terça-feira, 31 de agosto de 2021

Uma resenha



“O privilégio da servidão”, de Ricardo Antunes, é um livro difícil. Suas mais de 300 páginas se arrastam de maneira lenta. A proposta é boa: contar a história recente do trabalho no Brasil, apontando seus principais tensionamentos e conflitos na nossa realidade hoje. O modo de fazer isso, contudo, ainda que bem intencionado, funcionou apenas em parte. O livro é construído como uma sequência de capítulos que foram escritos de maneira independente, e que foram sendo publicados em periódicos e congressos aqui e ali.

A tentativa do autor (e de alguns coautores que surgem ao longos capítulos) de criar a ‘proposta livro’, encadeando os capítulos e alterando neles algum texto, gerou antes um amálgama no qual se permanece enxergando cada uma das partes que o compõem do que um todo coeso. Esse problema estrutural se acentua do meio para o final, em que os eventos narrados estão muito próximos do momento da escrita. Dessa maneira, nos últimos capítulos, estamos sempre ‘saltando’ aqui e ali na temporalidade, sem saber exatamente o tempo em que o texto é escrito, ou, ainda pior: sabendo, e vendo que o desenho proposto para o então presente não se configurou no futuro, gerando uma espécie de futuro do pretérito que é a um só tempo impreciso e enfadonho.

Deixemos de lado, por ora, os defeitos, e falemos sobre o livro em si. Ricardo Antunes nos apresenta o apocalipse do mundo do trabalho e, em última instância, do capitalismo em si, entendendo-se aí o apocalipse não como fim, mas como tragédia. O autor nos apresenta como o capitalismo no mundo cruza o modelo fordista em direção ao modelo toyotista, flexibilizando as relações de trabalho, e dilacerando os vínculos / contratos trabalhistas. A história é contada de um ponto de vista global, mas apresenta o caso brasileiro em sua singularidade, destacando suas idiossincrasias em relação ao modo como as lutas operárias aqui se estabeleceram, e de como o sindicalismo, em suas mais variadas vertentes, veio operando as relações e as lutas entre os trabalhadores e as empresas ao longo do tempo no Brasil (passando, naturalmente, pela ascensão de um líder sindical ao comando do país).

É curioso notar como essa passagem do fordismo ao toyotismo é colocada pelo autor, que sempre o faz a partir do ponto de vista dos trabalhadores. Estes, apesar de sua história de luta organizada há pelo menos dois séculos, acabaram sempre sendo impelidos, ao longo da história, a se submeter à lógica do capital.

A temática da transição do modelo fordista ao toyotista não me é estranha. Sou engenheiro de produção, com mestrado e doutorado na mesma área. Considerando o tempo para obtenção de cada um desses diplomas, totalizo dez anos de exposição quase ininterrupta a esses assuntos. Contudo, em todo esse tempo, raras foram as vezes em que foi apresentado a mim, na esfera acadêmica, o outro lado dos fatos. A engenharia de produção, durante todo este tempo, sempre (ou quase sempre) me apresentou o lado patronal dessa história. Repito: em dez anos, nas mais sofisticadas esferas de discussão sobre o assunto, foram muito raras as vezes em que esse tema se apresentou do ponto de vista dos trabalhadores (acho que tive um único professor, já no doutorado, que colocou esta abordagem).

Durante minha formação, os livros-texto sobre o assunto não apresentaram discussões: trouxeram as suas (supostas) verdades. A maior parte deles são traduções de um conhecimento produzido na metrópole, os EUA. Sempre colocados como ‘gurus’, ‘papas’ ou ‘bíblias’, os livros conhecidos por seus sobrenomes não fazem mais do que apresentar as mesmas informações, com uma leve variação de escrita e ali. São eles: Slack, Kotler, Kaplan & Norton, Mintzberg, etc. Para não dizer que não falei da produção nacional, coloque-se nesta conta Chiavenato, possivelmente o autor mais vendido de livros técnicos em Administração no Brasil e que muito provavelmente deve ter uma equipe grande de redatores ou ‘ghost writers’ que fazem a franquia Chiavenato crescer no país.

Ainda que eu citasse outros autores, existe uma verdade deste ‘conhecimento’ que não se altera. Está lá sempre o mesmo ponto de vista, no qual o ‘engenheiro de produção’ ou o ‘administrador’ é sempre convocado a resolver problemas e desenvolver soluções para as empresas. Esta verdade ignora que, salvo raras exceções (nas quais esse profissionais são efetivamente os donos dos meios de produção) na maior parte das vezes esses profissionais também são empregados das corporações, trabalhadores a colocar sua força de trabalho a serviço do capital.

Esse mesmo ponto de vista martelado na minha cabeça por dez anos (repito: dez anos!) é capaz de produzir uma verdade. Seria muito mais fácil para mim, evidentemente, aceitar essa verdade e reproduzi-la, em vez de questioná-la em seus métodos, suas intenções e seus porquês. Contudo, sorte: não me tornei escravo dessas informações. Sou, em última análise, como alguém que foi exposto por dez anos a toda a sorte de variedade midiática de produção de verdades (sempre a mesma verdade), tais como Jornal Nacional, Jornal O Globo, Folha de São Paulo, Estadão e Valor Econômico e que, a despeito da defenestração diuturna do PT por esse oligopólio midiático, chega lá na urna e, tchã-rã, dedinho no 13.

É curiosa essa força do PT, partido que nasce do trabalho e da confrontação do trabalho ao capital e que, malgrado toda a articulação política que tenha feito durante seus anos de governo, foi achincalhado por mais de cinco anos TODOS OS DIAS e está aí, cotadíssimo pela população em uma futura eleição presidencial, ainda que a XP afirme que as bolsas vão cair muito e que vai ser muito ruim para a economia, e que o William Bonner faça uma cara muito séria dizendo que ‘a operação Lava-Jato (...)’ qualquer coisa, e que o editorial do jornal que falava em uma escolha muito difícil fale agora na construção de uma terceira via. As pessoas parecem querer de volta o PT.

Essa discussão sobre o PT, e sobre seu retorno à cena política brasileira apesar de sua diminuição recente em termos de quantidade de políticos eleitos (tanto no Executivo como no Legislativo), é importante por dois motivos.

Primeiro, porque o autor de ‘O privilégio da servidão’ parece não reconhecer a imensa mudança que se deu nos governos do PT em relação aos governos anteriores, de direita ou centro-direita. Entendo sua posição hipercrítica em relação aos governos do PT não terem alterado a lógica, o modus operandi, da produção capitalista. Mas todas as conquistas desses quatorze anos de governo petista para a população brasileira ou não são apresentadas ou são apresentadas de maneira muito diminuída.

Tomemos como exemplo a política de valorização real do salário-mínimo. Os governos do PT foram o primeiro governo em muito tempo que implementaram uma política de valorização do salário-mínimo no Brasil. Ainda assim, Ricardo Antunes: “Por outro lado. permanecia aviltante o salário-mínimo brasileiro. Dilma, em seu primeiro ano de mandato, 2011, foi taxativa em manter a proposta de 545 reais, demonstrando que sua política de combate à fome se mantinha no campo do puro assistencialismo, sendo incapaz de tocar no lucro do grande capital, do qual o governo Lula era servo exemplar. (...) [O governo do PT] implementou uma política social assistencialista, associada a uma pequena valorização do salário-mínimo.” O salário-mínimo em 2016, após os sucessivos aumentos reais do governo Dilma Rousseff durante a condução de seu mandato duramente interrompido, estava em 880 reais, sofrendo valorização real no período. Por que não citar os aumentos sucessivos do salário-mínimo, com valorização real em todos os anos seguintes do governo Dilma, citando apenas o momento de estabilidade deste valor, no primeiro ano de seu mandato? Por que não citou que o governo Dilma transformou o aumento real do salário mínimo em seus aspectos estruturais, fazendo com que o mesmo deixasse de ser concedido via Medida Provisória e passasse a ser concedido através de Lei?

Segue o autor, analisando o golpe de 2016: “Mas é preciso enfatizar que a recusa e a denúncia do golpe – uma vez que não há, até o presente, evidência clara de crime cometido por Dilma em seu atual mandato – não podem significar aquiescência com a tragédia do PT no poder, em todas as suas dimensões.” Algumas páginas adiante, Ricardo Antunes coloca outra frase enfática na mesma direção, ao afirmar, sobre as jornadas de junho de 2013: “A realidade brasileira começava então a ser desnudada, em profundidade e, com ela, o fracasso social e político dos governos do PT.”

É preciso, nesse caso, ponderar algumas coisas. Ricardo Antunes tem suas justificativas para ‘bater’ nos governos do PT. Uma delas é que ele tem razão ao afirmar que os governos petistas não alteraram estruturalmente o sistema produtivo no Brasil. Não alteraram mesmo, e, olhando pelo retrovisor, não consigo vislumbrar essa alteração estrutural como uma possibilidade. A outra razão é que Ricardo Antunes ocupa o lugar da intelectualidade. É seu papel jogar as lutas e as discussões sempre mais à frente, em direção às utopias. O mundo real, que não vai mesmo alcançá-las, será sempre capaz de ir mais longe quanto mais longe forem os projetos e os sonhos. É muito diferente do lugar de quem entra no jogo político e precisa fazer as coisas acontecerem. Cada um tem, bem demarcado, o seu papel.

A mim, em particular, tem cansado muito esse papel de uma intelectualidade que pensa a política brasileira como um jogo em que uma revolução é sempre possível. Não que ela não seja. Pode ser, a verdade é que ninguém sabe. Lembro que logo após as jornadas de 2013, o que não faltou foram análises e comentários políticos de um monte de gente (intelectuais ou não) que se debruçavam sobre os fatos. Todo mundo só viu as condições de acontecimento do fenômeno quando o fenômeno, ele mesmo, já tinha acontecido.

