Após ser considerada uma empresária bem-sucedida, mediar acordos com reis e ministros, receber missionários de diversos países, conhecer representantes de diversas religiões, estruturar a comunidade de brasileiros (e defender seus direitos, especialmente contra os “selvagens” e interesses comerciais de estrangeiros) enterrar seu marido John, morto por envenenamento (ou seria um feitiço?), criar seus Ibejis, mandando-os para estudar no exterior, morar em Savalu, Lagos, Uidá, conhecer tantas pessoas e ser reconhecida e admirada por tantos em África, Kehinde já no fim da sua vida, recebe a pista final de sua peregrinação. É esta pista, que ficou acidentalmente escondida por mais de uma década, que faz com a “dona Luiza”, já uma senhora de mais de 80 anos, faça sua última viagem - a mais arriscada, dado que já é uma senhora cega e se dirige ao Brasil republicano, afetado por um surto de febre amarela. Onde Kehinde encontra forças para fazer uma jornada tão fatídica?


Roupa Nova -  A Força do Amor - https://www.youtube.com/watch?v=03X8dinHaMA


“Abriu minha visão o jeito que o amor
Tocando o pé no chão, alcança as estrelas
Tem poder de mover as montanhas
Quando quer acontecer, derruba as barreiras


Para o amor não existem fronteiras
Tem a presa quando quer
Não tem hora de chegar
E não vai embora


Chamou minha atenção, a força do amor
Que é livre pra voar, durar para sempre
Quer voar, navegar outros mares
Dá um tempo sem se ver
Mas não se separa”


14. É nesta viagem que Kehinde escreve seu longo relato, para o destinatário mais especial de sua vida. Destinatário, este, que ela nunca encontrou, pois é sem vida que nossa história encontra seu destinatário especial:


Luiz Gama - Coleirinho


“Hoje, triste já não trinas,
Como outrora nos palmares;
Hoje, escravo, nos solares
Não te embala a dúlia brisa;
Nem se casa aos teus gorjeios
O gemer das gotas alvas
— Pelas negras rochas calvas —
Da cascata que desliza.


Não te beija o filho tenro,
Não te inspira a fonte amena,
Nem da lua a luz serena
Vem teus ferros pratear.
Só de sombras carregado,
Da gaiola no poleiro
Vem o tredo cativeiro,
Mágoa e prantos acordar.


Canta, canta Coleirinho,
Canta, canta, o mal quebranta;
Canta, afoga mágoa tanta
Nessa voz de dor partida;
Chora, escravo, na gaiola
Terna esposa, o teu filhinho,
Que, sem pai, no agreste ninho
Lá ficou sem ti, sem vida.”


Seu segundo filho, Omotunde Adeleke Danbiran, conhecido como Luiz Gama, mesmo tendo sido batizado na fé cristã e na fé dos voduns, não conseguiu escapar ao destino da escravidão. Ao ser vendido como escravo aos 10 anos pelo pai, em razão de uma dívida de jogo, acabou indo trabalhar em uma hospedaria em São Paulo, onde permaneceu analfabeto até os 17 anos de idade. Aprendeu a ler através de um hóspede, estudante de direito, que lhe ensinou as primeiras letras. Ao encontrar sua certidão de batismo, o rapaz fugiu e conseguiu conquistar judicialmente a própria liberdade. Assistiu as aulas de Direito como ouvinte e passou a atuar na advocacia em prol dos cativos, sendo já aos 29 anos autor consagrado e considerado "o maior abolicionista do Brasil". Atualmente é considerado um dos expoentes do romantismo brasileiro. Foi um dos raros intelectuais negros no Brasil escravocrata do século XIX, o único autodidata e o único a ter passado pela experiência do cativeiro; pautou sua vida na defesa da liberdade e da república. Faleceu em 1882, 7 anos antes que sua mãe retornasse ao Brasil, em 1889, encerrando sua peregrinação e levando o relato de sua vida. Kehinde sempre soube do quanto seu filho seria especial, mas nunca quis para ele o destino de escravo. Infelizmente, mãe e filho compartilharam a dor da perda, a escravidão e a impossibilidade do reencontro - como ela registrou em seu relato magistral, e como seu filho, Luiz Gama, registrou em seus muitos poemas.

Concluo essa (não tão) breve trajetória sobre “Um defeito de Cor” com a constatação de que sim, há muitas ecos da história de Kehine na constelação musical brasileira. Não acho que seja por coincidência: por mais que sejamos diferentes em nossas origens, formações, personalidades, de alguma forma todo brasileiro é um pouco Kehine/Luísa - e isso, é claro, tinha que aparecer em nossas canções. Na nossa peregrinação, na nossa culinária, na nossa arte, nas nossas paixões, na nossa dor pelas perdas, na nossa revolta contra as injustiças, no nosso carinho pela família e amigos. Não é de se espantar que tantas músicas, em seus mais variados ritmos e momentos históricos, espelham um pouco da trajetória da protagonista desta história. Afinal, é no território onde ficção e realidade se encontram que as Artes vão bebericar para inspirar nossos muito artistas. Quem sabe se as narrativas, as músicas e as poesias nada mais sejam do que formas mais interessantes de contar aquilo que a História parece, por vezes, não saber?