segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Os Generos Alimenticios Deve Ser ao Alcance de Todos

Escultura Ugolino e seus Filhos, de Jean-Baptiste Carpeaux. A expressão de desespero de um pai  sem ter como alimentar seus filhos.


Um século depois do Brasil descrito em Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, Quarto de Despejo, o diário de Carolina Maria de Jesus nos mostra o imprinting da lógica segregadora brasileira. Certamente não é só o Brasil que tem essas desigualdades. Muitas sociedades no mundo são divididas assim. Na British Airways, funcionários não-britânicos não ascendem aos postos mais altos nas cabines das aeronaves. Quem é classificado como equipe de classe econômica, no dia da admissão na companhia, não vai nunca servir na executiva. Mas aqui é tudo mais agudo. A miséria é sistêmica.

Mesmo se considerarmos que muita coisa já melhorou – por exemplo, o mais comum nas grandes favelas hoje são casas de alvenaria sem acabamento; papelão e tábuas são mais raros -, o sistema continua enviesado para desfavorecer os desfavorecidos.  Carolina trabalha sempre e está sempre em falta. É a escravidão por dívida. “Cato papel (...), permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta.” Carolina não tem como sair desse ciclo nefasto de retroalimentação. A perpetuação da pobreza.

Olhando a partir de uma perspectiva sócio-econômica, o livro é um poço de exemplos sobre a perpetuação da pobreza. Logo de cara, os filhos de Carolina são criados sem pai. Mais do que isso, a situação de privação em que eles vivem é precária mesmo em comparação com outros núcleos de famílias monoparentais, pois não contam com avó, tias ou outros parentes que possam auxiliar no cuidado com as crianças. Essas crianças não têm supervisão ou orientação de adultos durante o dia, então é provável que eles cresçam com menos amor durante as horas em que estão sem a mãe. Isto faz muita diferença por exemplo no rendimento escolar delas. Carolina quando chega está cansada demais para ouvir os filhos contarem o que aconteceu no dia, o que aprenderam na escola, valorizarem a própria narrativa e a própria brincadeira. O processo mesmo de subjetivação deles está marcado por essa falta de conversa, de palavra, de legitimação. Neste ponto, quando pensamos que muitas famílias ainda vivem assim, acaba se tornando fundamental a defesa da escola em tempo integral, pois garante, minimamente, alguma presença adulta qualificada para a criança nas horas em que seus pais não estão lá.

Um fator que influencia muito isso, e que não é tão difícil assim de resolver, é a qualidade do transporte público. O tempo gasto no trajeto casa/ trabalho/ casa em última análise é tempo roubado da convivência entre pais e filhos. Este tempo adiciona qualidade à formação das crianças, e pode ser considerado um dos principais fatores iniciais da cota subliminar para brancos e não-pobres. Mas essa cota começa intra-útero.  A nutrição da mãe, a qualidade da assistência pré-natal, o álcool (pessoalmente acho que formas subclínicas de síndrome alcoólica fetal estão presentes de maneira significativa como potenciais redutores de inteligência*).

Depois que nasce, o período de crescimento e formação do bebê requer proteína. Cérebro nenhum vai se desenvolver bem se não tiver um aporte regular de proteína e energia. A perpetuação da pobreza é a baixa ingesta de proteína na infância, que grava os limites cognitivos no hardware de Vera Eunice, João José e José Carlos. Depois de uma determinada idade, o raciocínio deles não vai ser comparável ao dos filhos da dona Julita.  A perpetuação da pobreza se grava no mármore do desenvolvimento cerebral. Impossível não lembrar de Admirável  Mundo Novo, de Aldous Huxley, um dos meus autores favoritos. No mundo futuro do livro, todas as pessoas são geradas e gestadas em laboratório. A partir de determinações superiores guiadas pelas necessidades do sistema, são gerados indivíduos mais ou menos inteligentes. Analogamente, dá para pensar que o capitalismo hoje, com seus mecanismos geradores e perpetuadores de pobreza, atua como um fator produtor de doença e redutor de qualidade daqueles que lhe servirão mais tarde como trabalhadores e consumidores.