O fato é que eu também quero acreditar na revolução mas, enquanto isso, as pessoas vivem. E se debatem com seus salários, que são pequenos. E, por isso, a política de valorização do salário-mínimo é importante enquanto o jogo acontece. Enquanto a revolução não acontece as pessoas têm contas pra pagar e uma vida para viver. Não faço aqui nenhuma apologia de um individualismo que passe ao largo das lutas coletivas (ao contrário, na verdade). Mas quero reforçar a importância do papel que os governos têm na vida das pessoas na duração do hoje, do agora. Nesse sentido, parece bastante infantil que um livro publicado em 2020 (e, cujos capítulos, ainda que falem de um tempo presente que já passou, foram revisados e compõem um todo publicado em 2020), fale de “tragédia do PT no poder, em todas as suas dimensões” e de “fracasso social e político dos governos do PT”. Ricardo Antunes não vê o tamanho do problema que temos hoje?

Portanto, o que me incomoda mesmo é a ‘autocrítica do outro’. É fácil falar mal do PT, um partido que governou o Brasil por 14 anos. Mas é preciso reconhecer que, apesar de todas as porradas que levou, o partido está aí na briga das próximas eleições, com recorde de registro de filiações. Segue sendo o maior partido político da América Latina e permanece como um polo aglutinador da política à esquerda no Brasil e no mundo. A luta hoje é contra o fascismo e mesmo o PSOL já conseguiu perceber isso, cogitando uma aliança com o PT para 2022. Ricardo Antunes compra um discurso ‘purista’ de ‘ética na política’ e ‘contra a corrupção’ que, no frigir dos ovos, acaba por dar a volta em 360º e se irmana aos discursos da antipolítica e do obscurantismo lava-jatista. Respeito sua posição de intelectual, mas penso não haver clima para alimentar nenhum tipo de antipetismo no Brasil.

Nesse sentido, e considerando as possibilidades de ‘autocrítica do outro’, é importante mencionar outros problemas que o texto apresenta em relação às análises políticas mais recentes (especialmente sobre as jornadas de junho de 2013 e sobre os governos do PT).

É evidente que o autor olha para o mundo e o julga a partir de suas próprias lentes. Seu foco de estudo é o mundo do trabalho e todas as suas análises partem desse eixo de pensamento. Contudo, dada a complexidade dos problemas sociopolíticos apresentados, é possível notar uma espécie de ‘cegueira seletiva’ do autor, pensando e ‘resolvendo’ o mundo sempre através deste prisma. Dois aspectos dessa cegueira seletiva saltam aos olhos.

O primeiro deles tem a ver com a discussão sobre as identidades. Verdade seja dita, Ricardo Antunes coloca essa questão de que os sindicatos e as lutas das classes trabalhadores devem abarcar as questões de gênero, de raça/etnia, de migração, etc. Contudo, todas as vezes que o autor menciona esse ponto, sinto como se ele quisesse subjugar essa discussão identitária ao mundo do trabalho. É como se ali houvesse uma lacuna de pensamento, que não é capaz de reconhecer que as lutas identitárias pudessem também ter protagonismo nas lutas anticapitalistas. É como se as identidades fossem uma espécie de ‘apêndice’ das lutas de classe e que só possuíssem legitimidade quando subjugadas a ela. Essa cegueira seletiva, que não reconhece as potências legítimas que não perpassam diretamente o mundo do trabalho, faz com que, por exemplo, um dos textos mais citados pelo autor seja “Racismo e sindicalismo”, de Jair Batista da Silva, mas que a discussão sobre o racismo no trabalho não apareça de maneira estruturada sequer uma vez. Ou seja, Antunes leu ‘racismo e sindicalismo’, mas só apreendeu ‘sindicalismo’, não conseguindo manejar e/ou problematizar o conceito de ‘racismo’ em nenhum momento do texto. Outra coisa: o termo ‘transformismo’ foi usada reiteradas vezes, em tom jocoso para se referir ao PT. O uso do termo pelo autor está referendado por uma leitura de Maquiavel, que propõe a utilização desse termo quando da conversão de um partido político de esquerda em um suposto “Partido da Ordem”. Mas o que Ricardo Antunes ignora é que o termo ‘transformismo’ tem outro significado, remetendo à prática de ‘usar roupas de mulher’ e de ‘se travestir’, quando as identidades trans estavam menos assentadas no imaginário político LGBTQIA+. O termo ‘transformista’, muito popular na década de 1980, se referia a essa pessoa, então ‘um homem vestido de mulher’ para uma sociedade que não aceitava a existência de pessoas trans, e que hoje, uma vez em desuso, encontra aproximações possíveis nas estéticas e práticas ‘crossdresser’ e ‘drag queen’. Portanto, quando utiliza o termo ‘transformismo’ num tom jocoso, o que temos são duas possibilidades. Ou Ricardo Antunes conhece o significado do termo para além do que postula Maquiavel e, nesse caso, ao utilizá-lo, está sendo deliberadamente homofóbico, ou não conhece e, nesse caso, mostra que não está atento ao que circula de informação para além da sua própria bolha heterocisnormativa, ainda que de esquerda.

A outra cegueira seletiva do autor diz respeito às políticas públicas. Ao analisar os governos do PT e as jornadas de junho, sua análise olha apenas para aspectos econômicos, e que tenham vinculação direta ao mundo do trabalho. Mas essas informações não são suficientes para explicar nem as jornadas de junho nem os tempos de alta popularidade dos governos do PT. Ricardo Antunes realiza todas as suas análises olhando para três elementos: o salário-mínimo, o Bolsa Família, e a estrutura sindical brasileira. Mas houve outras coisas que aconteceram de 2002 a 2016 que não estão nessa lista. Vou citar algumas delas: construção de universidades federais, PAC, Pronatec, Fies, aumento de bolsas CAPES e CNPQ, Ciência sem Fronteiras, Luz para Todos, Brasil Sorridente, Mais Médicos, etc. A história política brasileira é construída também a partir de suas políticas públicas e do modo como elas impactam a qualidade de vida da população. Não é à toa (e nisso o autor anui) que as manifestações de junho de 2013 se iniciaram a partir do aumento da tarifa dos ônibus em São Paulo. Ainda que o foro dessa discussão fosse o município de São Paulo (à época também governado pelo PT), a multiplicidade e a profusão das lutas acabou por ganhar outros contornos.

Gostaria, aqui, de retomar a discussão sobre a importância do retorno do PT ao jogo político, apresentando a segunda razão sobre o porquê desse fenômeno ser importante (a primeira, longamente discutida acima, tem a ver com o PT ser diferente dos partidos que o antecederam na condução do país).

Trata-se da resistência do pensamento. Ora, como é possível que esse partido esteja de volta ao jogo? Mesmo prendendo o Lula, mesmo com as campanhas que o difamaram (a ele e a qualquer pessoa do partido). Ora, nisso reside alguma semelhança com o fato de eu estar aqui escrevendo esse texto, à revelia do projeto neoliberal que esteve desde o dia zero inculcando ideias na minha cabeça em uma única direção, oposta às ideias que aqui coloco.

Penso que parece haver alguma parte do pensamento que resiste às investidas neoliberais. Não sei se em todo canto, não sei se em todo lugar. Mas que há, há.

Isso explica não só o retorno do PT e o viés desse texto, mas também outros fenômenos interessantes. O mais interessante deles é o sucesso de páginas na internet, especialmente no instagram, que discutem e/ou satirizam o mundo do trabalho (e também a construção do sujeito-empresa) em sua acepção neoliberal e desvitalizante. Alguns desses perfis são:

Dicas do Burnoutinho (@burnoutinhotips) – apresenta ‘dicas’ sobre situações de trabalho excessivo, a partir de um viés que entende o trabalho como gerador de doença;

Festa da Firma (@festadafirma) – de perfil mais moderado, apresenta com leveza e bom humor situações engraçadas do mundo corporativo;

Coach de Fracassos (@coachdefracassos) – satiriza páginas de autoajuda no estilo coach, numa estética niilista;

Saúde Mental Crítica (@saudementalcritica) – mostra discussões importantes no campo da saúde mental, especialmente em sua relação com o trabalho e o modo de vida capitalista;

Comunicação Muito Violenta (@comunicacaomuitoviolenta) – inverte a lógica da “Comunicação Não-Violenta” e apresenta de maneira rude, mas engraçada, situações do mundo corporativo, mas não só. Atualmente, a conta principal está suspensa e a página segue no perfil @comunicacaomaisvolenta.

Todos esses perfis têm uma semelhança com as tirinhas de humor corporativo “Dilbert”, muito famosas nos anos 1980 e 1990, que sempre traziam uma perspectiva crítica sobre o mundo corporativo. É relevante marcar, contudo, uma diferença bem importante. As tirinhas “Dilbert” saíam em jornais de grande circulação e o nome de seu criador é público: Scott Adams. Dos anos 1980 para cá, a ideologia do pensamento corporativo único se estabeleceu de forma tão ubíqua que não é possível mais apresentar essa crítica, como um contraponto ao mundo, em locais mais tradicionais de circulação. Dessa maneira, todos os perfis acima levantados são anônimos. Ninguém sabe quem é que está por trás desses perfis. E isso tem uma razão de ser. Muito provavelmente essas páginas são mantidas por pessoas que vivem do seu trabalho e que, portanto, não podem aparecer publicamente criticando o mundo corporativo. Existe algo de muito insurgente e, porque não dizer, subversivo mesmo, em atentar contra a lógica de produção capitalista. Fazer troça da cultura de inovação e do empreendedorismo, por exemplo, deixa as pessoas vulneráveis à demissão / desemprego, uma vez que passam a ser lidas como inimigas, um mal a ser combatido. O sistema capitalista é hábil em se perpetuar não só porque avança cada vez mais na produção de mais-valor quando explora o trabalho humano mas também porque impede, explícita ou subrepticiamente, a discussão e o dissenso.

