“A América Latina – Males de
Origem”, publicado em 1905 por Manoel Bomfim, é um livro muito poderoso. Só
mesmo o poder deste livro, sua contundência e sua precisão quase cirúrgica ao
apresentar para o leitor os males que afligiam a América latina (e ainda
afligem) justificam o silêncio sepulcral que se faz em torno desta obra, e da
vida de Manoel Bomfim de maneira geral. Apesar de sua versão em pdf disponível
na internet (trata-se de uma obra de domínio público), o livro está fora de
catálogo; portanto, não pode ser encontrado nas livrarias. Quanto aos sebos,
comprei o único exemplar disponível na Estante Virtual e, com algum esforço
financeiro, pude desfrutar da obra impressa. Na contracapa do livro, há alguns
comentários sobre o autor. Um deles, o de Aluizio Alves Filho, é
particularmente representativo: “Não nos
iludamos, Manoel Bomfim não é apenas um ensaísta esquecido; mais que isto: faz
parte de um discurso que procuram silenciar.”
O ensaio de Manoel Bomfim tem
como mote uma metáfora entre o processo de colonização sul-americana e o
processo biológico do parasitismo. A partir dessa ideia, o autor desdobra o seu
pensamento em uma miríade de temáticas: a crueldade dos portugueses e espanhóis
quando chegaram à América, a relação com os Estados Unidos, o conservadorismo, a
república, a instrução popular.
Temas mais contemporâneos, e que
poderíamos julgar não ser possível abordar àquela época estão também
contemplados: o racismo, a construção da democracia, os privilégios, o fazer-se
cumprir das constituições e, pasmem, a questão da dívida pública e da
distribuição orçamentária.
Manoel Bomfim assume posições
francamente progressistas. Muito à frente do seu tempo, é natural que seu
discurso tenha permanecido encoberto. Certamente, houve muita incompreensão,
justamente por ser um contradiscurso, um discurso dissonante dos seus pares da
alvorada republicana. Mas houve também má-fé, tentativa de silenciamento, um
esforço ativo no sentido de fazê-lo esquecido, não-lido. Como já disse,
trata-se de um livro poderoso, quase incendiário.
Existe também uma outra razão
para que o livro de Manoel Bomfim tenha permanecido no esquecimento, e embora o
próprio autor não tenha podido dizer isso (uma vez que é impossível saber o
alcance do livro no momento em que se o escreve), ele apresenta conceitualmente
a causa de seu obscurantismo: o analfabetismo.
Segundo o autor, a proclamação a
República nada teve a ver com democracia. Muda-se uma coisa aqui, outra ali,
redistribuem-se os cargos imperiais em cargos republicanos, trocam-se os nomes
das posições de comando, mas permanece lá uma velha oligarquia, conservadora,
reacionária, ciente dos próprios privilégios e que efetua manobras sempre no
sentido de mantê-los, conservá-los. Como é possível exigir que a república
possa ser realmente uma instituição democrática quando se excluem os analfabetos
e eles contam 90% da população brasileira? Nas palavras do autor: “Fez-se a república no Brasil e adotou-se- o
regime da democracia pura, o sufrágio universal; o governo seria, apenas, um
mandatário – o delegado, representando a vontade da maioria da nação. Tal é a
essência do regime – um órgão governamental em nome da maioria. Não sendo
assim, não concorrendo a maioria das vontades para instituir os poderes
públicos, está falseado o sistema. Ao mesmo tempo, compreendendo, e
compreendendo muito bem, que, hoje, o indivíduo analfabeto não é um cidadão
completo, e que, numa democracia, todo cidadão deve conhecer seus direitos e
deveres – compreendendo isto, a Constituição republicana estabelece que ‘só
serão eleitores os indivíduos que souberem ler e escrever’. No entanto, ocorre
que no país, apenas 10% dos cidadãos sabem ler e escrever, e vem dali que,
mesmo quando as eleições fossem puríssimas, ainda assim, o regime estaria
falseado – porque apenas 10% dos cidadãos iriam às urnas. Em hipótese nenhuma,
seria uma República democrática, pois que o governo representa a vontade de uma
minoria insignificante, e o sufrágio universal – uma burla, visto a ignorância
absoluta das massas. Dado isto, qual o dever do Estado-República? Mandar
ensinar a ler a escrever a esta população de analfabetos. Bem, há treze anos
que existe a República, e, em todo esse tempo, nenhuma voz reclamou contra este
absurdo, ninguém se ocupa do assunto.”