O trabalho extenuante de Carolina não garante o mínimo de conforto a ela e a seus filhos. É a prova viva da falsidade do discurso da meritocracia. Por um lado a história de relativo sucesso da Carolina reforça esse discurso. Ela tinha uma natureza que a distanciava dos “favelados”, de quem ela tão amiúde tentava se destacar, ouvindo valsas vienenses por exemplo, mas reconhecendo que também era uma. Carolina se esforçou e conseguiu, por sua índole inteligente e criativa de escritora, se livrar da pobreza. Então permanecer pobre é uma questão de escolha pessoal. Quem não percebe os próprios privilégios pode pensar assim.

O livro faz pensar muito também na questão da mulher. São as mulheres que trabalham e que protagonizam as atividades na favela. Quando se fala em famílias monoparentais, pode-se deduzir que a tal “mono” é uma mulher. As mulheres que vão pegar água na bica. A violência contra a mulher é aberta, e poucos se comovem com histórias corriqueiras de surras, e quase assassinatos. Não conseguindo armazenar dinheiro para viver, Carolina armazena paciência e resignação. Ela se sente sozinha, apesar de estar rodeada de pessoas na mesma condição. O enquadramento capitalista das relações faz com que cada um cuide dos seus próprios afazeres e destinos. Em momento algum no livro é citada alguma forma de associação de moradores ou outra agremiação qualquer voltada ao bem coletivo. Há cacos de uma frágil teia de cooperação, de uma microeconomia de crédito e confiança desmonetarizada, mas que não passa disso, cacos. Pensei agora que solidão e solidariedade têm o mesmo radical.

Carolina desfaz também o mito de que pobre não se preocupa com política. Seu diário tem algumas referências a políticos da época e a conversas sobre política dentro da favela. “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. ” Foi um presidente que passou fome que tirou o Brasil do mapa da fome.

Muito bem, Carolina. Os generos alimenticios deve ser ao alcance de todos.

Talvez o aspecto mais chocante do diário seja o da fome. A fome na terra em que se plantando, tudo dá. A fome como intervenção humana no ambiente, na espécie. Não foi a seca, enchente, escassez. É o desperdício, a ganância, esse motor do capitalismo que deve estar sempre em expansão. Carolina cita a especulação com linguiça. O frigorífico produz linguiça demais, não vende, guarda até o último momento e joga fora, quando não pode mais vender. O valor de uso mais precioso, o do alimento, é zerado e vai embora quando acaba o valor de troca. Se não pode mais vender é lixo. E se é lixo, é comida para Carolina e seus filhos. E para evitar a presença de indesejáveis, inutiliza-se a comida no lixo com creolina. Hoje na enseada de Botafogo vi uns vinte urubus em volta de uma carcaça de tartaruga. Lembrei do documentário Ilha das Flores, acho que do Jorge Furtado (quem não viu, veja. É obrigado). E também em todos os catadores dos lixões, quase indistinguíveis dos urubus.


*A Síndrome Alcoólica Fetal é um conjunto de manifestações presentes em casos em que a mãe ingere quanidades significativas de álcool durante a gestação. O quadro clássico inclui alterações no formato da face (que podem desaparecer com o crescimento), hiperatividade, desatenção e retardo mental. Minha hipótese é que, enquanto esses quadros mais clássicos precisam de grandes quantidades de ácool para se manifestarem, formas mais sutis, talvez apenas como limitadores do desenvolvimento intelectual, possam estar presentes em proporções variadas mesmo quando não se bebe tanto assim. A isso se alia o fato de que o alcoolismo prejudica a ingesta e a absorção de determinadas vitaminas, que são ainda mais importantes para a gestante e seu bebê. 
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domingo, 23 de outubro de 2016

Carolina, vida que teima em estar presente



No livro “Quarto de despejo” o leitor é convidado a acompanhar o cotidiano de uma moradora de uma favela dos anos 1950 a partir de trechos de um diário escrito por ela e editado por um jornalista. A protagonista é Carolina, moradora de Canindé, extinta favela de São Paulo. Não é uma leitura muito agradável. Seja pela forma, com erros de ortografia e concordância, seja pelo conteúdo, obviamente incômodo. Um aspecto marcante é o quanto o texto é repetitivo.

