sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A cidade e o outro

Imagem retirada do site Na margem, Núcleo de Pesquisas Urbanas da UFSCAR

Acabo de ler ‘Quarto de despejo’, de Maria Carolina de Jesus. Publicado em 1960, o livro é um testemunho em primeira pessoa da vida pessoal da própria autora – um diário. Mais um diário, como tantos outros, alguns poderiam alegar. O que torna, entretanto, esta narrativa um dos maiores best-sellers do Brasil é o fato de ter sido escrito por uma mulher negra brasileira morando em uma favela na cidade de São Paulo às margens do Rio Tietê (a favela do Canindé, posteriormente desapropriada para dar lugar à Marginal Tietê), num cenário de extrema pobreza. À época, foi bastante impactante para a sociedade o relato duro e cru, ainda que eivado de momentos poéticos, de uma mulher favelada, num cenário onde a maioria das pessoas sequer sabia ler.

Esteticamente, gostaria de cotejá-lo com outras duas obras literárias. A primeira delas é o livro “A autobiografia do poeta-escravo”, escrito pelo negro escravizado cubano Juan Francisco Manzano, que se passa no século XIX, e é traduzido para o português por Alex Castro. De maneira similar a ‘Quarto de despejo’, o livro repercute por alguns motivos.

O primeiro deles é a universalidade: isso é bem próprio do que se conhece por ‘literatura de testemunho’. Nesse tipo de literatura, a experiência particular do personagem serve apenas como mote para a descrição de um sistema ou de uma situação que é comum a muitos personagens da mesma categoria. Ainda que possa ser difícil dissociar a experiência particular do personagem da experiência coletiva, o chamariz de público para a leitura é a vivência do coletivo, que muitas vezes acaba por suprimir as idiossincrasias do autor-personagem ao longo da história.

O segundo elemento de repercussão é o pioneirismo. Juan Francisco Manzano é o único escravo latino-americano a ter escrito uma autobiografia (há alguns norte-americanos nessa situação e também o Mahommah Baquaqua, que é africano, mas viveu uma temporada no Brasil e escreveu sua biografia nos EUA e no Canadá). Maria Carolina de Jesus é a primeira favelada a escrever um testemunho (a partir de seu próprio ponto de vista) e publicá-lo, com a ajuda de um repórter que a conheceu no Canindé e se interessou por sua história. As outras pessoas nessas condições não tinham tempo/disposição/alfabetização para escrever. É preciso lembrar que, em ambos os casos, escrever tomava um tempo muito grande, tempo este que era dedicado ao trabalho escravo (no caso de Manzano), ou à ocupação e catadora de papel (no caso de Maria Carolina). O tempo dedicado à escrita, portanto, é um tempo desenquadrado das obrigações do trabalho, e muito custoso, seja em termos de ser pego em desvio de função e apanhar por isso (no caso de Manzano) ou de não estar dedicando seu tempo a catar papel e saciar a fome, além de ser vista como ‘denuncista’ pelos vizinhos da favela (no caso de Maria Carolina). A própria maneira de escrever de ambos, não normatizada pela norma culta da língua, demonstra o quão difícil é transformar essas vivências em letras. A experiência da escrita, portanto, tanto para Manzano quanto para Maria Carolina, é um ato de resistência, e um elemento importantíssimo para a construção da memória, como geralmente acontece com a escrita de testemunho (quem ousaria negar o papel do ‘Diário de Anne Frank’ na construção da memória sobre o período nazista na Alemanha?’).