Penso que esses perfis anticapitalistas na internet têm um papel muito importante como mecanismos de difusão de ideias sobre o trabalho do ponto de vista dos trabalhadores. É claro que essa exposição é fragil. Os perfis são vulneráveis a uma grande corporação (o instagram) que pode, a qualquer tempo, derrubá-los sem muita justificativa.

Nesse sentido, entendo que eles também não se configuram como uma força política organizada e que, portanto, não têm poder efetivo na mediação política de relação entre patrões e empregados.

Mas penso que são um fenômeno importante. Do meu ponto de vista, sinto que esses perfis criam laços entre os trabalhadores. Entendo que a angústia que sinto em relação ao modo de vida capitalista é compartilhada. Há mais gente no mundo, também sujeita às condições desiguais que regem o mundo do trabalho, que sofre de maneira parecida, e pelos mesmos motivos. Enquanto somos bombardeados pelos meios de comunicação com o mesmo pacote de verdades, que engloba, a um só tempo, a recuperação da economia através das privatizações e a ética empreendedora do mundo coach / startup / inovação, há gente na internet que desnuda essa ética, apresentando o ridículo de tudo isso.

Essa também é uma virtude do livro de Ricardo Antunes. Lê-lo, e entrar em contato com o modo no qual ele desmonta a lógica de produção capitalista, em especial na fase de transição do fordismo para a empresa flexível (toyotista) é também uma mão esticada em solidariedade ao leitor. Nesse sentido, a experiência da leitura, ainda que pontuada por muitas críticas (como pode ser visto acima) tem um sentido de “Escute, você não está sozinho.”

Essa noção de solidariedade com as agruras do trabalho é especialmente importante nesse momento de pandemia que atravessamos.

Sei que faço parte de um grupo muitíssimo privilegiado que ainda não retornou do teletrabalho (o que deve acontecer em breve), mas percebo que as dimensões afetivas relacionadas ao trabalho, que têm a ver com a presença física no espaço laboral e com o compartilhamento da solidariedade com os outros colegas/amigos trabalhadores são importantes e ajudam a construir sentido e propósito no trabalho.

Durante a pandemia (e esse longo período de teletrabalho), o que tenho experimentado é uma certa falta de propósito no trabalho. Essa falta de propósito possui um aspecto estrutural, mas não só. Um dos pontos defendidos no livro, cuja discussão remonta aos textos de Karl Marx, é que o trabalho carece mesmo de sentido se não é livre, ou seja, se é pensado não em termos de sua contribuição real ao mundo social, mas se é pensado apenas como um gerador de mais-valor para quem detém os meios de produção. Esse é um aspecto estrutural. A discussão filosófica sobre o sentido do trabalho (nos capítulos 5 e 6) é um dos pontos altos do livro e, ainda que sua leitura seja difícil (pois adentra mais fundo na filosofia), é onde senti mais a solidariedade. Pensei comigo “é isso, eu não estou maluco.” Existe algo mesmo de destitutivo de si no exercício do trabalho, algo desvitalizante.

Reproduzo um trecho do capítulo 5: “Contemplando traços de continuidade em relação ao fordismo vigente ao longo do século XX, mas seguindo um receituário com claros elementos de diferenciação e descontinuidade, a empresa da flexibilidade liofilizada acabou por engendrar novos e mais complexificados mecanismos de interiorização, de personificação do trabalho, sob o “envolvimento incitado” do capital, incentivando o exercício de uma subjetividade marcada pela inautenticidade, isto é, aquela que ocorre quando o estímulo para o exercício da subjetividade do trabalho é sempre conformado pelos interesses das empresas, não comportando nenhum traço que confronte o ideário do lucro e do aumento da produtividade.”

O conceito de “subjetividade marcada pela inautenticidade” é muito poderoso e penso que ele sintetiza o ideário neoliberal no modo como as empresas veem os seus trabalhadores, e também como esses trabalhadores, ao fim e ao cabo, também acabam por ver a si mesmos.

Pessoalmente, escolhi fazer concurso público porque sempre gostei da ideia de imaginar o meu trabalho tendo como fim último o benefício da sociedade. Mas é inacreditável o modo como as empresas públicas também foram completamente capturadas pela lógica das empresas privadas, impondo os mesmos mecanismos de controle de trabalho por metas, incentivando a competição entre os trabalhadores e despejando o mesmíssimo jargão corporativo sobre os seus empregado. O que vemos é que, em última análise, as empresas públicas têm orientado a sua força produtiva cada vez mais ao capital e menos à sociedade.

Esse aspecto estrutural das relações entre capital e trabalho, que se espraia também pelo setor público, parece não poder ser alterado individualmente. Só as lutas coletivas mesmo podem virar esse jogo.

Agora, ainda que entendamos a instituição ‘sindicato’ como um agente importante nesse processo, não sei se ele, por si só, nas condições que temos hoje, é capaz de levar a cabo sozinho esta luta.

Ricardo Antunes finaliza o livro com dez pontos importantes que os sindicatos devem enfrentar caso queiram permanecer como instituições relevantes. São muitos os desafios. Mas penso que talvez o maior deles seja mesmo o de se abrir um pensamento mais arejado que advenha da juventude.

Por exemplo, durante esse período da pandemia, que conjunturalmente afetou as já solapadas relações de solidariedade entre os trabalhadores, não senti o sindicato perto de mim. A verdade é que não o venho sentindo próximo, mesmo antes da pandemia, e essa falta de proximidade não é só porque o sindicato não se aproxima de mim, mas porque eu também não me aproximo dele.

Nesse sentido, ainda que relevante do ponto de vista político, sinto que o desinteresse mútuo entre mim e o sindicato é de ordem estética.

Não me vejo representado no modo de falar das pessoas do sindicato, no modo de pensar e organizar as lutas. Entendo que meu desinteresse não é um fenômeno puramente subjetivo. Ao contrário, entendo que parte disso é também a erosão do meu próprio caráter na direção de uma ética capitalista individualizante. Mas também não posso pegar sozinho essa culpa. Sendo uma das pessoas mais jovens da empresa que trabalho, sinto que o sindicato é uma coisa velha.

Vejam: faço minha contribuição mensal ao sindicato e sempre incentivo meus colegas de trabalho a se filiarem. Entendo que o sindicato é a única ferramenta formal de luta hoje por melhores condições de trabalho. Mas a verdade é que, na busca da solidariedade que necessito, de compartilhar as agruras e dores do trabalho, encontrei mais acolhida nas páginas da internet do que na estrutura formal oferecida pelo sindicato.

Isso nos leva a pensar na direção que as lutas devem seguir. Se, para mim, que já não sou tão jovem, a ideia de sindicato parece uma coisa velha, será que é ainda esta instituição que vai trazer o frescor e a adesão da juventude às lutas?

Antunes acha que sim. Ele discorre nos capítulos 11 e 12, em outro ponto alto do livro, sobre a história sindical brasileira. O autor coloca como o somatório acumulado das lutas, as experiências coletivas dos trabalhadores e, principalmente, a criação das centrais sindicais no Brasil, criou um cenário favorável aos trabalhadores, possibilitando a ascensão de um líder sindical ao posto mais alto de poder político no Brasil. Para o autor, o sindicato como instituição é ainda quem vai forjar as novas lutas e travá-las em nome da classe trabalhadora.

Meu ponto de vista diverge em parte, mas não no todo. Penso que os sindicatos continuarão existindo e tendo relevância política no Brasil, mas vão precisar se repensar na estética e também entender que o conceito de protagonismo está ele mesmo em xeque após as lutas multifacetadas de 2013. Será preciso abraçar os memes e falar com o público mais jovem. Até os partidos políticos já aprenderam essa lição, mas os sindicatos ainda não.

Em relação ao protagonismo, vêm-me à cabeça outros movimentos questionadores e criativos. Um deles é o Occupy Wall Street, que aconteceu há mais de dez anos e questionou o rentismo e a financeirização do capitalismo. Mas penso que outro, mais relevante e que está acontecendo agora em 2021, é o “ficar deitado”.

Na China, um jovem começou a propalar na internet a ideia de “ficar deitado” isto é, a de não fazer nada e não trabalhar. O jovem parecia apenas viver de poucos rendimentos, e apresentava uma espécie de recusa ativa ao trabalho. O movimento cresceu a ponto de perturbar o governo chinês, fazendo com que o termo “tang ping” (que significa “ficar deitado”) fosse banido das buscas na internet pelo censura governamental.

O potencial disruptivo do tang ping é similar talvez ao provocado pela onda hippie nos anos 1960/70, que foi logo engolida pelos yuppies dos anos seguintes.

Mas a recusa ativa ao trabalho é perturbadora para o capital. O caso “tang ping” ratifica a percepção do autor de “O privilégio da servidão” da centralidade do trabalho na vida, e de como o capital ainda depende do trabalho humano para a geração de mais-valor (fosse o trabalho tão desnecessário como por vezes querem nos fazer crer, o movimento dos jovens chineses não seria problemático).

Contudo, esse é um movimento de jovens desempregados, que querem abraçar um outro modo de vida, diferente daquele oferecido pelo capital. Como os sindicatos, por exemplo, poderiam se aproximar desse movimento para entendê-lo e somar esforços na construção de um mundo que possua relações trabalhistas mais justas?

A perspectiva sindical oferecida pelo livro, portanto, é boa, mas não é suficiente. É preciso pensar a articulação do movimento sindical com outras lutas e outros movimentos, vinculados ou não ao mundo do trabalho.

Sob a perspectiva radical apresentada pelo autor, de destruir o mundo tal como é e colocar outro no lugar, sinto-me em uma espécie de impasse. Não vislumbro muitas formas de mudar o mundo e as relações de trabalho capitalistas, mas também não vislumbro a revolução.