Acho que o primeiramente me fez refletir foram as diferenças entre o que se esperaria encontrar no diário de uma favelada de hoje e o que encontramos no de Carolina. Chama atenção a rotina de pegar água numa bica, a frequência com que a fome aparece e a ausência do poder paralelo do tráfico ou da milícia. Além disso, o alcoolismo é um problema citado, mas não há menção a outros tipos de droga. 

Sobre a violência, ela aparece na forma de brigas e da indigência em si, mas a polícia aparece como uma instância de mediação. Embora a polícia não se revele capaz de resolver de fato os conflitos da favela, está longe de ser considerada causadora de problemas.  O tema do abuso do poder policial não aparece.

Outros aspectos parecem ainda ser familiares aos atuais favelados, como a falta de saneamento e a sujeira (“Ao redor da torneira amanhece cheio de bosta. E quem limpa sou eu. Porque as outras não interessam”), a sensação de marginalização social, de estar no “quarto de despejo” e a descrença nos políticos.

Sobre Carolina em si, é interessante ver como ela pensa sobre as coisas e tentar imaginar de onde ela tira suas ideias. Ela fala muito pouco do passado e de perspectivas para seu futuro. O texto se mantém fiel à proposta de ser um diário de se ater ao presente, de forma quase obsessiva. Mas sabemos que ela migrou de Minas para São Paulo e que gosta de ler jornais e livros, embora deteste gibis, a ponto de surrar seu filho por estar lendo um. Em um trecho ela diz que havia “pegado um livro para ler”, mas não fica claro onde exatamente ela consegue seus livros. Em outro momento ela cita uma conversa com um funcionário da livraria Saraiva, deixando suspeitar que ela compre livros lá. 

Sobre seu círculo íntimo, quase não há menção a familiares, exceto seus filhos, com cujos pais não mais se relaciona, apesar de o “pai da Vera” ser citado algumas vezes. Diz ter se iludido com homens, mas tem um crush que também mereceu ser citado nos seus relatos.

Parece haver por parte de Carolina um respeito pela autoridade. Inclusive é ela que com frequência chama a polícia ou intervém em brigas dos vizinhos. Ela é solidária com os mais pobres que ela e parece se sentir mais responsável que os outros favelados. Em alguns momentos ela se coloca diretamente como diferente deles, fazendo críticas ao comportamento “dos pobres”. Ela diz que “nas favelas os homens são mais tolerantes, mais delicados. As bagunceiras são as mulheres”. Ela não fala como se ela mesma fosse da favela e sim como uma observadora de fora. Isso chama a atenção e se repete em vários outros momentos do livro.

Carolina parece não ter uma religião definida. Não demonstra ter simpatia pelos “crentes”. Ela cita que “os favelados zombam dos conselhos” dos crentes e jogam pedras no barracão onde eles pregam. Ou seja, diferentemente dos dias de hoje, naquele tempo as Igrejas evangélicas não eram muito populares. Por outro lado, Igreja Católica se faz mais presente na vida da favela. Carolina cita que os freis promovem cinema gratuito e tratamento médico. Ela diz não entender como “o Frei Luiz descobriu que os favelados têm chagas”, revelando sua sensação de estarem desamparados pelas autoridades e expressando bem a realidade da época: os pobres não tinham direito à saúde, só podendo contar com a caridade das “Santas Casas de misericórdia”. Não era direito, era misericórdia (mais ou menos como no governo Temer).

Talvez a religião com a qual Carolina mais se identifique seja a espírita. Ela conta que no Centro Espírita as pessoas a recebem sorrindo, sem distinção por sua classe. Lá ela recebe doações de agasalhos e diz gostar de ouvir as palavras de um religioso. Mas Carolina não demonstra ser seguidora propriamente do espiritismo, podendo, afinal, ser considerada como cristã “católica não praticante”.

