quinta-feira, 3 de junho de 2021

A bala queer


“Um apartamento em Urano”, de Paul Beatriz Preciado, é uma das coisas mais bonitas que já me apareceram para ler recentemente. É um livro fragmentado, feito por colunas de jornal publicadas pelo autor ao longo da década de 10, e que foram reunidas nessa espécie de seleta. São textos curtos, densos e muito potentes, no qual o pensamento dele aflora de maneira a poder ser captado pelo público de maneira leve, algo além da intelectualidade críptica.

A verdade é que estou impactado. Encontro-me muito neste jeito de pensar, nessa forma de olhar para as coisas do mundo: com admiração, espanto, dúvida, nuance. Há em tudo uma esperança. Paul sabe que há um novo mundo em construção, um mundo que se constrói sobre as ruínas do mundo antigo.

Essas ruínas não vêm necessariamente de uma destruição do mundo de hoje. Por outro lado, a ideia é a de que é preciso erodir o mundo: é preciso fazer morrer esse mundo patriarcal, heteronormativo, eurocêntrico.

O futuro está nas brechas e nas fissuras do mundo. Como se do solo rachado das ruínas que somos, pudessem brotar as flores, as belas flores, de um novo amanhã. Para Paul, o melhor tempo possível é o hoje, o agora: o tempo das transformações possíveis.

Quanto às ideias presentes nas colunas, concordo com a maioria. Há uma coluna sobre a Prep (profilaxia de pré-exposição ao HIV), contudo, com a qual não concordo. Acho que há um equívoco em supor que a Prep serve apenas aos homens gays passivos. Serve a todos os homens gays que se dispuserem a tomá-lo, e também a pessoas trans e travestis. É uma droga importante, que traz paz. Se eu pudesse propor um acordo ao Paul sobre esse tema, seria algo como “Não mexa com a minha Prep, e eu não mexo com a sua testosterona injetável. Vamos, juntos, nos locupletar do que nos é capaz de oferecer a indústria farmacopornográfica.”

Mas se pude racionalmente discordar de um ponto de uma das colunas, acho importante falar, por outro lado, sobre o que senti ao ler um outro texto. Terminei de ler “A bala” aos prantos. Esta coluna tem uma pegada parecida com outra do mesmo livro, “Quem defende a criança queer?”, mas “A bala” é mais direta, e curiosamente, também mais poética.

Paul escreve diretamente às pessoas que têm em seu peito a bala alojada da homossexualidade ou da transexualidade. Uma bala que não pode ser retirada. Algumas crianças já têm consigo alojada essa bala desde cedo, em outras pessoas ela chega mais tarde. Mas a bala está lá. E Paul, super sensível, se dirige às crianças que carregam a bala no seu peito. E diz a elas que elas não estão sozinhas.

Eu era uma criança que lia jornais. Eu gostaria de ter lido uma coluna de jornal dirigida às crianças, dizendo “ei, você, que tem essa bala alojada no seu peito, você não está sozinho”. Mas a década de 1990, o tempo onde fui criança, me apresentou, por outro lado, a Banheira do Gugu e a playboy da Tiazinha.

Os dispositivos de reforço dos mecanismos de funcionamento do sistema sexo-gênero, inflexíveis e unidirecionais, quase me convenceram de que eu não era um desvio. Não sei precisar o momento exato em que a bala se alojou em mim, mas não havia coluna de jornal, nem amigos, nem ninguém com quem eu pudesse conversar sobre a bala que eu carregava dentro do peito. Então, passei anos no escuro, sem saber se eu tinha mesmo essa bala. Querendo que não, e portanto, também achando que não. Quando algum sinal em mim na infância ou na adolescência apontava que eu poderia ser uma dessas pessoas de peito perfurado, eu julgava tratar-se apenas de uma coceira leve no peito e que, apesar de sua persistência, sem dúvida não se tratava de nada grave.

Lembro-me de uma vez, já na faculdade, em que participei de uma conversa com um grupo de colegas, homens e mulheres. O grupo discutia animadamente sobre as revistas de mulher pelada. Em algum momento, me perguntaram se eu as tinha, e por que motivo eu as comprava. Disse que as tinha, e que gostava delas, mas sobre os motivos disse “que achava bonitas”, que “gostava das fotos”, etc. Era possível que nesse momento todos olhassem para o meu peito e soubessem que eu carregava a bala, mas eu não sabia, ou fingia não saber. Uma das minhas colegas de turma, mulher, encerrou a discussão dizendo: “A resposta certa é ‘porque me dá tesão’”.

Havia uma resposta certa. Sempre há uma resposta certa para aqueles que vivem na dualidade da representação binária do sistema sexo-gênero, e que carregam seus peitos imaculados, sem vestígio de nenhum projétil. E meu peito aberto sangrava, e todos viram a bala que eu carregava, menos eu. Talvez eu tivesse só me cortado ou arranhado sem querer: não, não podia se tratar de algo tão grave quanto uma bala.

Chorei ao ler “A bala” porque me dei conta de que, talvez por mais tempo do que gostaria, fingi não carregá-la. Eu iniciei uma vida gay aos 20 anos. Não havia Pabllo Vittar, Paulo Gustavo, nem Lady Gaga cantando ‘Born this way’, nada disso. Fico feliz, contudo, de ter podido admitir a mim mesmo que carregava a bala. E que eu precisaria encontrar os centros quase clandestinos onde se encontravam aqueles que também carregavam a bala. E de ter podido me virar nesse mundo, tão hostil às pessoas de peito perfurado, e de também poder contribuir, empírica e discursivamente, para que ninguém precisasse mais ignorar os projéteis alojados nos seus corações.

