A verdade é que estou impactado.
Encontro-me muito neste jeito de pensar, nessa forma de olhar para as coisas do
mundo: com admiração, espanto, dúvida, nuance. Há em tudo uma esperança. Paul
sabe que há um novo mundo em construção, um mundo que se constrói sobre as
ruínas do mundo antigo.
Essas ruínas não vêm necessariamente
de uma destruição do mundo de hoje. Por outro lado, a ideia é a de que é
preciso erodir o mundo: é preciso fazer morrer esse mundo patriarcal,
heteronormativo, eurocêntrico.
O futuro está nas brechas e nas
fissuras do mundo. Como se do solo rachado das ruínas que somos, pudessem
brotar as flores, as belas flores, de um novo amanhã. Para Paul, o melhor tempo
possível é o hoje, o agora: o tempo das transformações possíveis.
Quanto às ideias presentes nas
colunas, concordo com a maioria. Há uma coluna sobre a Prep (profilaxia de
pré-exposição ao HIV), contudo, com a qual não concordo. Acho que há um
equívoco em supor que a Prep serve apenas aos homens gays passivos. Serve a
todos os homens gays que se dispuserem a tomá-lo, e também a pessoas trans e travestis.
É uma droga importante, que traz paz. Se eu pudesse propor um acordo ao Paul
sobre esse tema, seria algo como “Não mexa com a minha Prep, e eu não mexo com
a sua testosterona injetável. Vamos, juntos, nos locupletar do que nos é capaz
de oferecer a indústria farmacopornográfica.”
Mas se pude racionalmente discordar
de um ponto de uma das colunas, acho importante falar, por outro lado, sobre o
que senti ao ler um outro texto. Terminei de ler “A bala” aos prantos. Esta
coluna tem uma pegada parecida com outra do mesmo livro, “Quem defende a
criança queer?”, mas “A bala” é mais direta, e curiosamente, também mais
poética.
Paul escreve diretamente às
pessoas que têm em seu peito a bala alojada da homossexualidade ou da
transexualidade. Uma bala que não pode ser retirada. Algumas crianças já têm
consigo alojada essa bala desde cedo, em outras pessoas ela chega mais tarde.
Mas a bala está lá. E Paul, super sensível, se dirige às crianças que carregam
a bala no seu peito. E diz a elas que elas não estão sozinhas.
Eu era uma criança que lia
jornais. Eu gostaria de ter lido uma coluna de jornal dirigida às crianças,
dizendo “ei, você, que tem essa bala alojada no seu peito, você não está
sozinho”. Mas a década de 1990, o tempo onde fui criança, me apresentou, por
outro lado, a Banheira do Gugu e a playboy da Tiazinha.
Os dispositivos de reforço dos
mecanismos de funcionamento do sistema sexo-gênero, inflexíveis e
unidirecionais, quase me convenceram de que eu não era um desvio. Não sei
precisar o momento exato em que a bala se alojou em mim, mas não havia coluna
de jornal, nem amigos, nem ninguém com quem eu pudesse conversar sobre a bala
que eu carregava dentro do peito. Então, passei anos no escuro, sem saber se eu
tinha mesmo essa bala. Querendo que não, e portanto, também achando que não.
Quando algum sinal em mim na infância ou na adolescência apontava que eu
poderia ser uma dessas pessoas de peito perfurado, eu julgava tratar-se apenas
de uma coceira leve no peito e que, apesar de sua persistência, sem dúvida não
se tratava de nada grave.
Lembro-me de uma vez, já na
faculdade, em que participei de uma conversa com um grupo de colegas, homens e
mulheres. O grupo discutia animadamente sobre as revistas de mulher pelada. Em
algum momento, me perguntaram se eu as tinha, e por que motivo eu as comprava.
Disse que as tinha, e que gostava delas, mas sobre os motivos disse “que achava
bonitas”, que “gostava das fotos”, etc. Era possível que nesse momento todos
olhassem para o meu peito e soubessem que eu carregava a bala, mas eu não
sabia, ou fingia não saber. Uma das minhas colegas de turma, mulher, encerrou a
discussão dizendo: “A resposta certa é ‘porque me dá tesão’”.
Havia uma resposta certa. Sempre
há uma resposta certa para aqueles que vivem na dualidade da representação
binária do sistema sexo-gênero, e que carregam seus peitos imaculados, sem
vestígio de nenhum projétil. E meu peito aberto sangrava, e todos viram a bala
que eu carregava, menos eu. Talvez eu tivesse só me cortado ou arranhado sem
querer: não, não podia se tratar de algo tão grave quanto uma bala.
Chorei ao ler “A bala” porque me
dei conta de que, talvez por mais tempo do que gostaria, fingi não carregá-la. Eu
iniciei uma vida gay aos 20 anos. Não havia Pabllo Vittar, Paulo Gustavo, nem
Lady Gaga cantando ‘Born this way’, nada disso. Fico feliz, contudo, de ter
podido admitir a mim mesmo que carregava a bala. E que eu precisaria encontrar
os centros quase clandestinos onde se encontravam aqueles que também carregavam
a bala. E de ter podido me virar nesse mundo, tão hostil às pessoas de peito
perfurado, e de também poder contribuir, empírica e discursivamente, para que
ninguém precisasse mais ignorar os projéteis alojados nos seus corações.