Notam-se  também os preconceitos de Carolina. Ela afirma que os portugueses não têm educação, são obscenos, pornográficos e estúpidos e pensam ser mais inteligentes que os outros. Sobre um espanhol, diz que não admite que estrangeiro grite com ela. Sobre os ciganos, ela diz que “o cigano é pior que o negro”, mas não fica muito claro o que ela quer dizer com isso. Em outro momento afirma que os ciganos são violentos e diz: “mil vezes os nossos vagabundos do que os ciganos”.

Vale imaginar também o que Carolina pensa sobre os negros, lembrando que ela própria é negra. Uma pista é o contraste com o que ela pensa sobre os judeus. Ela diz que os judeus são perseguidos por serem inteligentes e que o profeta Moisés teria intercedido por eles junto a Deus e que, devido a esse fato, os judeus são quase todos ricos. “Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós”. Essa passagem revela tanto uma sensação de inferioridade intelectual e idealização dos judeus, como também um conceito ingênuo, quase infantil, de Deus. Curioso ela ter preconceito com estrangeiros e ciganos e ter os judeus em tão boa conta. Sabemos que entre o ano de 1929, em que nos deparamos com o antissemitismo aberto de um consagrado intelectual como o Alcântara Machado, e 1955, ano dos relatos de Carolina, fatos significativos aconteceram; mas, de qualquer forma, achei surpreendente.

Além desses trechos, a questão racial pouco aparece. Ela chega a citar que um vizinho seria um “negro preto” e não fica claro o que isso significa exatamente. (edit: depois de ler o texto do Igor, em que ele cita a passagem em que Carolina se orgulha de sua negritude, eu me lembrei disso. Bem, não vou problematizar isso agora...rs).

Sobre política, também temos apenas algumas pistas sobre as ideias de Carolina. Ela diz que as mulheres da favela fazem intriga como “Carlos Lacerda”, famoso opositor de Getúlio Vargas, mas não fala nada do próprio Vargas. Ao citar homens simpáticos ao comunismo ela diz que o “custo de vida faz o operário perder a simpatia pela democracia”, mas também não deixa clara a sua opinião. Em outro trecho ela compara os atacadistas paulistanos aos imperadores romanos, e diz que eles atacam os pobres pela fome da mesma forma que os imperadores atacavam os cristãos. Uma imagem bastante forte, por sinal. É intrigante o trecho em que ela cita ter ficado nervosa ao contemplar o “dinheiro de alumínio”, que ela critica por valer menos que os “gêneros”. Confesso que não entendi e gostaria de entender (rs).

Para finalizar, vale lembrar que Carolina fala em vários momentos, desde o início dos relatos, que deseja publicar seu diário. Não fica muito claro o porquê desse desejo. Em certos momentos ela parece usar isso como uma defesa contra algumas pessoas, que demonstram medo de serem difamadas. Não me lembro de ter lido alguma passagem em que ela diga que o diário seria uma forma de ela melhorar de vida ou ficar rica. É possível que ela tivesse essa motivação, mas, novamente, o foco em relatar o cotidiano é o que fica do livro. Carolina teima em estar no presente, e teima em se fazer presente no mundo por meio de sua escrita. Mais do que os grandes escritores que saem da vida pra imortalidade literária, Carolina sai da insignificância pra imortalidade. Um feito e tanto.


PS: gostaria de contar uma coincidência. Estive em São Paulo no início do ano e visitei o Ibirapuera e lá na parte de fora do museu Afro Brasil eu vi uma exposição em homenagem justamente à Carolina Maria de Jesus. Eu passei muito rapidamente e até fiz questão de tirar foto com um livro gigante e pensei em depois procurar saber mais sobre ela. Porém, chegou a roda viva e me esqueci completamente disso, inclusive tinha esquecido o nome dela (sou péssima com nomes) só tendo lembrado desse fato agora, depois de ter lido o livro!

