Imagem retirada do site Na margem, Núcleo de Pesquisas Urbanas da UFSCAR
Acabo de ler ‘Quarto de despejo’,
de Maria Carolina de Jesus. Publicado em 1960, o livro é um testemunho em
primeira pessoa da vida pessoal da própria autora – um diário. Mais um diário,
como tantos outros, alguns poderiam alegar. O que torna, entretanto, esta
narrativa um dos maiores best-sellers
do Brasil é o fato de ter sido escrito por uma mulher negra brasileira morando
em uma favela na cidade de São Paulo às margens do Rio Tietê (a favela do
Canindé, posteriormente desapropriada para dar lugar à Marginal Tietê), num
cenário de extrema pobreza. À época, foi bastante impactante para a sociedade o
relato duro e cru, ainda que eivado de momentos poéticos, de uma mulher
favelada, num cenário onde a maioria das pessoas sequer sabia ler.
Esteticamente, gostaria de
cotejá-lo com outras duas obras literárias. A primeira delas é o livro “A
autobiografia do poeta-escravo”, escrito pelo negro escravizado cubano Juan
Francisco Manzano, que se passa no século XIX, e é traduzido para o português
por Alex Castro. De maneira similar a ‘Quarto de despejo’, o livro repercute
por alguns motivos.
O primeiro deles é a
universalidade: isso é bem próprio do que se conhece por ‘literatura de
testemunho’. Nesse tipo de literatura, a experiência particular do personagem
serve apenas como mote para a descrição de um sistema ou de uma situação que é
comum a muitos personagens da mesma categoria. Ainda que possa ser difícil
dissociar a experiência particular do personagem da experiência coletiva, o
chamariz de público para a leitura é a vivência do coletivo, que muitas vezes
acaba por suprimir as idiossincrasias do autor-personagem ao longo da história.
O segundo elemento de repercussão
é o pioneirismo. Juan Francisco Manzano é o único escravo latino-americano a
ter escrito uma autobiografia (há alguns norte-americanos nessa situação e
também o Mahommah Baquaqua, que é africano, mas viveu uma temporada no Brasil e
escreveu sua biografia nos EUA e no Canadá). Maria Carolina de Jesus é a
primeira favelada a escrever um testemunho (a partir de seu próprio ponto de
vista) e publicá-lo, com a ajuda de um repórter que a conheceu no Canindé e se
interessou por sua história. As outras pessoas nessas condições não tinham
tempo/disposição/alfabetização para escrever. É preciso lembrar que, em ambos
os casos, escrever tomava um tempo muito grande, tempo este que era dedicado ao
trabalho escravo (no caso de Manzano), ou à ocupação e catadora de papel (no
caso de Maria Carolina). O tempo dedicado à escrita, portanto, é um tempo
desenquadrado das obrigações do trabalho, e muito custoso, seja em termos de
ser pego em desvio de função e apanhar por isso (no caso de Manzano) ou de não
estar dedicando seu tempo a catar papel e saciar a fome, além de ser vista como
‘denuncista’ pelos vizinhos da favela (no caso de Maria Carolina). A própria
maneira de escrever de ambos, não normatizada pela norma culta da língua,
demonstra o quão difícil é transformar essas vivências em letras. A experiência
da escrita, portanto, tanto para Manzano quanto para Maria Carolina, é um ato
de resistência, e um elemento importantíssimo para a construção da memória,
como geralmente acontece com a escrita de testemunho (quem ousaria negar o
papel do ‘Diário de Anne Frank’ na construção da memória sobre o período
nazista na Alemanha?’).