Se o objetivo fosse apenas o de
fazer os leitores chorarem, talvez fosse a hora de encerrar esse texto. Mas, como Paul, que depois d’”A bala”
ainda nos apresenta mais dois terços de seu apartamento em Urano, é preciso ir
além.
É curioso notar o aspecto
inexorável da bala. Uma bala que não pode ser retirada. Pode ser ignorada,
afundada ainda mais no peito, ou exposta por entre as veias e as artérias, mas
não pode ser retirada.
A inexorabilidade que aparece
nesse texto é refutada praticamente em todo o restante da sua obra. A todo o
tempo, somos confrontados com a prótese, a genitalidade externa, a ficção de
si, a política cambiante e transformável, e, claro, a própria transição de
Paul. Em “Um apartamento em Urano”, quase tudo é trânsito, passagem e fresta.
Há uma dialética em Paul na qual
me reconheço: é preciso destruir o sistema sexo-gênero, a heteronormatividade e
as noções sobre as quais o mundo está concebido hoje. Mas, para além disso, é
preciso também habitar esse mundo, viver esse mundo. É por isso que Paul, que
não acredita mais nas identidades, que talvez não quisesse ter de dizer “eu sou
trans”, preferindo dizer apenas “eu sou”, é por isso que Paul precisa modular
sua voz na fronteira do aeroporto para fazê-la se encaixar com exatidão no
gênero indicado no seu passaporte. É importante entendermos que somos uma
ficção biopolítica (nossos corpos, documentos e ritos), mas é nesta ficção que
estamos inscritos, e é nela que, neste momento, temos condição e possibilidade
de existência, ainda que possamos e devamos reivindicar outros projetos.
Além da dialética entre o utópico
e o possível, outra se impõe, e Paul também a maneja muito bem: aquela entre o
pessoal e o coletivo, entre o subjetivo e o identitário.
Paul entende a unicidade de seu
percurso. De mulher lésbica a homem trans, o percurso reivindicado é de uma
vida absolutamente singular, que não se quer presa aos ditames de um ou de outro
rótulo, de uma ou de outra identidade. Paul quer destruir o sistema
sexo-gênero, mas permanece, como qualquer um de nós, precisando de seus
documentos.
A anarquia sexual de Paul deve
ter lhe custado alguma amizades. As pessoas que batalharam duramente pelas
identidades, que lutaram muito para poderem bradar a plenos pulmões “Sou um
homem gay casado” devem se espantar com a postura de Paul, que diz “Sou um
dissidente do sistema sexo-gênero.” É duro para alguém que passa a vida
montando os tijolinhos de sua casa da identidade sexual ver chegar alguém e
dizer que esta casa não lhe serve; que não lhe servem esta casa, este bairro,
esta cidade, este país; que não lhe serve sequer este planeta, e é preciso ir
embora para construirmos um apartamento em Urano.
Mas Paul é respeitoso sempre, e
entende o lugar das lutas. Coloca-se nelas, participa, é ativista. Entra em
movimentos coletivos, sabendo-se único. Questiona sua própria identidade,
questiona o conceito de identidade, mas defende aqueles que querem construir uma
nova identidade porque a anterior as oprime.
Preciado tem algo de Caetano
Veloso, que questiona a MPB, que quer mudanças radicais na música, mas quer
continuar fazendo parte dela. A rebeldia de quem se volta contra a plateia e
diz “Vocês não entenderam nada. É essa a juventude que quer tomar o poder?”
Talvez não tenhamos entendido nada,
mas enquanto não entendíamos, Caetano vendeu discos e fez canções de novela, e
Paul colocou sua voz em transição em um jornal de grande circulação na França.
“Um apartamento em Urano” é uma
espécie de outra “Verdade Tropical”, o icônico livro de Caetano Veloso sobre
seu percurso na música e na história brasileira: uma verdade dos tempos novos,
do hoje, do agora. Do potente e do vigoroso, do rebelde.
Não à toa, o encontro entre Caetano e Preciado, que ocorreu na edição virtual da Festa Literária
Internacional de Paraty (FLIP) de 2020, tenha sido tão importante e necessário.
É preciso ouvir com atenção as
dissidências. Sabemos que há riscos. O risco do discurso nuançado e crítico,
nesses casos, é sempre o de ser lido por outra chave interpretativa, que, por
falta de aparato cognitivo, entende como conservador aquilo que é assaz
vanguarda. Nem a censura nem a patrulha conseguem apreender esse discurso,
porque ele parece estar ora de um lado, ora de outro, mas está à frente.
A dissidência precisa ser ouvida
porque, ainda que pense estar abrindo brechas e fissuras, está abrindo picadas,
que nos permitem antever um outro mundo e trilhar esse novo caminho.
Penso que talvez a
inexorabilidade da bala seja algo maior do que o desejo homossexual ou do
entendimento de si como transexual. A bala é queer. E uso aqui a palavra queer
em seu sentido mais potente: de desvio, dissonância, dissidência, enfim, de ser
gauche na vida.
A bala queer atinge a todos que
se desviam da norma. Inegavelmente, aqueles que carregam consigo a bala viemos
para transformar o mundo.
A bala, interpondo-se no caminho
do compasso marcado da norma.
A bala queer.
Abala, queer!