O terceiro elemento que aproxima as obras de Manzano e Maria Carolina no que diz respeito à repercussão de suas obras é o fetiche. Ambos são oriundos das castas mais pobres e marginalizadas em suas respectivas épocas. Se transmutássemos a realidade do século dezenove de Manzano e do século vinte de Maria Carolina para o século vinte e um, eles comporiam o que Jessé Souza chama de ‘a ralé brasileira’. É sobre essa ralé que se coloca o fetiche das classes mais abastadas. Como vivem os mais pobres? O que é sentir fome? Como é a vida de quem depende das benesses avulsas de um senhor? Como é viver sem poder acumular dinheiro, comprando comida à medida que se trabalha? Todas essas perguntas são apenas pensadas, imaginadas ou discutidas pelas classes mais ricas. Só os marginalizados é que as vivem, que as experimentam efetivamente. Dessa maneira, por mais que membros dessa elite penetrem no submundo da pobreza para contar as suas histórias (como faz Aluísio de Azevedo em “O Cortiço”, num registro bastante verossímil, apesar de ficcional; e como também faz Euclides da Cunha, em “Os Sertões”), é só pela própria voz dos autores-personagens, que vivem e experimentam o que escrevem, que essas obras se convertem em mercadoria e se vendem ao mundo como uma possibilidade de experimentar a vida do outro. É esse mesmo fetiche que, ainda hoje, alimenta o que se conhece por ‘turismo antropológico’, que leva hordas de estrangeiros às favelas da zona sul carioca montados em jipes com guias locais, adentrando os becos e vielas da favela como quem desbrava uma mata virgem e se depara com selvagens.

A outra obra literária que se relaciona esteticamente ao ‘Quarto de despejo’, ainda que de maneira mais leve, é “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago. No romance de Saramago, é imaginado um mundo distópico, onde uma grande cegueira afeta a todos, exceto uma pessoa, a que o autor denomina apenas de ‘a mulher do médico’. Esta personagem, então, carrega a responsabilidade e a culpa de enxergar em um mundo onde todos são cegos. No romance de Saramago, a cegueira pouco a pouco vai bestializando os personagens, desumanizando-os lentamente. A mulher do médico, ao mesmo tempo que faz parte desse mundo bestializado, de pessoas cegas, é aquela que carrega algo que os outros não têm, a visão. O fato de enxergar arregimenta para si a raiva de todos aqueles que não enxergam, somada a uma espécie de esperança redentora.

De maneira similar, corre a vida de Maria Carolina. Apesar de ser uma literatura de testemunho, em que os aspectos particulares de sua personalidade costumeiramente cedem terreno às percepções descritivas do entorno, fica patente o quanto a autora se projeta de maneira superior sobre seus vizinhos e colegas de infortúnio. Fica também clara a lucidez de Maria Carolina, no que diz respeito à honestidade e à moralidade com a qual conduz seu discurso. Todos os seus vizinhos, os favelados, são retratados de maneira bestializada: resolvem as coisas na base da força física, do tiro e da peixeira, comem alimentos do lixo, expõem-se sexualmente em presença de crianças, etc. Maria Carolina, ao mesmo tempo em que se vê como superior a essa realidade, precisa realizar concessões para tornar viável sua vida na favela: precisa conversar e acolher vizinhas, precisa fazer alguma concessão à conversa fiada na fila para encher as latas d’água, precisa colocar limites na sua relação com o homens e com os próprios filhos, etc.

Portanto, assim como a mulher do médico que carrega consigo uma arma redentora (a visão), Maria Carolina também a carrega (a escrita). Ambas as características acenam para um mundo exterior mais civilizado, mais culto, menos bestializado. É preciso frisar que as personagens fazem parte desse mundo bestializado, isto é, o habitam. Mas é como se elas mediassem um discurso com o lado de fora por causa de suas armas (a visão e a escrita), que só podem ser acessadas através dessas ferramentas. Essa mediação as torna, ambas, uma espécie de deus ex-machina (e é daí que vem a responsabilidade que se lhes imputa), capazes de modificar o destino de toda a comunidade através do bom uso de suas armas. É por isso que, tanto no romance de Saramago quanto no diário de Maria Carolina, é comum o pedido de alguns personagens para que intercedam por eles. Um personagem coadjuvante de “Ensaio sobre a cegueira” pode pedir à mulher do médico que diga que horas são, que informe se é dia ou se é noite, assim como um personagem coadjuvante de ‘Quarto de despejo’ pode pedir que a protagonista escreva isso ou aquilo no seu diário, na intenção de que alguma coisa a respeito do seu pedido mude depois de o mesmo ter sido publicado.

Saindo um pouco da análise estética e entrando na política (mesmo sabendo que toda estética é também política), o livro traz alguns aspectos bem interessantes, dos quais eu gostaria de marcar dois em particular.