Quero crer que as forças criativas e potentes dos mais jovens traga um novo frescor e alguma perspectiva de mudança nesse cenário. Enquanto isso, permanecemos um pouco tristes com o mundo tal como é, mas ainda temos uns aos outros. Não à toa, esse texto diz na primeira frase que se trata de um livro difícil. A dificuldade não está apenas no que apresento de divergências em relação ao autor nem em relação à estrutura do texto e dos capítulos, já longamente discutida nesse texto. Ao contrário, parte da dificuldade do texto é também a de entrar em contato com a dureza da realidade que se vive no mundo do trabalho e, não obstante meus privilégios, da qual também faço parte.

Por fim, penso que a perspectiva apresentada pelo autor é, em certo sentido, oposta à minha (ainda que muito do meu pensamento esteja alinhado com o dele). Antunes é duro com os governos do PT, ao mesmo tempo que alimenta o sonho de uma revolução. Ambos os acentos usados por Ricardo Antunes, o pessimista e o otimista, na construção de seu texto, me parecem um pouco fora do tom. Gosto, porém, do modo pragmático que ele apresenta a história sindical no Brasil e da construção teórica sofisticada sobre o sentido do trabalho, sob um prisma filosófico.

De minha parte, reconheço os avanços petistas, e não consigo antever um processo revolucionário do modo como o autor propõe. Mas penso também que há potências aqui e ali, como o Occupy Wall Street, o ficar deitado, e as páginas de crítica ao capitalismo no Instagram que, à parte da via sindical, fortalecem os vínculos de solidariedade entre aqueles que são afetados pelas relações desiguais de trabalho vigentes na ética capitalista. Como diz uma amiga minha: ‘o que vai acontecer já está acontecendo’.

Por fim, acho também que a engenharia de produção precisa se repensar como campo de conhecimento de maneira a englobar a pluralidade de pontos de vista existentes nas relações de trabalho e no modo como as identidades atravessam e são atravessadas pelos sistemas de produção.

Isso já acontece de alguma forma, de maneira tímida. Fui uma vez a um congresso chamado ENEDS – Encontro Nacional de Engenharia e Desenvolvimento Social, formado por pessoas que pensam a engenharia como um todo de maneira crítica. Hoje estou participando como aluno, virtualmente, de um curso de extensão na UFABC de Engenharia Popular que, na mesma toada do ENEDS, quer pensar a engenharia de uma outra forma.

Nesse curso, descobri, por exemplo, o conceito de fábricas recuperadas por trabalhadores. O Brasil possuía algumas fábricas nessa condição, que é o que acontece quando a fábrica entra em processo falimentar e os trabalhadores, de maneira organizada, assumem a produção fabril. É literalmente o controle operário da produção.

Hoje há poucas empresas nessa situação no Brasil, uma vez que judicialmente trata-se de um processo bem complicado. Mas um dos casos mais emblemáticos ainda está em funcionamento. A indústria Flaskô fica no estado de São Paulo e tem sua produção conduzida por trabalhadores há mais de dez anos.

Nenhum Slack, Kotler ou Chiavenato falou sobre a realidade das empresas recuperadas por trabalhadores, de maneira que em dez anos, como já disse, não fui exposto a esse tipo de produção de conhecimento.

Mas a Flaskô existe. Não só existe, como eu fui capaz de criar mecanismos de resistência ativa do pensamento que me possibilitaram acessar esse curso, entrar em contato com essa realidade (até então desconhecida para mim) e reproduzi-la aqui nesse texto.

Portanto, o que temos a fazer é, antes de tudo, acreditar que um novo mundo é possível. O quão novo será esse mundo vai depender da elasticidade dos nossos sonhos, mas em alguma mudança é necessário crer.

Encontrar as brechas e, a partir delas, abrir caminhos. 

sábado, 21 de agosto de 2021

Pele trabalhadora, máscara burguesa.

 


O primeiro detalhe que me chamou a atenção n’O Privilégio da Servidão foi o estilo de escrita e da argumentação. Um trabalho definitivamente acadêmico, articulando a complexidade de muitos conceitos, às vezes explicados em detalhes, às vezes não o suficiente para eu compreender. Tive a nítida impressão de estar diante de um texto alemão.

Na verdade, tive contato com o livro um pouco depois do lançamento da primeira edição. Lembro de ter lido um texto introdutório em que ele defende a importância do livro frente os artigos como publicação de excelência, e depois diz que fez o livro costurando artigos. Mas isso não me incomodou, os assuntos ou conceitos colocados repetidamente acabam por facilitar a compreensão, e algumas vezes eram debatidos em perspectivas diferentes (embora não muito). O texto é ricamente referenciado (ok, muitas vezes é o próprio autor se citando, ou então repete as mesmas fontes ao longo dos capítulos, mas ainda assim há muitas obras citadas), trazendo referências mundiais e nacionais relevantes, além da construção de conceitos pelo próprio Ricardo Antunes e pelos pesquisadores a quem se associou. Eu gostaria de escrever assim, de maneira organizada, com referências sólidas e teses bem fundamentadas. Ao longo deste textão vou fazer muitas críticas à obra, mas afirmo desde já minha profunda admiração pelo autor e pelo esmero com que ele constrói seus trabalhos.


O Precariado

Logo no início ele dialoga com duas teses: a do precariado e a do fim do trabalho. A do fim do trabalho ele cita algumas obras, mas acho que isso talvez tenha feito sentido em algum momento anterior nas ciências sociais, hoje acredito que ninguém defenda mais.

Sobre o precariado ele fala mais longamente, e, como eu tive algum contato com a obra em que esse conceito é elaborado (O Precariado – A Nova Classe Perigosa, de Guy Standing. No final eu compilo as obras aqui citadas), achei relevante fazer alguns destaques. Primeiro, que concordo com um argumento dele de que levantar o precariado como a nova classe perigosa faz sentido nos países centrais do capitalismo, onde o precariado surge em oposição à massa de trabalhadores amparados – ou abandonados – pelo Estado de bem-estar social. Partindo dessa premissa, falar em precariado no Brasil não faz tanto sentido, porque sempre fomos precários em relação a direitos trabalhistas. Pelo que me lembro, o Brasil nunca chegou a ter a maioria de seus trabalhadores na formalidade. Malgrado o grande crescimento da formalização e criação de empregos com carteira assinada nos anos Lula e Dilma, o contingente de trabalhadores informais sempre foi muito significativo.

Antunes não menciona, no livro, uma outra característica do precariado que eu achei muito importante quando li o Guy Standing [toda vez que leio esse nome, penso “aquele cara em pé”]. Que é uma espécie de “espírito do precariado”, em que o trabalhador precarizado não traz os sonhos dos órfãos do welfare state, mas quer ser independente, enxerga no trabalho um meio para conseguir algum outro objetivo, seja diversão no fim de semana, seja comprar alguma coisa. Não se tem mais a identificação com o trabalho na mesma intensidade que se tinha antes dos anos 1980. Sobre isso, recomendo um outro livro, A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett, que não fala exatamente sobre precariado, mas traz uma boa reflexão sobre a relação do sujeito com o sentido de seu trabalho, justamente na era em que foram introduzidas as medidas de flexibilização nas relações laborais nos EUA.

De modo geral essa ressalva que eu trouxe na argumentação de Antunes contra o conceito de precariado se aplica também a outros dos ensaios que compõem o livro. Apesar de ele falar na necessidade de se criar um novo modelo de sociedade, autônomo e emancipado, ele não desenvolve muito o modo como a exata antítese disto está sendo esculpida na subjetividade de cada um de nós. Apesar de ele dedicar um capítulo a esse tema, senti falta de uma elaboração mais profunda, talvez por ser mais precisamente a minha área de interesse, mas mais adiante eu volto a essa discussão. Sei que ele é sensível a esse tema, e um dos autores que cita (Giovanni Alves) é pesquisador dessa área.


Processo tecnológico-organizacional-informacional

Ele fala de um processo tecnológico-organizacional-informacional que desemboca na precarização do proletariado, e eu achei essa síntese muito boa, pois é justamente por meio desses três eixos que se aprofunda a subordinação do trabalho ao capital. O avanço tecnológico gera o crescimento do trabalho morto sobre o trabalho vivo, na medida em que processos vão sendo automatizados e controlados por máquinas, reduzindo a margem de ação de cada trabalhador. Se por um lado isso contribui para a docilização do operário — ele passa a executar tarefas simples, como apertar um botão — por outro ela gera uma alienação, um estranhamento ainda maior do sujeito em relação à sua tarefa e ao seu trabalho, que fica cada vez mais esvaziado de sentido. Como exemplo, Sennett conta, n’A Corrosão do Caráter, a história de uma padaria a que ele vai duas vezes, com 20 anos de intervalo entre uma visita e outra. Na primeira ocasião ele vê padeiros advindos de uma comunidade local de imigrantes gregos, que tinham alguma solidariedade entre si, carregavam rusgas antigas e cuidavam de fazer pão. Vinte anos depois, há apenas um padeiro, e os outros funcionários estão pouco envolvidos com o ofício da panificação, já quase toda mecanizada: bastava apertar o botão “pão” quando era para fazer pão e o botão “brioche” quando era para fazer brioche. Poucos dos funcionários, nessa segunda ocasião, se identificavam como padeiros.