A massa de analfabetos que
compunha a população no início do século XX era responsável por sustentar uma máquina
estatal desproporcional e autofágica, patrimonialista, garantidora de
privilégios (não é assim que funciona o Judiciário ainda hoje?). Em nenhum
momento, Manoel Bomfim sustenta uma posição de acabar-se com o Estado, uma
posição anárquica. Mas ele coloca muito bem a questão orçamentária e, embora
não de forma nominal, aponta para a questão da auditoria cidadã da dívida, uma
das questões de grande relevância política nos dias de hoje, e atualíssima: “Examine-se
um orçamento como o do Brasil: o cômputo geral das despesas (1903) é de
300.000:000$000, dos quais apenas 47.000:000$00 são gastos em serviços de
verdadeira utilidade pública. Tudo mais – duzentos e cinquenta e três mil
contos – representam capítulos improdutivos, despesas de magnificência ou
compromissos estéreis do passado; 15%, tão-somente, das despesas do Estado vão
para serviços de interesse coletivo; 85% são consumidos, de uma forma ou de
outra, com aparelhos e privativos do Estado, ou com as dívidas contraídas
também no seu interesse, contra os da nação. (...) A receita é, quase toda,
consumida por estas quatro rubricas – dívida pública, máquina pública, força
pública, repartições fiscais. Se, ao menos, essa dívida pública representasse
empréstimos contraídos para a realização de obras de interesse coletivo,
melhoramentos, etc... Mas não; ela compreende empréstimos que foram devorados
pelo Estado como renda ordinária.” Não estaria nesse parágrafo de 1905 o
sêmen de uma discussão sobre a Auditoria Cidadã da Dívida Pública que só toma
corpo no alvorecer do século XXI? Não encampa este parágrafo uma discussão
sobre orçamento participativo, sobre a forma de gastar o dinheiro proveniente
dos tributos, sobre a função da dívida no orçamento?
Se olharmos com calma para esses
quatro itens apontados como os campeões de orçamento em 1903, podemos ver como
estamos um século depois. A dívida pública ainda responde por quase metade do
orçamento da União. A força pública, a polícia, embora não seja de
reponsabilidade da União, é sobrevalorizada pelo Estado. Esta sobrevalorização
não é dada em forma de salários aos policiais, mas é dada em forma de drones,
sistemas de vigilância, armas de fogo, armas não-letais, balas de borracha, gás
lacrimogênio e, principalmente, prestígio, um prestígio de tapinha nas costas
dadas à instituição da polícia e aos seus membros pelos governantes após uma
ação truculenta e silenciadora contra os movimentos sociais, prestígio este que
se ancora no conluio com boa parte da população. As repartições fiscais, nos dias
de hoje, ainda estão na briga com os entes do poder Judiciário para ver quem é
mais bem-sucedido em herdar o ranço patrimonialista que lhes garantem
privilégios há mais de um século. Por fim, a máquina pública, apesar dos
esforços de modernização, ainda apresenta aspectos bem onerosos e,
especialmente nos poderes Legislativo e Judiciário, ainda se estrutura na
manutenção de privilégios e no patrimonialismo, na promiscuidade da
indissociabilidade quase monárquica entre o público e o privado. É evidente que
melhoramos muito nos últimos cento e poucos anos. Mas ainda carregamos
estruturalmente esse embate entre um povo que se quer liberto e uma classe de
parasitas. Mais uma vez Manoel: “Breve é
a luta que não findará mais, entre a classe privilegiada pela tradição, pela
pátria de origem, solidarizada pelo egoísmo coletivo, ciosa dos seus
‘direitos’, garantida pela fortuna, fortalecida pela autoridade, gozadora
indisputada até então, senhora absoluta de toda a riqueza e de todas as
posições – e a luta entre ela e as novas populações, extenuadas já ao nascerem,
miseráveis, desabrigadas de todo o conforto, ignorantes e pobres, mas em todo
caso investindo para a vida, e dispostos a tomar conta da terra onde nasceram,
aspirando vagamente fazer alguma coisa de si mesmas.”
Nos trechos observados até agora,
é interessante notar que o discurso de Manoel Bomfim é tão atravessado pela
linguagem poética quanto o foram, alguns anos seguintes o de Gilberto Freyre,
em “Casa-Grande & Senzala”, e o de Eduardo Galeano, em “As veias abertas da
América Latina”, nestas duas obras que podemos dizer, aparecem como um
desdobramento, um desenrolar, ou, para mantermos a poesia do discurso, como
filhas da obra de Manoel Bomfim. Mas só os filhos alcançaram fama e glória.
Dizer que Manoel Bomfim é
precursor de Gilberto Freyre é apontar para o fato de que já em 1905, em pleno
fervilhar das ideias racistas e de eugenia, e pouquíssimo tempo após a abolição
da escravatura no Brasil, Manoel Bomfim já aponta para a insustentabilidade das
ideias de raça superior e de raça inferior, e para a defesa da mestiçagem.