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A cidade e o outro

Imagem retirada do site Na margem, Núcleo de Pesquisas Urbanas da UFSCAR

Acabo de ler ‘Quarto de despejo’, de Maria Carolina de Jesus. Publicado em 1960, o livro é um testemunho em primeira pessoa da vida pessoal da própria autora – um diário. Mais um diário, como tantos outros, alguns poderiam alegar. O que torna, entretanto, esta narrativa um dos maiores best-sellers do Brasil é o fato de ter sido escrito por uma mulher negra brasileira morando em uma favela na cidade de São Paulo às margens do Rio Tietê (a favela do Canindé, posteriormente desapropriada para dar lugar à Marginal Tietê), num cenário de extrema pobreza. À época, foi bastante impactante para a sociedade o relato duro e cru, ainda que eivado de momentos poéticos, de uma mulher favelada, num cenário onde a maioria das pessoas sequer sabia ler.

Esteticamente, gostaria de cotejá-lo com outras duas obras literárias. A primeira delas é o livro “A autobiografia do poeta-escravo”, escrito pelo negro escravizado cubano Juan Francisco Manzano, que se passa no século XIX, e é traduzido para o português por Alex Castro. De maneira similar a ‘Quarto de despejo’, o livro repercute por alguns motivos.

O primeiro deles é a universalidade: isso é bem próprio do que se conhece por ‘literatura de testemunho’. Nesse tipo de literatura, a experiência particular do personagem serve apenas como mote para a descrição de um sistema ou de uma situação que é comum a muitos personagens da mesma categoria. Ainda que possa ser difícil dissociar a experiência particular do personagem da experiência coletiva, o chamariz de público para a leitura é a vivência do coletivo, que muitas vezes acaba por suprimir as idiossincrasias do autor-personagem ao longo da história.

O segundo elemento de repercussão é o pioneirismo. Juan Francisco Manzano é o único escravo latino-americano a ter escrito uma autobiografia (há alguns norte-americanos nessa situação e também o Mahommah Baquaqua, que é africano, mas viveu uma temporada no Brasil e escreveu sua biografia nos EUA e no Canadá). Maria Carolina de Jesus é a primeira favelada a escrever um testemunho (a partir de seu próprio ponto de vista) e publicá-lo, com a ajuda de um repórter que a conheceu no Canindé e se interessou por sua história. As outras pessoas nessas condições não tinham tempo/disposição/alfabetização para escrever. É preciso lembrar que, em ambos os casos, escrever tomava um tempo muito grande, tempo este que era dedicado ao trabalho escravo (no caso de Manzano), ou à ocupação e catadora de papel (no caso de Maria Carolina). O tempo dedicado à escrita, portanto, é um tempo desenquadrado das obrigações do trabalho, e muito custoso, seja em termos de ser pego em desvio de função e apanhar por isso (no caso de Manzano) ou de não estar dedicando seu tempo a catar papel e saciar a fome, além de ser vista como ‘denuncista’ pelos vizinhos da favela (no caso de Maria Carolina). A própria maneira de escrever de ambos, não normatizada pela norma culta da língua, demonstra o quão difícil é transformar essas vivências em letras. A experiência da escrita, portanto, tanto para Manzano quanto para Maria Carolina, é um ato de resistência, e um elemento importantíssimo para a construção da memória, como geralmente acontece com a escrita de testemunho (quem ousaria negar o papel do ‘Diário de Anne Frank’ na construção da memória sobre o período nazista na Alemanha?’).