As mudanças organizacionais, materializadas nas novas ferramentas de gestão, cumprem seu papel em extrair mais trabalho do funcionário; metas de produtividade, remuneração por produção, disfarce da remuneração em participação nos lucros, incentivo à competição entre os trabalhadores são exemplos de procedimentos que constituem o eixo “controle psicológico” do avanço do capital sobre o trabalho. Neste ponto eu insisto novamente na falha do livro em sublinhar a importância desse eixo na criação do ethos do capital, fundado no fetiche da mercadoria, responsável pela penetração do sistema sociometabólico do capital na subjetividade, na nossa própria noção de cidadania. Esses valores de competitividade, de metas a cumprir, da primazia do sucesso, têm papel fundamental na construção e perpetuação desse sistema de metabolismo social, uma vez que dificulta a organização coletiva e, por se impor como natural, passa a impressão de que não há alternativa, todos devemos aceitar esse ethos. Torne-se empreendedor de si mesmo, ou morra. A máscara burguesa é uma questão de sobrevivência.

Aqui cito outro livro, “O Culto à Performance”, de Alain Ehrenberg, em que ele usa a metáfora do esporte de competição para dar conta de um modelo competitivo de estar no mundo, em que não há diferença entre ser o segundo colocado e estar arruinado. Entre outros pontos (o livro é bem interessante), ele coloca a naturalização do desemprego como parte da vida moderna ocidental. Hoje aceitamos taxas de desemprego inimagináveis tempos atrás. Hoje cada pessoa é individualmente responsabilizada por não conseguir emprego. Não se discute o fato de haver poucas vagas de emprego, apesar de haver muito trabalho a ser feito.

Informacional, porque, na minha interpretação, o avanço tecnológico a serviço do capital se dá também no sentido do controle. O exercício do trabalho fica atado a procedimentos rigidamente definidos no “sistema”, que não permite alterações, variações, novos caminhos. A figura do chefe rígido já não é necessária: ele é representado pela entidade “sistema”. Isso está em linha com os primeiros processos de organização “científica” do trabalho elaborados pelo pai da engenharia de produção, F. W. Taylor, no fim do séc. XIX e começo do XX, quando começou a ser sistematizada a separação entre o planejamento e a execução do trabalho. Quando essa execução é muito rigidamente controlada, o trabalho perde muito seu sentido (vide a padaria do Sennett). Pois, segundo Christophe Dejours (ninguém me segura no name dropping hoje), o sentido do trabalho está justamente na distância entre o trabalho prescrito e o realizado. É ali, lidando com o imprevisto que está o real do trabalho. Se não se pode fugir ao prescrito, o trabalho torna-se excessivamente abstrato, portanto desprovido de sentido.  


Nova morfologia do trabalho e sistema sociometabólico 

Antunes faz um excelente diagnóstico da nova morfologia do trabalho, que acho que é o conceito que ele tenta emplacar com o livro. As colocações dele sobre terceirização são interessantíssimas, e eu destaco também a forma como ele enfatiza a necessidade da inclusão das pautas das “minorias” (cansei de name dropping, mas podemos depois falar sobre minoria em Deleuze) na discussão sobre trabalho.

Aqui queria citar uma experiência minha no trabalho na Justiça Federal. Um dia andei por uma parte do corredor do meu andar a que não estava habituado. No fundo havia um elevador de serviço. Na hora em que eu passei, abriu a porta do elevador, e dele saíram 4 ou cinco trabalhadores da limpeza, terceirizados, uniformizados com roupas estampando a logomarca da empresa. Todos negros. O elevador era de serviço, separado dos elevadores usados pelos funcionários do judiciário. Os magistrados tinham outro elevador. Só este fato tem tantos níveis de problemas sociais que não dá nem para começar essa discussão aqui.

Voltando ao Ricardo Antunes, ele trouxe mais um ponto importante. A terceirização funciona como uma privatização, e a privatização é uma forma de entregar ao capital um bem público. Transforma em mercadoria algo que antes não era comercializado dessa forma, com o objetivo de gerar lucro para alguém que já tem dinheiro. Canaliza o dinheiro público para donos de empresas. Isso é acumulação original. O Harvey fala disso em algum episódio do podcast (The Anti-capitalist chronicles), que a acumulação original não parou de acontecer com o fim da colonização. A necessidade de expansão do capital é tão voraz e generalizada, que, continuamente, recursos que não são mercadorias são apropriados e transformados em mercadoria para serem vendidos. Ou então são destruídos. Esse é um dos pontos que Antunes também enfatiza, o potencial enormemente destruidor desta fase do capitalismo. Como sistema sociometabólico, o capitalismo é totalizante, no sentido de que a ele todos devem se ajustar, ou perecer (Para Além do Capital, Meszáros). Isso serve não somente para os trabalhadores, mas também para a burguesia. A concorrência é feroz inclusive para os detentores dos meios de produção: ou expande, engole os concorrentes e vira monopólio, ou desaparece.

Ao falar sobre a nova morfologia do trabalho, Antunes chama a atenção para algo importante. Muito se fala em desindustrialização, mas o que ocorre não é um sumiço das indústrias, mas seu deslocamento. Os eixos de produção em massa não estão mais centrados no norte global, mas no sul, nas áreas periféricas onde é possível chegar a níveis mais degradantes de exploração do trabalho, de precarização, de falta de controle da saúde do trabalhador, de prevenção de acidentes e garantias de direitos mínimos.

Além disso, ele nos faz atentar para o fato de que apenas uma parte do capital financeiro é fictício: a maior parte dele continua atrelado à produção, ao que chamamos de “economia real”, embora ele não use esse termo no livro, que eu me lembre. Isso volta a trazer ênfase à centralidade do trabalho, pois é o trabalho humano, vivo, que gera valor. O trabalho da máquina, trabalho morto, não pode ser superexplorado, é um custo fixo, portanto não gera mais-valor.


Sindicalismo e "purismo" revolucionário

No segmento em que fala sobre sindicalismo, o livro é uma verdadeira aula sobre a história recente dos movimentos sindicais no Brasil. Ele coloca muito bem pontos de vista a que eu não tinha tido acesso antes, como a criação das centrais sindicais e a proposta do que se chamou de novo sindicalismo no final da década de 1970.

Ele tece críticas ao movimento que a CUT e outras centrais sindicais fizeram no sentido da conciliação com atores ligados ao governo e chegando a fazer parte desse mesmo governo. Eu compreendo as críticas que ele faz, mas vejo ali a defesa de um “purismo” revolucionário, que acaba por perder de vista a necessidade de acordos concretos para não se perder mais ainda em situações já desvantajosas na queda de braço com o capital.

Críticas duras também são feitas aos governos do PT, que ele entende como tendo sido de continuidade com as políticas neoliberais dos anteriores (Collor e FHC). Por mais que eu concorde em grande parte com essas críticas, acho que chamou muita atenção para a continuidade entre essas formas de governar em detrimento das diferenças entre elas. Lula e Dilma fizeram investimentos pesados em educação, por exemplo, de maneira incomparável aos avanços da era FHC. Podemos elaborar aqui críticas a essa expansão da educação, que teria favorecido um modelo produtivista na pós-graduação, ou então que os programas de financiamento para instituições privadas de ensino superior criaram verdadeiros impérios empresariais na área, mas é inegável que a criação de tantas universidades e institutos federais gerou modificações profundas na estrutura de uma sociedade. Antunes perde esse ponto.


Caminhos possíveis: construções coletivas e individualismo

Em seus capítulos finais, Antunes tenta tecer caminhos. Ele propõe a criação de um novo ethos, com autonomia, autodeterminação e emancipação, com a substituição do sistema sociometabólico do capital. A resposta seria então um reforço dos laços coletivos, de organização da classe que vive do trabalho, incluindo os desempregados, precarizados e as pautas das minorias, na recuperação do sentido do trabalho. Há um forte obstáculo a essa construção coletiva, que é justamente a captura subjetiva posta em prática pelo ethos do capital. O fetiche (feitiço) da mercadoria é voraz e se expande continuamente. E essa força é individualizante. Como reforçar laços coletivos de organização se a sociabilidade se dá, como ele mesmo disse, por coágulos, ou seja, grupamentos isolados aqui e ali, pouco organizados?

Deixo então para o final minha última referência, que está no título desde textão que já virou um ensaio. O metabolismo social do capital nos impõe uma máscara burguesa. Somos, trabalhadores ou não, convocados a funcionar como empreendedores, como empresas, mas continuamos a ser trabalhadores. Analogamente às máscaras brancas discutidas por Fanon, as máscaras burguesas não tornam os trabalhadores detentores dos meios de produção, ou bem-sucedidos empresários. Geram no máximo vendedores exaustos de bolo de pote, ou cerveja artesanal. O rompimento com a máscara burguesa, com o sujeito-empresa (A Nova Razão do Mundo, de Laval e Dardot), é causa e consequência de um movimento morro acima, de suspensão do individualismo e de reforço dos laços coletivos. Não à toa, o capitalismo e o individualismo são marcas do pensamento europeu. Não é da Europa que vai sair a solução, dali veio o problema. As soluções serão múltiplas, e daí também é difícil concordar com a proposta universalizante de Antunes, em franca contradição com a pluralidade das forças que ele deseja ver unidas no movimento dos trabalhadores. A emancipação está nas dissidências.

Do meu ponto de vista de médico de instituição pública, percebo que essa dissidência está presente nos funcionários, no ceticismo expresso quando encontram o vocabulário empresarial, com metas, inovação, resiliência (esse termo lindo destruído pelo mercado) etc. Muitos percebem que o discurso é oco, e que no fim é apenas uma maneira de extrair produtividade. Além do ceticismo – ou cinismo – há a reação da introjeção desse discurso, em uma naturalização da máscara burguesa. Muitos passam anos “dando o sangue” para a instituição, e, quando adoecem (veja bem, não é se, mas quando), são tratados como peças, que devem ser substituídas quando dão defeito. Tendo a olhar esse adoecimento como uma forma de resistência, de dissidência. A saúde mental é um dos principais limites à expansão do capitalismo hoje em dia (o outro é o meio ambiente).