O primeiro deles é a aceitação de sua própria negritude por parte da protagonista, mas mais do que isso, a propagação por escrito de seu orgulho de ser preta. Em uma determinada passagem, a autora (através de seu eu-lírico) afirma que gosta de ser preta, e que prefere ser preta a ser branca.

É curioso notar como esse pensamento, que parece simples na atualidade para quem tem algum conhecimento sobre os movimentos negros no Brasil, não era a tônica da época. A década de 1950 ocorre apenas duas décadas depois da publicação de ‘Casa-Grande & Senzala’, publicada no Brasil por Gilberto Freyre na década de 1930 e que faz o elogio da mestiçagem, opondo-se frontalmente às ideias eugenistas que estavam em voga durante a Segunda Guerra. Entretanto, é só na década de 1970, isto é, duas décadas após os fatos narrados por Maria Carolina em seu diário, que eclodem nos EUA e se disseminam para os outros países periféricos os movimentos sociais e políticos de valorização da cultura negra, como os Panteras Negras e o Movimento Black Power (sobre esse assunto, recomendo a leitura do livro ‘Carnaval Ijexá’ (1981), de Antonio Risério, em especial o capítulo ‘Do funk ao afoxé’, que explica como a estética do funk e do charm norte-americano acabaram por desembocar nos afoxés baianos e seu blocos de rua e, por sua vez [mas isso o livro não conta por causa de seu ano publicação], de como isso se transmutou nas micaretas e na axé music dos anos 1990). Portanto, a valorização da pele preta de Maria Carolina por ela própria, marginalizada e favelada, longe de um contexto social que favorecesse seu orgulho de raça e sua própria auto-estima, é um feito considerável. Como o livro obteve bastante sucesso na década de 1960, é possível, inclusive, que seu discurso tenha servido como base teórica para os movimentos sociais negros da década seguinte, mas não tenho conhecimento do assunto para afirmar nada concretamente nesse sentido.

O segundo aspecto digno de nota, na minha opinião, é a presença de políticos nas favelas. Tradicionalmente, o Brasil, através de sua estrutura clientelista, olha para as regiões mais pobres e mais populosas nas épocas eleitorais. Como cada cidadão vale um voto, e ainda que se proíbam os analfabetos de votar (como ocorreu, se não me engano, até a Constituição Federal de 1988), esses lugares, mais marcadamente as favelas, são lugares de grande importância para os aspirantes aos cargos eletivos.

Em seu diário, Maria Carolina cita muitos políticos de sua época: o presidente Juscelino Kubistcheck, o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, e alguns deputados. Esses últimos, em especial, aparecem no diário distribuindo alimentos, sempre em busca de votos. Em uma das passagens, ela afirma: “Lavei o assoalho porque estou esperando a visita de um futuro deputado e ele quer que eu faça uns discursos para ele. Ele disse que pretende conhecer a favela, que se for eleito há de abolir as favelas.”

Esse aspecto da política eleitoral em ‘Quarto de despejo’ aponta para a discussão de fatos atuais, que acontecem em 2016. Maria Carolina, mulher, negra e pobre, apresenta em seu relato os políticos da época, diametralmente opostos a si: são homens, brancos e ricos.

As eleições de 2016, apesar de apresentarem uma larga vitória para os segmentos conservadores da sociedade, trazem um fato novo, que pode ser encarado como uma vitória da esquerda: a eleição com votação expressiva de vereadoras mulheres, negras e periféricas em cidades importantes do Brasil.

Esse não é um fato novo. Tivemos Benedita da Silva, no Rio de Janeiro: mulher, negra, favelada; tivemos também o índio Mário Juruna, deputado federal brasileiro na década de 1990. Foram, contudo, fatos isolados na política nacional.

O que acontece em 2016, nesse exato momento, começa a ter a cara de um movimento. A eleição de Marielle Franco (mulher, preta, favelada) como a quinta vereadora mais votada do município do Rio de Janeiro, a eleição de Talíria Petrone (mulher, preta) como a vereadora mais votada de Niterói, e a de Áurea Carolina (mulher, preta, periférica), também como a vereadora mais votada em Belo Horizonte, parecem apontar para um cenário em que a representatividade na política local seja um valor.