O terceiro elemento que aproxima as obras de Manzano e Maria Carolina no que diz respeito à repercussão de suas obras é o fetiche. Ambos são oriundos das castas mais pobres e marginalizadas em suas respectivas épocas. Se transmutássemos a realidade do século dezenove de Manzano e do século vinte de Maria Carolina para o século vinte e um, eles comporiam o que Jessé Souza chama de ‘a ralé brasileira’. É sobre essa ralé que se coloca o fetiche das classes mais abastadas. Como vivem os mais pobres? O que é sentir fome? Como é a vida de quem depende das benesses avulsas de um senhor? Como é viver sem poder acumular dinheiro, comprando comida à medida que se trabalha? Todas essas perguntas são apenas pensadas, imaginadas ou discutidas pelas classes mais ricas. Só os marginalizados é que as vivem, que as experimentam efetivamente. Dessa maneira, por mais que membros dessa elite penetrem no submundo da pobreza para contar as suas histórias (como faz Aluísio de Azevedo em “O Cortiço”, num registro bastante verossímil, apesar de ficcional; e como também faz Euclides da Cunha, em “Os Sertões”), é só pela própria voz dos autores-personagens, que vivem e experimentam o que escrevem, que essas obras se convertem em mercadoria e se vendem ao mundo como uma possibilidade de experimentar a vida do outro. É esse mesmo fetiche que, ainda hoje, alimenta o que se conhece por ‘turismo antropológico’, que leva hordas de estrangeiros às favelas da zona sul carioca montados em jipes com guias locais, adentrando os becos e vielas da favela como quem desbrava uma mata virgem e se depara com selvagens.

A outra obra literária que se relaciona esteticamente ao ‘Quarto de despejo’, ainda que de maneira mais leve, é “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. No romance de Saramago, é imaginado um mundo distópico, onde uma grande cegueira afeta a todos, exceto uma pessoa, a que o autor denomina apenas de ‘a mulher do médico’. Esta personagem, então, carrega a responsabilidade e a culpa de enxergar em um mundo onde todos são cegos. No romance de Saramago, a cegueira pouco a pouco vai bestializando os personagens, desumanizando-os lentamente. A mulher do médico, ao mesmo tempo que faz parte desse mundo bestializado, de pessoas cegas, é aquela que carrega algo que os outros não têm, a visão. O fato de enxergar arregimenta para si a raiva de todos aqueles que não enxergam, somada a uma espécie de esperança redentora.

De maneira similar, corre a vida de Maria Carolina. Apesar de ser uma literatura de testemunho, em que os aspectos particulares de sua personalidade costumeiramente cedem terreno às percepções descritivas do entorno, fica patente o quanto a autora se projeta de maneira superior sobre seus vizinhos e colegas de infortúnio. Fica também clara a lucidez de Maria Carolina, no que diz respeito à honestidade e à moralidade com a qual conduz seu discurso. Todos os seus vizinhos, os favelados, são retratados de maneira bestializada: resolvem as coisas na base da força física, do tiro e da peixeira, comem alimentos do lixo, expõem-se sexualmente em presença de crianças, etc. Maria Carolina, ao mesmo tempo em que se vê como superior a essa realidade, precisa realizar concessões para tornar viável sua vida na favela: precisa conversar e acolher vizinhas, precisa fazer alguma concessão à conversa fiada na fila para encher as latas d’água, precisa colocar limites na sua relação com o homens e com os próprios filhos, etc.

Portanto, assim como a mulher do médico que carrega consigo uma arma redentora (a visão), Maria Carolina também a carrega (a escrita). Ambas as características acenam para um mundo exterior mais civilizado, mais culto, menos bestializado. É preciso frisar que as personagens fazem parte desse mundo bestializado, isto é, o habitam. Mas é como se elas mediassem um discurso com o lado de fora por causa de suas armas (a visão e a escrita), que só podem ser acessadas através dessas ferramentas. Essa mediação as torna, ambas, uma espécie de deus ex-machina (e é daí que vem a responsabilidade que se lhes imputa), capazes de modificar o destino de toda a comunidade através do bom uso de suas armas. É por isso que, tanto no romance de Saramago quanto no diário de Maria Carolina, é comum o pedido de alguns personagens para que intercedam por eles. Um personagem coadjuvante de “Ensaio sobre a cegueira” pode pedir à mulher do médico que diga que horas são, que informe se é dia ou se é noite, assim como um personagem coadjuvante de ‘Quarto de despejo’ pode pedir que a protagonista escreva isso ou aquilo no seu diário, na intenção de que alguma coisa a respeito do seu pedido mude depois de o mesmo ter sido publicado.

Saindo um pouco da análise estética e entrando na política (mesmo sabendo que toda estética é também política), o livro traz alguns aspectos bem interessantes, dos quais eu gostaria de marcar dois em particular.