Por onde quer que se olhe, só o que é oferecido são as perspectivas de mercado, o discurso empresarial, a responsabilização individual. Falhamos em propor alternativas de massa ao sujeito empresa. Antunes fala muito em produzir o novo modo de ser, autônomo, a partir de uma construção coletiva universalizada. Pois eu acho muito difícil construirmos algo coletivo sob a égide do individualismo. Que motorista de aplicativo vai conseguir aderir a uma paralisação se isso comprometer a capacidade de sua família de realizar refeições?

Pode ser que uma semente de dissidência em massa já tenha sido lançada em algum ponto da história recente. Ela passa pela quebra da máscara burguesa, pela criação de uma nova consciência de unidade na classe que vive do trabalho. É possível que o que nos esteja faltando seja apenas uma perspectiva de tempo. Mas, a longo prazo, estaremos todos mortos.

 

Obras citadas:

Pierre Dardot e Cristian Laval - A nova Razão do Mundo.

Alain Ehrenberg – Culto à Performance.

Frantz Fanon – Pele Negra, Máscaras Brancas.

David Harvey – The Anti-capitalist Chronicles (podcast).

István Mészáros – Para Além do Capital.

Richard Sennett – A Corrosão do Caráter.

Guy Standing - O Precariado – a Nova Classe Perigosa.



quinta-feira, 3 de junho de 2021

A bala queer


“Um apartamento em Urano”, de Paul Beatriz Preciado, é uma das coisas mais bonitas que já me apareceram para ler recentemente. É um livro fragmentado, feito por colunas de jornal publicadas pelo autor ao longo da década de 10, e que foram reunidas nessa espécie de seleta. São textos curtos, densos e muito potentes, no qual o pensamento dele aflora de maneira a poder ser captado pelo público de maneira leve, algo além da intelectualidade críptica.

A verdade é que estou impactado. Encontro-me muito neste jeito de pensar, nessa forma de olhar para as coisas do mundo: com admiração, espanto, dúvida, nuance. Há em tudo uma esperança. Paul sabe que há um novo mundo em construção, um mundo que se constrói sobre as ruínas do mundo antigo.

Essas ruínas não vêm necessariamente de uma destruição do mundo de hoje. Por outro lado, a ideia é a de que é preciso erodir o mundo: é preciso fazer morrer esse mundo patriarcal, heteronormativo, eurocêntrico.

O futuro está nas brechas e nas fissuras do mundo. Como se do solo rachado das ruínas que somos, pudessem brotar as flores, as belas flores, de um novo amanhã. Para Paul, o melhor tempo possível é o hoje, o agora: o tempo das transformações possíveis.

Quanto às ideias presentes nas colunas, concordo com a maioria. Há uma coluna sobre a Prep (profilaxia de pré-exposição ao HIV), contudo, com a qual não concordo. Acho que há um equívoco em supor que a Prep serve apenas aos homens gays passivos. Serve a todos os homens gays que se dispuserem a tomá-lo, e também a pessoas trans e travestis. É uma droga importante, que traz paz. Se eu pudesse propor um acordo ao Paul sobre esse tema, seria algo como “Não mexa com a minha Prep, e eu não mexo com a sua testosterona injetável. Vamos, juntos, nos locupletar do que nos é capaz de oferecer a indústria farmacopornográfica.”

Mas se pude racionalmente discordar de um ponto de uma das colunas, acho importante falar, por outro lado, sobre o que senti ao ler um outro texto. Terminei de ler “A bala” aos prantos. Esta coluna tem uma pegada parecida com outra do mesmo livro, “Quem defende a criança queer?”, mas “A bala” é mais direta, e curiosamente, também mais poética.

Paul escreve diretamente às pessoas que têm em seu peito a bala alojada da homossexualidade ou da transexualidade. Uma bala que não pode ser retirada. Algumas crianças já têm consigo alojada essa bala desde cedo, em outras pessoas ela chega mais tarde. Mas a bala está lá. E Paul, super sensível, se dirige às crianças que carregam a bala no seu peito. E diz a elas que elas não estão sozinhas.

Eu era uma criança que lia jornais. Eu gostaria de ter lido uma coluna de jornal dirigida às crianças, dizendo “ei, você, que tem essa bala alojada no seu peito, você não está sozinho”. Mas a década de 1990, o tempo onde fui criança, me apresentou, por outro lado, a Banheira do Gugu e a playboy da Tiazinha.

Os dispositivos de reforço dos mecanismos de funcionamento do sistema sexo-gênero, inflexíveis e unidirecionais, quase me convenceram de que eu não era um desvio. Não sei precisar o momento exato em que a bala se alojou em mim, mas não havia coluna de jornal, nem amigos, nem ninguém com quem eu pudesse conversar sobre a bala que eu carregava dentro do peito. Então, passei anos no escuro, sem saber se eu tinha mesmo essa bala. Querendo que não, e portanto, também achando que não. Quando algum sinal em mim na infância ou na adolescência apontava que eu poderia ser uma dessas pessoas de peito perfurado, eu julgava tratar-se apenas de uma coceira leve no peito e que, apesar de sua persistência, sem dúvida não se tratava de nada grave.

Lembro-me de uma vez, já na faculdade, em que participei de uma conversa com um grupo de colegas, homens e mulheres. O grupo discutia animadamente sobre as revistas de mulher pelada. Em algum momento, me perguntaram se eu as tinha, e por que motivo eu as comprava. Disse que as tinha, e que gostava delas, mas sobre os motivos disse “que achava bonitas”, que “gostava das fotos”, etc. Era possível que nesse momento todos olhassem para o meu peito e soubessem que eu carregava a bala, mas eu não sabia, ou fingia não saber. Uma das minhas colegas de turma, mulher, encerrou a discussão dizendo: “A resposta certa é ‘porque me dá tesão’”.

Havia uma resposta certa. Sempre há uma resposta certa para aqueles que vivem na dualidade da representação binária do sistema sexo-gênero, e que carregam seus peitos imaculados, sem vestígio de nenhum projétil. E meu peito aberto sangrava, e todos viram a bala que eu carregava, menos eu. Talvez eu tivesse só me cortado ou arranhado sem querer: não, não podia se tratar de algo tão grave quanto uma bala.

Chorei ao ler “A bala” porque me dei conta de que, talvez por mais tempo do que gostaria, fingi não carregá-la. Eu iniciei uma vida gay aos 20 anos. Não havia Pabllo Vittar, Paulo Gustavo, nem Lady Gaga cantando ‘Born this way’, nada disso. Fico feliz, contudo, de ter podido admitir a mim mesmo que carregava a bala. E que eu precisaria encontrar os centros quase clandestinos onde se encontravam aqueles que também carregavam a bala. E de ter podido me virar nesse mundo, tão hostil às pessoas de peito perfurado, e de também poder contribuir, empírica e discursivamente, para que ninguém precisasse mais ignorar os projéteis alojados nos seus corações.

Se o objetivo fosse apenas o de fazer os leitores chorarem, talvez fosse a hora de encerrar esse  texto. Mas, como Paul, que depois d’”A bala” ainda nos apresenta mais dois terços de seu apartamento em Urano, é preciso ir além.

É curioso notar o aspecto inexorável da bala. Uma bala que não pode ser retirada. Pode ser ignorada, afundada ainda mais no peito, ou exposta por entre as veias e as artérias, mas não pode ser retirada.

A inexorabilidade que aparece nesse texto é refutada praticamente em todo o restante da sua obra. A todo o tempo, somos confrontados com a prótese, a genitalidade externa, a ficção de si, a política cambiante e transformável, e, claro, a própria transição de Paul. Em “Um apartamento em Urano”, quase tudo é trânsito, passagem e fresta.

Há uma dialética em Paul na qual me reconheço: é preciso destruir o sistema sexo-gênero, a heteronormatividade e as noções sobre as quais o mundo está concebido hoje. Mas, para além disso, é preciso também habitar esse mundo, viver esse mundo. É por isso que Paul, que não acredita mais nas identidades, que talvez não quisesse ter de dizer “eu sou trans”, preferindo dizer apenas “eu sou”, é por isso que Paul precisa modular sua voz na fronteira do aeroporto para fazê-la se encaixar com exatidão no gênero indicado no seu passaporte. É importante entendermos que somos uma ficção biopolítica (nossos corpos, documentos e ritos), mas é nesta ficção que estamos inscritos, e é nela que, neste momento, temos condição e possibilidade de existência, ainda que possamos e devamos reivindicar outros projetos.

Além da dialética entre o utópico e o possível, outra se impõe, e Paul também a maneja muito bem: aquela entre o pessoal e o coletivo, entre o subjetivo e o identitário.

Paul entende a unicidade de seu percurso. De mulher lésbica a homem trans, o percurso reivindicado é de uma vida absolutamente singular, que não se quer presa aos ditames de um ou de outro rótulo, de uma ou de outra identidade. Paul quer destruir o sistema sexo-gênero, mas permanece, como qualquer um de nós, precisando de seus documentos.

A anarquia sexual de Paul deve ter lhe custado alguma amizades. As pessoas que batalharam duramente pelas identidades, que lutaram muito para poderem bradar a plenos pulmões “Sou um homem gay casado” devem se espantar com a postura de Paul, que diz “Sou um dissidente do sistema sexo-gênero.” É duro para alguém que passa a vida montando os tijolinhos de sua casa da identidade sexual ver chegar alguém e dizer que esta casa não lhe serve; que não lhe servem esta casa, este bairro, esta cidade, este país; que não lhe serve sequer este planeta, e é preciso ir embora para construirmos um apartamento em Urano.

Mas Paul é respeitoso sempre, e entende o lugar das lutas. Coloca-se nelas, participa, é ativista. Entra em movimentos coletivos, sabendo-se único. Questiona sua própria identidade, questiona o conceito de identidade, mas defende aqueles que querem construir uma nova identidade porque a anterior as oprime.