O terceiro elemento que aproxima
as obras de Manzano e Maria Carolina no que diz respeito à repercussão de suas
obras é o fetiche. Ambos são oriundos das castas mais pobres e marginalizadas
em suas respectivas épocas. Se transmutássemos a realidade do século dezenove
de Manzano e do século vinte de Maria Carolina para o século vinte e um, eles
comporiam o que Jessé Souza chama de ‘a ralé brasileira’. É sobre essa ralé que
se coloca o fetiche das classes mais abastadas. Como vivem os mais pobres? O
que é sentir fome? Como é a vida de quem depende das benesses avulsas de um
senhor? Como é viver sem poder acumular dinheiro, comprando comida à medida que
se trabalha? Todas essas perguntas são apenas pensadas, imaginadas ou
discutidas pelas classes mais ricas. Só os marginalizados é que as vivem, que as
experimentam efetivamente. Dessa maneira, por mais que membros dessa elite
penetrem no submundo da pobreza para contar as suas histórias (como faz Aluísio
de Azevedo em “O Cortiço”, num registro bastante verossímil, apesar de
ficcional; e como também faz Euclides da Cunha, em “Os Sertões”), é só pela
própria voz dos autores-personagens, que vivem e experimentam o que escrevem, que
essas obras se convertem em mercadoria e se vendem ao mundo como uma
possibilidade de experimentar a vida do outro. É esse mesmo fetiche que, ainda
hoje, alimenta o que se conhece por ‘turismo antropológico’, que leva hordas de
estrangeiros às favelas da zona sul carioca montados em jipes com guias locais,
adentrando os becos e vielas da favela como quem desbrava uma mata virgem e se
depara com selvagens.
A outra obra literária que se
relaciona esteticamente ao ‘Quarto de despejo’, ainda que de maneira mais leve,
é “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. No romance de Saramago, é imaginado
um mundo distópico, onde uma grande cegueira afeta a todos, exceto uma pessoa,
a que o autor denomina apenas de ‘a mulher do médico’. Esta personagem, então,
carrega a responsabilidade e a culpa de enxergar em um mundo onde todos são
cegos. No romance de Saramago, a cegueira pouco a pouco vai bestializando os
personagens, desumanizando-os lentamente. A mulher do médico, ao mesmo tempo
que faz parte desse mundo bestializado, de pessoas cegas, é aquela que carrega
algo que os outros não têm, a visão. O fato de enxergar arregimenta para si a
raiva de todos aqueles que não enxergam, somada a uma espécie de esperança
redentora.
De maneira similar, corre a vida
de Maria Carolina. Apesar de ser uma literatura de testemunho, em que os
aspectos particulares de sua personalidade costumeiramente cedem terreno às
percepções descritivas do entorno, fica patente o quanto a autora se projeta de
maneira superior sobre seus vizinhos e colegas de infortúnio. Fica também clara
a lucidez de Maria Carolina, no que diz respeito à honestidade e à moralidade
com a qual conduz seu discurso. Todos os seus vizinhos, os favelados, são
retratados de maneira bestializada: resolvem as coisas na base da força física,
do tiro e da peixeira, comem alimentos do lixo, expõem-se sexualmente em
presença de crianças, etc. Maria Carolina, ao mesmo tempo em que se vê como
superior a essa realidade, precisa realizar concessões para tornar viável sua
vida na favela: precisa conversar e acolher vizinhas, precisa fazer alguma
concessão à conversa fiada na fila para encher as latas d’água, precisa colocar
limites na sua relação com o homens e com os próprios filhos, etc.
Portanto, assim como a mulher do
médico que carrega consigo uma arma redentora (a visão), Maria Carolina também
a carrega (a escrita). Ambas as características acenam para um mundo exterior
mais civilizado, mais culto, menos bestializado. É preciso frisar que as
personagens fazem parte desse mundo bestializado, isto é, o habitam. Mas é como
se elas mediassem um discurso com o lado de fora por causa de suas armas (a
visão e a escrita), que só podem ser acessadas através dessas ferramentas. Essa
mediação as torna, ambas, uma espécie de deus
ex-machina (e é daí que vem a responsabilidade que se lhes imputa), capazes
de modificar o destino de toda a comunidade através do bom uso de suas armas. É
por isso que, tanto no romance de Saramago quanto no diário de Maria Carolina,
é comum o pedido de alguns personagens para que intercedam por eles. Um
personagem coadjuvante de “Ensaio sobre a cegueira” pode pedir à mulher do
médico que diga que horas são, que informe se é dia ou se é noite, assim como
um personagem coadjuvante de ‘Quarto de despejo’ pode pedir que a protagonista escreva
isso ou aquilo no seu diário, na intenção de que alguma coisa a respeito do seu
pedido mude depois de o mesmo ter sido publicado.
Saindo um pouco da análise estética
e entrando na política (mesmo sabendo que toda estética é também política), o
livro traz alguns aspectos bem interessantes, dos quais eu gostaria de marcar
dois em particular.