O primeiro deles é a aceitação de sua própria negritude por parte da protagonista, mas mais do que isso, a propagação por escrito de seu orgulho de ser preta. Em uma determinada passagem, a autora (através de seu eu-lírico) afirma que gosta de ser preta, e que prefere ser preta a ser branca.

É curioso notar como esse pensamento, que parece simples na atualidade para quem tem algum conhecimento sobre os movimentos negros no Brasil, não era a tônica da época. A década de 1950 ocorre apenas duas décadas depois da publicação de ‘Casa-Grande & Senzala’, publicada no Brasil por Gilberto Freyre na década de 1930 e que faz o elogio da mestiçagem, opondo-se frontalmente às ideias eugenistas que estavam em voga durante a Segunda Guerra. Entretanto, é só na década de 1970, isto é, duas décadas após os fatos narrados por Maria Carolina em seu diário, que eclodem nos EUA e se disseminam para os outros países periféricos os movimentos sociais e políticos de valorização da cultura negra, como os Panteras Negras e o Movimento Black Power (sobre esse assunto, recomendo a leitura do livro ‘Carnaval Ijexá’ (1981), de Antonio Risério, em especial o capítulo ‘Do funk ao afoxé’, que explica como a estética do funk e do charm norte-americano acabaram por desembocar nos afoxés baianos e seu blocos de rua e, por sua vez [mas isso o livro não conta por causa de seu ano publicação], de como isso se transmutou nas micaretas e na axé music dos anos 1990). Portanto, a valorização da pele preta de Maria Carolina por ela própria, marginalizada e favelada, longe de um contexto social que favorecesse seu orgulho de raça e sua própria auto-estima, é um feito considerável. Como o livro obteve bastante sucesso na década de 1960, é possível, inclusive, que seu discurso tenha servido como base teórica para os movimentos sociais negros da década seguinte, mas não tenho conhecimento do assunto para afirmar nada concretamente nesse sentido.

O segundo aspecto digno de nota, na minha opinião, é a presença de políticos nas favelas. Tradicionalmente, o Brasil, através de sua estrutura clientelista, olha para as regiões mais pobres e mais populosas nas épocas eleitorais. Como cada cidadão vale um voto, e ainda que se proíbam os analfabetos de votar (como ocorreu, se não me engano, até a Constituição Federal de 1988), esses lugares, mais marcadamente as favelas, são lugares de grande importância para os aspirantes aos cargos eletivos.

Em seu diário, Maria Carolina cita muitos políticos de sua época: o presidente Juscelino Kubistcheck, o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e alguns deputados. Esses últimos, em especial, aparecem no diário distribuindo alimentos, sempre em busca de votos. Em uma das passagens, ela afirma: “Lavei o assoalho porque estou esperando a visita de um futuro deputado e ele quer que eu faça uns discursos para ele. Ele disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de abolir as favelas.”

Esse aspecto da política eleitoral em ‘Quarto de despejo’ aponta para a discussão de fatos atuais, que acontecem em 2016. Maria Carolina, mulher, negra e pobre, apresenta em seu relato os políticos da época, diametralmente opostos a si: são homens, brancos e ricos.

As eleições de 2016, apesar de apresentarem uma larga vitória para os segmentos conservadores da sociedade, trazem um fato novo, que pode ser encarado como uma vitória da esquerda: a eleição com votação expressiva de vereadoras mulheres, negras e periféricas em cidades importantes do Brasil.

Esse não é um fato novo. Tivemos Benedita da Silva, no Rio de Janeiro: mulher, negra, favelada; tivemos também o índio Mário Juruna, deputado federal brasileiro na década de 1990. Foram, contudo, fatos isolados na política nacional.

O que acontece em 2016, nesse exato momento, começa a ter a cara de um movimento. A eleição de Marielle Franco (mulher, preta, favelada) como a quinta vereadora mais votada do município do Rio de Janeiro, a eleição de Talíria Petrone (mulher, preta) como a vereadora mais votada de Niterói, e a de Áurea Carolina (mulher, preta, periférica), também como a vereadora mais votada em Belo Horizonte, parecem apontar para um cenário em que a representatividade na política local seja um valor.