Preciado tem algo de Caetano Veloso, que questiona a MPB, que quer mudanças radicais na música, mas quer continuar fazendo parte dela. A rebeldia de quem se volta contra a plateia e diz “Vocês não entenderam nada. É essa a juventude que quer tomar o poder?”

Talvez não tenhamos entendido nada, mas enquanto não entendíamos, Caetano vendeu discos e fez canções de novela, e Paul colocou sua voz em transição em um jornal de grande circulação na França.

“Um apartamento em Urano” é uma espécie de outra “Verdade Tropical”, o icônico livro de Caetano Veloso sobre seu percurso na música e na história brasileira: uma verdade dos tempos novos, do hoje, do agora. Do potente e do vigoroso, do rebelde.

Não à toa, o encontro entre Caetano e Preciado, que ocorreu na edição virtual da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2020, tenha sido tão importante e necessário.

É preciso ouvir com atenção as dissidências. Sabemos que há riscos. O risco do discurso nuançado e crítico, nesses casos, é sempre o de ser lido por outra chave interpretativa, que, por falta de aparato cognitivo, entende como conservador aquilo que é assaz vanguarda. Nem a censura nem a patrulha conseguem apreender esse discurso, porque ele parece estar ora de um lado, ora de outro, mas está à frente.

A dissidência precisa ser ouvida porque, ainda que pense estar abrindo brechas e fissuras, está abrindo picadas, que nos permitem antever um outro mundo e trilhar esse novo caminho.

Penso que talvez a inexorabilidade da bala seja algo maior do que o desejo homossexual ou do entendimento de si como transexual. A bala é queer. E uso aqui a palavra queer em seu sentido mais potente: de desvio, dissonância, dissidência, enfim, de ser gauche na vida.

A bala queer atinge a todos que se desviam da norma. Inegavelmente, aqueles que carregam consigo a bala viemos para transformar o mundo.

A bala, interpondo-se no caminho do compasso marcado da norma.

A bala queer.

Abala, queer!

domingo, 26 de novembro de 2017

Um privatismo sem jardins?

Praça Paris, ao mesmo tempo praça e jardim

‘O jardim e a praça’, de Nelson Saldanha é um livro pouco marcante. Parte disso tem a ver com o tempo decorrido de sua leitura: cerca de três semanas. Nesse período, muita coisa aconteceu na minha vida, e também nas minhas leituras. Ao me deparar com a tarefa de escrever algo sobre ele, sou obrigado a retomá-lo, dar uma breve olhada nas anotações e parágrafos marcados, e tentar extrair disso alguma coisa, alguma crítica.

De todas as ideias apresentadas nesse livro obscuro (não se o acha nem mesmo na Estante Virtual), a única que me deixou alguma marca (a ponto de lembrá-la a posteriori) é a ideia de que somos todos tributários da burguesia. O autor argumenta que, mesmo no polarizado século vinte, as discussões teóricas, e mesmo práticas, entre os sistemas político-econômicos, são todas burguesas. A discussão comunismo versus capitalismo, marxismo versus liberalismo, tudo isso remete a uma vida burguesa. O interessante argumento do autor é o de que, por conta desse pensamento polarizado herdado do século vinte, e também por uma certa tradição marxista de pensamento, a ideia de burguesia foi sendo empurrada à direita, se opondo frontalmente aos sistemas socialistas de pensamento e ação. Para Nelson, a noção de burguesia se opõe verdadeiramente ao sistema feudal, ao modo de ser medieval europeu, ruralizado, árcade. Mesmo as revoluções comunistas (russa, cubana, chinesa) não tiveram interesse em atacar a revolução burguesa de 1789 na França. Nenhuma delas pregou a volta da monarquia, da nobreza, do clero. Em contrapartida, mantiveram a relação de dominação da cidade sobre os campos, não destituíram de sentido as profissões liberais pequeno-burguesas, valorizaram a burocracia e fortaleceram a ocupação dos grandes centros urbanos. Nas palavras do autor: “o fosso entre feudalismo e capitalismo – ou sociedade moderna, ou burguesa – é mais profundo do que o que pode existir entre capitalismo e socialismo. Estes dois são, no fundo, resultantes do processo geral de secularização, que tanto afeta a esfera cultural quanto a econômica, enquanto o mundo feudal foi anterior àquele processo.”. Apresentar o deslocamento da noção de burguesia ao longo a história é uma excelente ideia (embora, muito francamente, eu também não seja capaz de precisar o quanto ela tem de original).

Quanto à oposição central proposta pelo título do livro (jardim versus praça), e que me motivou a comprá-lo, as ideias são meio embaralhadas. Trata-se de uma discussão interessante sobre o público e o privado, algo como ‘A casa e a rua’, do Roberto da Matta (que não li). A noção que fica é a de que Nelson Saldanha, nesse livro, apresenta uma espécie de pensamento divergente. Gosto do conceito ‘divergência’, acho que o feixe de significados proporcionado por ele é bem adequado à impressão que tive do livro. Se na oftalmologia, divergência tem a ver com a dificuldade de colocar algo em foco, no estudo de séries temporais (da matemática avançada), divergir tem o signficado de não ser possível chegar a um resultado com as condições de acumulação (somas ou produtos) fornecidas. Portanto, considerando ambas as possibilidades, creio ser este um termo que se aplica bem. ‘O jardim e a praça’ tem um problema de foco, mas também de resultados. Sem saber exatamente qual deles é a causa do outro, o que se pode dizer é que o ensaio apresentado nem bem focaliza o tema principal, nem chega a bom termo em termos de resultado, conclusão.

O que se depreende do parágrafo anterior, talvez erroneamente, é que o autor apresenta uma escrita frouxa. Mas, mea culpa, talvez frouxa possa ter sido a minha leitura.

Para além das ideias apresentadas, e pensando um pouco na forma, o que senti ali foi uma espécie de medo. Um medo de que, na ânsia de abarcar todas as esferas do conhecimento (história, sociologia, filosofia) e misturar isso com algum grau de poesia e um certo diletantismo, eu também venha caminhando para me tornar um pouco disso nas coisas que escrevo: uma coisa plástica, em certo sentido bonitinha, mas que não consegue dar ao leitor o mínimo esperado em termos de foco e resultado para que a leitura possa ser avaliada, ao final, como tendo tido algum valor, de alguma forma sido proveitosa.

Voltemos ao livro. Uma outra discussão bastante interessante que se apresenta é sobre as utopias. Acostumamo-nos a pensá-las de maneira positiva. A descontrução proposta por Nelson é a de que as utopias, ao primar pelo público em detrimento do privado, apresentam uma sociedade castradora, planificada, e na qual não há conflitos sociais. Diz Nelson: “as utopias são uma imagem anti-sociológica das coisas (...) Configuram uma sociedade em que nada muda, em que não há processos sociais.”. O que consigo pensar é que, se por um lado, as utopias insitgam o movimento (para que se possa alcançá-las), por outro, projetam um mundo estático, em que esse movimento cessa. Se pensarmos a felicidade como a grande utopia da vida privada, fico com a impressão de que é mesmo assim que as pessoas se pensam e se projetam: a felicidade é tanto um lugar/tempo estático, parado, quanto, subjetivamente, a felicidade também está associada ao repouso, à calma, ao olhar para o mar numa praia paradisíaca enquanto o tempo passa. É claro que a ideia do movimento como algo negativo está impregnada pelas opressões do mundo do trabalho, em que a fruição do próprio tempo em benefício de si mesmo é somente admitida em momentos estritamente demarcados (férias, final de semana, feriados). Entretanto, ainda considerando esses atravessamentos, penso que as pessoas gostam de acreditar nesse mundo ideal, bonitinho, sem conflitos; a felicidade como esse grande paraíso, esse lugar idílico em que as pessoas acariciam tigres tranquilamente, como nos folhetos oferecidos pelas testemunhas de Jeová.

Mas negar o movimento é algo empobrecedor. Tanto para a vida privada, como para a vida pública. Nesse sentido, sempre me lembro de uma entrevista do psicanalista Contardo Calligaris na Folha de São Paulo (o link aponta para a Revista Claudia, mas eu jurava ter lido Folha), em que ele diz não querer ser feliz. ‘Eu quero é ter uma vida interessante’, diz Contardo.

A felicidade (a paz, a democracia, e tantas outras coisas) não estão lá esperando ser alcançadas. Essas coisas têm mesmo sua condição de existência no movimento.

Nesse ponto, entra uma outra construção interessante de Saldanha: “a cultura democrática se considera mais dinâmica em relação aos estágios ‘pré-democráticos’ e, nesse dinamismo cabem, como preço, as instabilidades e as crises latentes”.

Ora, a democracia está em crise no Brasil. Talvez no mundo todo. Mas quando não esteve? Quando a democracia foi ‘um dado do problema’? Talvez a estabilidade proporcionada pelo continuum FHC-Lula-Dilma1 nos tenha dado uma falsa impressão de que a democracia era para sempre, mas ‘o pra sempre sempre acaba’, como já dizia Cássia Eller. Talvez para começar de novo, talvez não. Talvez venha nova, reconfigurada, moldada pelas mãos de muitos ou de poucos, não sabemos.

Mas o que sabemos é que as coisas não estão paradas e que, se olharmos para a história do Brasil vamos ver que a democracia sempre foi um paulatino campo de batalha.

Batalha esta que nem todos querem travar. Parte dessa negação tem a ver com a nossa formação burguesa. Mais uma vez Nelson: “o modo de viver dito burguês seria, no caso, um constante evitar riscos, e como a vida é feita de riscos, ela perde em substância com os excessos de cautela.” Essa passagem explica, um pouco, o atoleiro em que nos enfiamos. Gostar do governo ninguém gosta. Mas quem é que está disposto a ir para rua fazer protesto, enfrenter polícia, correr da cavalaria, receber spray de pimenta na cara, ser chamado de vândalo? A maior parte de nós (incluindo a mim mesmo, nos anos recentes) não está. Fomos educados para sermos avessos ao risco. Isso explica o nosso comportamento (mas, não, não nos exime da culpa).