Se o objetivo fosse apenas o de fazer os leitores chorarem, talvez fosse a hora de encerrar esse  texto. Mas, como Paul, que depois d’”A bala” ainda nos apresenta mais dois terços de seu apartamento em Urano, é preciso ir além.

É curioso notar o aspecto inexorável da bala. Uma bala que não pode ser retirada. Pode ser ignorada, afundada ainda mais no peito, ou exposta por entre as veias e as artérias, mas não pode ser retirada.

A inexorabilidade que aparece nesse texto é refutada praticamente em todo o restante da sua obra. A todo o tempo, somos confrontados com a prótese, a genitalidade externa, a ficção de si, a política cambiante e transformável, e, claro, a própria transição de Paul. Em “Um apartamento em Urano”, quase tudo é trânsito, passagem e fresta.

Há uma dialética em Paul na qual me reconheço: é preciso destruir o sistema sexo-gênero, a heteronormatividade e as noções sobre as quais o mundo está concebido hoje. Mas, para além disso, é preciso também habitar esse mundo, viver esse mundo. É por isso que Paul, que não acredita mais nas identidades, que talvez não quisesse ter de dizer “eu sou trans”, preferindo dizer apenas “eu sou”, é por isso que Paul precisa modular sua voz na fronteira do aeroporto para fazê-la se encaixar com exatidão no gênero indicado no seu passaporte. É importante entendermos que somos uma ficção biopolítica (nossos corpos, documentos e ritos), mas é nesta ficção que estamos inscritos, e é nela que, neste momento, temos condição e possibilidade de existência, ainda que possamos e devamos reivindicar outros projetos.

Além da dialética entre o utópico e o possível, outra se impõe, e Paul também a maneja muito bem: aquela entre o pessoal e o coletivo, entre o subjetivo e o identitário.

Paul entende a unicidade de seu percurso. De mulher lésbica a homem trans, o percurso reivindicado é de uma vida absolutamente singular, que não se quer presa aos ditames de um ou de outro rótulo, de uma ou de outra identidade. Paul quer destruir o sistema sexo-gênero, mas permanece, como qualquer um de nós, precisando de seus documentos.

A anarquia sexual de Paul deve ter lhe custado alguma amizades. As pessoas que batalharam duramente pelas identidades, que lutaram muito para poderem bradar a plenos pulmões “Sou um homem gay casado” devem se espantar com a postura de Paul, que diz “Sou um dissidente do sistema sexo-gênero.” É duro para alguém que passa a vida montando os tijolinhos de sua casa da identidade sexual ver chegar alguém e dizer que esta casa não lhe serve; que não lhe servem esta casa, este bairro, esta cidade, este país; que não lhe serve sequer este planeta, e é preciso ir embora para construirmos um apartamento em Urano.

Mas Paul é respeitoso sempre, e entende o lugar das lutas. Coloca-se nelas, participa, é ativista. Entra em movimentos coletivos, sabendo-se único. Questiona sua própria identidade, questiona o conceito de identidade, mas defende aqueles que querem construir uma nova identidade porque a anterior as oprime.

Preciado tem algo de Caetano Veloso, que questiona a MPB, que quer mudanças radicais na música, mas quer continuar fazendo parte dela. A rebeldia de quem se volta contra a plateia e diz “Vocês não entenderam nada. É essa a juventude que quer tomar o poder?”

Talvez não tenhamos entendido nada, mas enquanto não entendíamos, Caetano vendeu discos e fez canções de novela, e Paul colocou sua voz em transição em um jornal de grande circulação na França.

“Um apartamento em Urano” é uma espécie de outra “Verdade Tropical”, o icônico livro de Caetano Veloso sobre seu percurso na música e na história brasileira: uma verdade dos tempos novos, do hoje, do agora. Do potente e do vigoroso, do rebelde.

Não à toa, o encontro entre Caetano e Preciado, que ocorreu na edição virtual da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2020, tenha sido tão importante e necessário.

É preciso ouvir com atenção as dissidências. Sabemos que há riscos. O risco do discurso nuançado e crítico, nesses casos, é sempre o de ser lido por outra chave interpretativa, que, por falta de aparato cognitivo, entende como conservador aquilo que é assaz vanguarda. Nem a censura nem a patrulha conseguem apreender esse discurso, porque ele parece estar ora de um lado, ora de outro, mas está à frente.

A dissidência precisa ser ouvida porque, ainda que pense estar abrindo brechas e fissuras, está abrindo picadas, que nos permitem antever um outro mundo e trilhar esse novo caminho.

Penso que talvez a inexorabilidade da bala seja algo maior do que o desejo homossexual ou do entendimento de si como transexual. A bala é queer. E uso aqui a palavra queer em seu sentido mais potente: de desvio, dissonância, dissidência, enfim, de ser gauche na vida.

A bala queer atinge a todos que se desviam da norma. Inegavelmente, aqueles que carregam consigo a bala viemos para transformar o mundo.

A bala, interpondo-se no caminho do compasso marcado da norma.

A bala queer.

Abala, queer!