É evidente que as eleições são um tema complexo e apontam para muitos lugares diferentes (é bastante difícil situar em um mesmo panorama político as eleições de Marielle Franco como vereadora do Rio de janeiro e de João Dória como prefeito de São Paulo). Mesmo assim, tenho a impressão de que, pela primeira vez em muito tempo, a periferia/favela começa a organizar um movimento de dentro para fora que seja capaz de se articular com o sistema político e de eleger quadros locais que sejam representativos de suas realidades.

O que Maria Carolina fez esteticamente, tomando as rédeas literárias de sua própria realidade, parece reverberar politicamente em 2016, quando outras mulheres pretas tomam as rédeas de suas próprias lutas e se inserem indubitavelmente na cena eleitoral.

Aliás, e já finalizando, as imbricações entre o estético e o político são mesmo muitas. É interessante abordarmos, nesse sentido, a questão da linguagem: o título do livro escrito por Maria Carolina de Jesus é “Quarto de despejo – diário de uma favelada”. É curioso termos um adjetivo para designar quem mora nas favelas. ‘Fa-ve-la-da’. Temos também termos como ‘suburbano’ e ‘periférico’ (não vou comentar o ‘tijucano’, nem tentem). Mas é curioso que não haja adjetivos para quem habitas as zonas centrais ou para as zonas mais ricas da cidade (a Zona Sul, no caso do Rio de Janeiro). Nós, que habitamos essas zonas da cidade, o que somos (além de privilegiados)? Não somos ‘centrais’, nem ‘zonasúlicos’.

O fato de não ter um nome que nos designe nos coloca no suprassumo do privilégio, que é o lugar da normalidade. O normal é morar na Zona Sul, no Centro. É ao outro, ao que se opõe à normalidade, é que vou imputar um nome: o favelado, o barraqueiro, o farofeiro, o suburbano. O normal não precisa de um nome que o defina, o normal já é.

O privilégio, alçado à condição de normalidade (é por isso que quase ninguém o vê, é por isso que é tão difícil fazer com que as pessoas percebam seus próprios privilégios!) se dá não apenas por não ter um nome dado à própria condição, mas também por ser aquele que nomeia os outros. São dois privilégios em um só. É a mais-valia da linguagem!

Alguns movimentos sociais conseguiram com graus maiores ou menores de sucesso imputar nomes àqueles percebidos socialmente como normais/privilegiados. O adjetivo ‘hétero’ ou ‘heterossexual’ (em oposição a ‘gay’) tem alguns anos de uso, e percebo nele uma aceitação crescente (mas pode ser só um viés da minha própria experiência). O adjetivo ‘cis’, ou ‘cisgênero’ (em oposição a ‘trans’ ou a ‘transexual’) começou a ser usado há pouco tempo, e não temos como saber se ele vai vingar ou não. O adjetivo ‘branco’ (em oposição a ‘negro’ ou a ‘preto’, e também em oposição a ‘índio’ ‘gentio’ ou ‘selvagem’ ao longo da história do Brasil) é bem compreendido e utilizado, embora ainda seja necessário muito esforço para que as pessoas brancas assimilem sua branquitude da mesma maneira que as pessoas pretas são obrigadas a assimilar ‘na marra’ a sua negritude. Se pensarmos bem, até na relação campo-cidade, existe o adjetivo ‘urbano’ e o pouco utilizado ‘citadino’, em oposição aos agricultores e camponeses.

Mas para as relações desiguais entre aqueles que habitam as diferentes partes da cidade, os detentores do privilégio permanecem inominados.

Amparado por essa abordagem linguística, é possível dizer que, talvez mais do que as questões de gênero e cor, as desigualdades da urbe e as questões ligadas aos muros internos e invisíveis da cidade sejam ainda mais problemáticas.

Que o exercício da alteridade proposto por Maria Carolina, em diálogo com as questões da cor e da representatividade na política ainda hoje, nos leve a repensar nossas relações com a cidade.
Assim como o gênero e a cor, a cidade é também o que somos.