É evidente que as eleições são um tema complexo e apontam para muitos lugares diferentes (é bastante difícil situar em um mesmo panorama político as eleições de Marielle Franco como vereadora do Rio de janeiro e de João Dória como prefeito de São Paulo). Mesmo assim, tenho a impressão de que, pela primeira vez em muito tempo, a periferia/favela começa a organizar um movimento de dentro para fora que seja capaz de se articular com o sistema político e de eleger quadros locais que sejam representativos de suas realidades.

O que Maria Carolina fez esteticamente, tomando as rédeas literárias de sua própria realidade, parece reverberar politicamente em 2016, quando outras mulheres pretas tomam as rédeas de suas próprias lutas e se inserem indubitavelmente na cena eleitoral.

Aliás, e já finalizando, as imbricações entre o estético e o político são mesmo muitas. É interessante abordarmos, nesse sentido, a questão da linguagem: o título do livro escrito por Maria Carolina de Jesus é “Quarto de despejo – diário de uma favelada”. É curioso termos um adjetivo para designar quem mora nas favelas. ‘Fa-ve-la-da’. Temos também termos como ‘suburbano’ e ‘periférico’ (não vou comentar o ‘tijucano’, nem tentem). Mas é curioso que não haja adjetivos para quem habitas as zonas centrais ou para as zonas mais ricas da cidade (a Zona Sul, no caso do Rio de Janeiro). Nós, que habitamos essas zonas da cidade, o que somos (além de privilegiados)? Não somos ‘centrais’, nem ‘zonasúlicos’.

O fato de não ter um nome que nos designe nos coloca no suprassumo do privilégio, que é o lugar da normalidade. O normal é morar na Zona Sul, no Centro. É ao outro, ao que se opõe à normalidade, é que vou imputar um nome: o favelado, o barraqueiro, o farofeiro, o suburbano. O normal não precisa de um nome que o defina, o normal já é.

O privilégio, alçado à condição de normalidade (é por isso que quase ninguém o vê, é por isso que é tão difícil fazer com que as pessoas percebam seus próprios privilégios!) se dá não apenas por não ter um nome dado à própria condição, mas também por ser aquele que nomeia os outros. São dois privilégios em um só. É a mais-valia da linguagem!

Alguns movimentos sociais conseguiram com graus maiores ou menores de sucesso imputar nomes àqueles percebidos socialmente como normais/privilegiados. O adjetivo ‘hétero’ ou ‘heterossexual’ (em oposição a ‘gay’) tem alguns anos de uso, e percebo nele uma aceitação crescente (mas pode ser só um viés da minha própria experiência). O adjetivo ‘cis’, ou ‘cisgênero’ (em oposição a ‘trans’ ou a ‘transexual’) começou a ser usado há pouco tempo, e não temos como saber se ele vai vingar ou não. O adjetivo ‘branco’ (em oposição a ‘negro’ ou a ‘preto’, e também em oposição a ‘índio’ ‘gentio’ ou ‘selvagem’ ao longo da história do Brasil) é bem compreendido e utilizado, embora ainda seja necessário muito esforço para que as pessoas brancas assimilem sua branquitude da mesma maneira que as pessoas pretas são obrigadas a assimilar ‘na marra’ a sua negritude. Se pensarmos bem, até na relação campo-cidade, existe o adjetivo ‘urbano’ e o pouco utilizado ‘citadino’, em oposição aos agricultores e camponeses.

Mas para as relações desiguais entre aqueles que habitam as diferentes partes da cidade, os detentores do privilégio permanecem inominados.

Amparado por essa abordagem linguística, é possível dizer que, talvez mais do que as questões de gênero e cor, as desigualdades da urbe e as questões ligadas aos muros internos e invisíveis da cidade sejam ainda mais problemáticas.

Que o exercício da alteridade proposto por Maria Carolina, em diálogo com as questões da cor e da representatividade na política ainda hoje, nos leve a repensar nossas relações com a cidade.
Assim como o gênero e a cor, a cidade é também o que somos.

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