O primeiro deles é a aceitação de
sua própria negritude por parte da protagonista, mas mais do que isso, a
propagação por escrito de seu orgulho de ser preta. Em uma determinada
passagem, a autora (através de seu eu-lírico) afirma que gosta de ser preta, e
que prefere ser preta a ser branca.
É curioso notar como esse
pensamento, que parece simples na atualidade para quem tem algum conhecimento
sobre os movimentos negros no Brasil, não era a tônica da época. A década de
1950 ocorre apenas duas décadas depois da publicação de ‘Casa-Grande &
Senzala’, publicada no Brasil por Gilberto Freyre na década de 1930 e que faz o
elogio da mestiçagem, opondo-se frontalmente às ideias eugenistas que estavam
em voga durante a Segunda Guerra. Entretanto, é só na década de 1970, isto é,
duas décadas após os fatos narrados por Maria Carolina em seu diário, que
eclodem nos EUA e se disseminam para os outros países periféricos os movimentos
sociais e políticos de valorização da cultura negra, como os Panteras Negras e
o Movimento Black Power (sobre esse assunto, recomendo a leitura do livro
‘Carnaval Ijexá’ (1981), de Antonio Risério, em especial o capítulo ‘Do funk ao
afoxé’, que explica como a estética do funk e do charm norte-americano acabaram por desembocar nos afoxés baianos e
seu blocos de rua e, por sua vez [mas isso o livro não conta por causa de seu
ano publicação], de como isso se transmutou nas micaretas e na axé music dos anos 1990). Portanto, a
valorização da pele preta de Maria Carolina por ela própria, marginalizada e
favelada, longe de um contexto social que favorecesse seu orgulho de raça e sua
própria auto-estima, é um feito considerável. Como o livro obteve bastante
sucesso na década de 1960, é possível, inclusive, que seu discurso tenha
servido como base teórica para os movimentos sociais negros da década seguinte,
mas não tenho conhecimento do assunto para afirmar nada concretamente nesse
sentido.
O segundo aspecto digno de nota,
na minha opinião, é a presença de políticos nas favelas. Tradicionalmente, o
Brasil, através de sua estrutura clientelista, olha para as regiões mais pobres
e mais populosas nas épocas eleitorais. Como cada cidadão vale um voto, e ainda
que se proíbam os analfabetos de votar (como ocorreu, se não me engano, até a
Constituição Federal de 1988), esses lugares, mais marcadamente as favelas, são
lugares de grande importância para os aspirantes aos cargos eletivos.
Em seu diário, Maria Carolina
cita muitos políticos de sua época: o presidente Juscelino Kubistcheck, o governador
de São Paulo, Adhemar de Barros, e alguns deputados. Esses últimos, em
especial, aparecem no diário distribuindo alimentos, sempre em busca de votos.
Em uma das passagens, ela afirma: “Lavei o assoalho porque estou esperando a
visita de um futuro deputado e ele quer que eu faça uns discursos para ele. Ele
disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de abolir as
favelas.”
Esse aspecto da política
eleitoral em ‘Quarto de despejo’ aponta para a discussão de fatos atuais, que
acontecem em 2016. Maria Carolina, mulher, negra e pobre, apresenta em seu
relato os políticos da época, diametralmente opostos a si: são homens, brancos
e ricos.
As eleições de 2016, apesar de
apresentarem uma larga vitória para os segmentos conservadores da sociedade,
trazem um fato novo, que pode ser encarado como uma vitória da esquerda: a
eleição com votação expressiva de vereadoras mulheres, negras e periféricas em
cidades importantes do Brasil.
Esse não é um fato novo. Tivemos
Benedita da Silva, no Rio de Janeiro: mulher, negra, favelada; tivemos também o
índio Mário Juruna, deputado federal brasileiro na década de 1990. Foram,
contudo, fatos isolados na política nacional.
O que acontece em 2016, nesse
exato momento, começa a ter a cara de um movimento. A eleição de Marielle
Franco (mulher, preta, favelada) como a quinta vereadora mais votada do
município do Rio de Janeiro, a eleição de Talíria Petrone (mulher, preta) como
a vereadora mais votada de Niterói, e a de Áurea Carolina (mulher, preta,
periférica), também como a vereadora mais votada em Belo Horizonte, parecem
apontar para um cenário em que a representatividade na política local seja um
valor.