Essa explicação se dá, em parte por sermos historicamente burgueses, mas também por sermos brasileiros. Saldanha argumenta que somos mais afeitos ao privado do que ao público (é importante ressaltar que o livro é de 2005, muito antes, portanto, de 2013, o ano que ainda não acabou, e que ensejou novas formas e pensar e agir sobre os espaços públicos). Ele explicita suas ideias no trecho a seguir: “De certa forma, o problema do privatismo brasileiro, que se prende ao ‘personalismo’ ainda hoje perceptível, deverá ser entendido em conexão com fenômenos idênticos, correntes em toda a América Latina: latifúndios, famílias dinásticas, caudilhismo político, partidos formados por coalizões pessoais, escassa e descontínua presença do povo e do sentido da coisa pública como tal. (...) Há de qualquer sorte, em torno da tendência nacional ao privatismo (o gigantismo de Brasília e da burocracia nacional é outra coisa), algumas observações a fazer. Vejamos, por exemplo, este paradoxo: um povo em que sempre foi uma constante a violência privada, sob diversas formas (crimes de fim de semana, assassinatos, rixas, faclidade do uso de armas, trânsito violento), e que entretanto não tem o hábito da violência pública. Não o tem em geral, sem embargo de sedições aqui e ali ocorrentes na história; não o tem no sentido do enfrentamento com a milícia nem no da própria disposição revolucionária.

Ora, se somos um povo (na visão de Nelson Saldanha pré-2013) que não ocupa as ruas, que não quer correr riscos; se abdicamos do público, da praça, certamente, é porque estamos cuidando dos nossos jardins, certo?

E aí, Nelson Saldanha, nos deixa essa provocação, com a qual teremos de lidar: “Um privatismo sem jardins. Dir-se-ia ser esse o caso brasileiro.”

Aproveito o final do texto para dizer que, relendo com mais calma minhas anotações, ‘O jardim e a praça’ é sim um ensaio bem rico. Quando comecei a escrever, eu não me lembrava de várias reflexões que eu havia tido durante a leitura, e que fui puxando ao longo do processo de escrita. Então, peço desculpas ao Nelson (que morreu em 2015) e aos leitores desta crítica se fui meio ‘azedo’ nos parágrafos iniciais.

Mas é isso, pensemos no caso brasileiro, um privatismo sem jardins.

PS: Acabei de escrever o texto e fui procurar uma imagem para ilustrá-lo. Tive a ideia de pegar a 'Praça Paris', no bairro da Glória (no Rio de Janeiro) que é ao mesmo tempo, praça e jardim. E funciona de maneira muito boa, tanto como jardim quanto como praça. A Praça Paris nos faz questionar o suposto caso brasileiro, do privatismo sem jardins. Porque ela é justamente o oposto: um lugar público com jardins. Esse pensamento me levou a inserir um ponto de interrogação no título, instigando à reflexão sobre esse pensamento pessimista do Saldanha. Tivesse pensado na Praça Paris antes, eu teria escrito uma coisa completamente diferente, tendo esta praça como eixo norteador. :)

domingo, 3 de setembro de 2017

Identidade e Morenidade

Tão Longe, Tão Perto é o primeiro material de conteúdo acadêmico sobre racismo com que tenho contato. Até então, tudo o que via eram textos jornalísticos ou de opinião, além dos textos do GEB que abordam o tema, mas não são diretamente sobre ele. 
  
Verônica produziu uma obra linda. Muito hábil nas palavras, ela conseguiu colocar um saber técnico sem a aridez dos textos acadêmicos, colocando as próprias impressões nos momentos certos, comentando os resultados de maneira sempre crítica e sóbria. Apenas em um ou dois pontos acho que ela exagera nos termos técnicos estatísticos, considerando que o livro não é a tese, mas isso não compromete em nada o todo da obra. 
  
Para começar a discussão, ela logo coloca a noção de raça na espécie humana como construto cultural, portanto fluido e suscetível a toda sorte de modificações a partir de diferentes contextos e fatores influenciadores. É inútil, pois, buscarmos uma determinação purista ou essencialista do que seria a raça ou suas variações, pois as diferenças biológicas significativas param no nível da espécie. 
  
A revisão bibliográfica e a pesquisa própria de Verônica têm a enorme vantagem de se debruçarem sobre a realidade brasileira, onde a morenidade é importante e significativamente diferente da negritude e da visão estadunidense da “gota de sangue”. As pesquisas são pragmáticas e realistas. 
  
Esse interesse pela mistura é fundamental, pois a ciência gasta muito tempo e recursos na busca de purezas, de fatores isolados, marcadores biológicos puros, quando na verdade a vida é só mistura. A grita biologia (pura) versus sociedade (cultura) deixa de fazer sentido quando estudamos a sério e olhamos com cuidado as relações humanas e suas contradições. 

Uma boa parte da minha leitura de TLTP aconteceu na FLIP, que em 2017 homenageou Lima Barreto. Sob essa influência identifiquei na trajetória de vida Lima Barreto alguns pontos presentes no livro da Verônica. Lima era um escritor brilhante, suburbano, e, apesar de relativamente remediado (tinha trabalho regular), tinha dificuldade de se inserir nos estratos sociais superiores. Vivia o drama do pardo que pode ascender socialmente. Diferentemente de seu antecessor pardo mais celebrado, Machado de Assis, Lima denunciou em sua obra (isso eu percebi no único romance dele que li, Clara dos Anjos) o preconceito racial e social. Teve importante reconhecimento profissional em vida, mas hesitava sempre em se inserir no estrato branco dos mais abastados, a ponto de por mais de uma vez apresentar e retirar candidatura a vaga na Academia Brasileira de Letras. Atormentado por essas ambivalências, sofria com o alcoolismo. Sua obra mostra claramente esse ressentimento com a sociedade que o aceitava apenas parcialmente.  Machado de Assis ignorou o racismo em sua obra e recebeu todo o reconhecimento possível em vida. Lima Barreto denunciou o problema e sofreu as consequências. 
  
A noção de mestiçagem e o papel dos mestiços é particularmente importante no caso do Brasil, onde a mestiçagem foi incorporada ao discurso identitário nacional, seja como característica boa ou indesejável. A ideia da miscigenação como força do brasileiro, a partir de Gilberto Freyre, foi muito criticada por ignorar a discriminação e o preconceito sofrido também pelo “pardo” ou “mulato”. Sinceramente, eu não concordo que Casa Grande e Senzala possa ser resumido nesse tom conciliatório com que muitas vezes a obra é citada. 

Tão Longe, Tão Perto expõe também a rejeição das categorias intermediárias de cor da pele pelo movimento negro. A categoria “pardo” serviria para dividir os negros. Neste caso, é importante notar a particularidade do caso brasileiro, em que variações no tom da pele implicam, necessariamente, variações no grau de preconceito. Um dado interessante, exposto no estudo sobre denúncias de racismo nas delegacias de São Paulo, é que os termos usados nas injúrias aludem ao que a vítima tem de negro, não de pardo 

Há um efeito interessante no relativo à ascensão social dos pardos, que a autora desenvolve muito bem. Que a aceitação de alguns pardos-quase-brancos serviria como forma de se mostrar que a barreira racial no Brasil não é tão significativa, aplacando a revolta dos que querem ascender. Vejo isso como parte de um esquema maior, que valoriza a narrativa do heroísmo e da exceção para deslocar o caráter coletivo do racismo para o particular do mérito do esforço individual. Trata-se, não tenho dúvida, do velho esquema de responsabilizar a vítima.  

No interessantíssimo estudo em que coloca, lado a lado, a relação entre discriminação, classe e cor, fica evidente a diferença entre pretos e pardos, em especial na camada mais abastada. Ali os pardos são mais aceitos como quase brancos, ao passo que com pretos a percepção de discriminação é mais aguda. Isto não deixa dúvida, portanto, que, se em alguns momentos classe e cor podem se confundir, em outros não há a menor confusão. O preconceito é de cor.  

A separação entre o moreno e o pardo merece consideração. Pardo permanece como termo oficial, presente nas estatísticas e estudos, enquanto poucos se descrevem espontaneamente como pardos. Já moreno e suas derivações são utilizados de maneira muito mais ampla pelos próprios sujeitos. Se por um lado isso distancia a pesquisa do dia-a-dia do léxico de cores, por outro cria um nicho protegendo o termo pardo de todas as oscilações vocabulares inerentes ao idioma.   

Neste nosso país marcado pela escravidão, é impossível dizer que o racismo é apenas um problema de brancos ou de negros, ou que a luta contra ele deve se restringir a pessoas desta ou daquela cor. Considerando a penetração ampla da escravidão em diversos estratos sociais, historicamente, e como isso contribuiu para a formação de um povo com desigualdades tão gritantes, a saída para a criação de uma sociedade mais justa passa não só pelo acesso dos negros e pardos à cidadania, mas também pela compreensão dos privilegiados que privilégios não fazem sentido. 

No Brasil a luta pela igualdade racial ganha força, hoje, num momento em que há maior valorização do ganho, lucro e ascensão no plano pessoal do que no coletivo.  O enfraquecimento geral das lutas coletivas, como sindicatos e movimentos sociais em geral prejudica o avanço das correções das desigualdades que prejudicam tanto a nação.  

Após a leitura, fica ainda mais evidente que cor de pele e "raça" são conceitos derivados da cultura, cuja concretude é dada pelo comportamento das pessoas, dos meios de comunicação e altamente variáveis no tempo e no espaço. O livro não propõe aprisionar o conceito e defini-lo, o que se mostraria um esforço fútil, mas entendê-lo como algo fugidio que tem sua materialidade nos prejuízos sofridos pelos discriminados.