É evidente que as eleições são um
tema complexo e apontam para muitos lugares diferentes (é bastante difícil situar
em um mesmo panorama político as eleições de Marielle Franco como vereadora do
Rio de janeiro e de João Dória como prefeito de São Paulo). Mesmo assim, tenho
a impressão de que, pela primeira vez em muito tempo, a periferia/favela começa
a organizar um movimento de dentro para fora que seja capaz de se articular com
o sistema político e de eleger quadros locais que sejam representativos de suas
realidades.
O que Maria Carolina fez
esteticamente, tomando as rédeas literárias de sua própria realidade, parece
reverberar politicamente em 2016, quando outras mulheres pretas tomam as rédeas
de suas próprias lutas e se inserem indubitavelmente na cena eleitoral.
Aliás, e já finalizando, as
imbricações entre o estético e o político são mesmo muitas. É interessante
abordarmos, nesse sentido, a questão da linguagem: o título do livro escrito
por Maria Carolina de Jesus é “Quarto de despejo – diário de uma favelada”. É
curioso termos um adjetivo para designar quem mora nas favelas. ‘Fa-ve-la-da’.
Temos também termos como ‘suburbano’ e ‘periférico’ (não vou comentar o
‘tijucano’, nem tentem). Mas é curioso que não haja adjetivos para quem habitas
as zonas centrais ou para as zonas mais ricas da cidade (a Zona Sul, no caso do
Rio de Janeiro). Nós, que habitamos essas zonas da cidade, o que somos (além de
privilegiados)? Não somos ‘centrais’, nem ‘zonasúlicos’.
O fato de não ter um nome que nos
designe nos coloca no suprassumo do privilégio, que é o lugar da normalidade. O
normal é morar na Zona Sul, no Centro. É ao outro, ao que se opõe à
normalidade, é que vou imputar um nome: o favelado, o barraqueiro, o farofeiro,
o suburbano. O normal não precisa de um nome que o defina, o normal já é.
O privilégio, alçado à condição
de normalidade (é por isso que quase ninguém o vê, é por isso que é tão difícil
fazer com que as pessoas percebam seus próprios privilégios!) se dá não apenas
por não ter um nome dado à própria condição, mas também por ser aquele que
nomeia os outros. São dois privilégios em um só. É a mais-valia da linguagem!
Alguns movimentos sociais
conseguiram com graus maiores ou menores de sucesso imputar nomes àqueles
percebidos socialmente como normais/privilegiados. O adjetivo ‘hétero’ ou
‘heterossexual’ (em oposição a ‘gay’) tem alguns anos de uso, e percebo nele
uma aceitação crescente (mas pode ser só um viés da minha própria experiência).
O adjetivo ‘cis’, ou ‘cisgênero’ (em oposição a ‘trans’ ou a ‘transexual’)
começou a ser usado há pouco tempo, e não temos como saber se ele vai vingar ou
não. O adjetivo ‘branco’ (em oposição a ‘negro’ ou a ‘preto’, e também em
oposição a ‘índio’ ‘gentio’ ou ‘selvagem’ ao longo da história do Brasil) é bem
compreendido e utilizado, embora ainda seja necessário muito esforço para que
as pessoas brancas assimilem sua branquitude da mesma maneira que as pessoas
pretas são obrigadas a assimilar ‘na marra’ a sua negritude. Se pensarmos bem,
até na relação campo-cidade, existe o adjetivo ‘urbano’ e o pouco utilizado
‘citadino’, em oposição aos agricultores e camponeses.
Mas para as relações desiguais
entre aqueles que habitam as diferentes partes da cidade, os detentores do
privilégio permanecem inominados.
Amparado por essa abordagem
linguística, é possível dizer que, talvez mais do que as questões de gênero e
cor, as desigualdades da urbe e as questões ligadas aos muros internos e
invisíveis da cidade sejam ainda mais problemáticas.
Que o exercício da alteridade
proposto por Maria Carolina, em diálogo com as questões da cor e da
representatividade na política ainda hoje, nos leve a repensar nossas relações
com a cidade.
Assim como o gênero e a cor, a
cidade é também o que somos.