Primeiro, ele faz uma defesa do negro brasileiro, explicando que o negro era
tratado realmente como capital, como não-humano, e que não podia haver nada de
humano nas relações entre o escravo e senhor de engenho. Vejam o trecho: “Comprado ou vendido, o negro ou o índio era
um capital: o chicote, o meio de crescer-lhe o juro, o recurso para que não se
extraviasse. ‘Fazia-se ao negro o que não é lícito fazer a nenhuma espécie de
gado.’ Ao moralista e ao sociólogo há de parecer impossível, ao ler as crônicas
da escravidão, que entes humanos houvessem chegado ao estado de perversão moral
característico e comum nos senhores de escravos. Não se trata de coisas
passageiras, de ódios e cruezas que acompanhavam as lutas armadas. Não; é a
abjeção moral definitiva, a perversidade e desumanidade permanentes: gerações e
gerações de homens que viveram a
martirizar, a devorar gerações de índios e de negros escravos – pela fome, o
açoite, a fadiga... Não havia nada de humano nas relações entre senhor e
escravo.” A estrutura desse pensamento é particularmente importante porque
é muito comum que se defendam ensaístas e escritores que tenham se posicionado
de forma essencialmente racista ao longo do século XX, especialmente na
primeira metade do século. O argumento que muitos utilizaram para defender o
racismo de Celso Furtado (cuja desconstrução faço aqui) é que ele é, de
certa forma, vítima do próprio tempo. Ora, mais ou menos cinquenta anos antes
de Celso Furtado escrever ‘Formação econômica do Brasil’, foi possível alguém
pensar que enxergar o negro e o índio como recursos, como capital, é perpetuar
tudo que existe de abjeto na relação senhor-escravo. Ainda na defesa do negro
brasileiro, prossegue algumas páginas adiante Manoel Bomfim: “Citam-se os clássicos defeitos dos negros:
submissão incondicional, frouxidão de vontade, docilidade servil... Tais
qualidades são antes o efeito da situação em que os colocaram. Pensem na mísera
condição desses desgraçados, que, jovens ainda, ignorantes, de inteligência
embrionária, são arrancados ao seu meio natural e transportados a granel, nos
porões infectos, transportados por entre ferros e açoites, a um outro mundo, à
escravidão desumana e implacável! É como se, a nós, nos atirassem à Lua!”
Outro ponto em que o argumento de Manoel Bomfim precede o de Gilberto Freyre é
aquele que diz respeito à defesa da mestiçagem: “Não há na história da América Latina um só fato provando que os
mestiços houvessem degenerado de caráter, relativamente às qualidades
essenciais da raças progenitoras. Os defeitos e virtudes que possuem vêm da
herança que sobre eles pesa, da educação recebida e da adaptação às condições
de vida que lhes são oferecidas. (...) Quanto à inteligência, ninguém
contestará que os há – mestiços – admiravelmente bem dotados. São exceções,
dizem. Sim, sem dúvida que são exceções; não só entre os mestiços, mas por toda
parte – os grandes talentos, os gênios, constituem exceção, formam uma minoria
insignificante sobre a massa geral, banal, medíocre. Dar-se-á, por acaso, que a
Inglaterra seja constituída de Shakespeares, Newtons e Bacons, ou que na
Alemanha só haja Goethes e Gutenbergs?” O argumento final, entretanto, para
que Manoel Bomfim derrube a tese sobre a defesa das raças superiores é o de que
não se pode tomar como prova de superioridade de uma raça sobre a outra apenas as
circunstâncias atuais. Sobre os índios e negros, nas palavras do autor: “Que é que prova serem eles assim incapazes
e inferiores? ‘O fato de se manterem até agora como selvagens ou bárbaros.’ É
esta a única prova positiva apresentada. Um tal modo de raciocinar é idêntico
ao de um grego do século de Péricles, que, ao contemplar o estado de barbaria
absoluta, de abjeção e atraso, dos povos todos que posteriormente formaram a
Alemanha, Áustria, França, Inglaterra, Países Baixos, Bélgica, Escandivávia,
Rússia e Estados Unidos – e atendendo à distância social entre eles e os
atenienses, concluísse que aqueles bárbaros eram inferiores, e declarasse
incapaz de progredir essa raça de onde deviam sair Newton e Shakespeare,
Leibniz e Rembrandt, Pascal e Molière, Bacon e Darwin, Pasteur e Auguste Comte,
Goethe e Tolstoi e Ibsen, e todos os gênios da civilização moderna... Mal se
compreende como esses homens confundem assim, lastimosamente, as ‘alternativas
históricas dos povos’ com ‘inferioridade definitiva de raças’.”
A partir dessas citações, é
razoável supor Manoel Bomfim como precursor de Gilberto Freyre, que viria a
publicar ‘Casa-Grande e Senzala” vinte anos depois. Mas por que Gilberto Freyre
se tornou um clássico e Manoel Bomfim permaneceu obscuro? Trata-se de uma
questão não só de abordagem temática, mas de posicionamento político. Gilberto
Freyre defende o negro e o mestiço brasileiros através de um discurso
pacifista, conciliatório. Ele consegue, a um só tempo, colocar os negros e
mestiços numa situação de não-inferioridade (considerando o padrão racista
vigente na época), humanizando-os, e praticamente suprimir as relações de
opressão existentes entre senhores e escravos, entre negros a brancos, criando
esse mito do congraçamento das raças no Brasil. Esse discurso, de humanizar os
historicamente desumanizados ao mesmo tempo em que suprime a culpa dos
desumanizadores, dá a Gilberto Freyre uma posição muito similar ao lulopetismo
brasileiro da primeira década do século XXI, que alcança marcas históricas de
popularidade por se ancorar numa espécie de congraçamento de opressores e
oprimidos, ora arrefecendo um pouco as condições dos oprimidos, ora expiando a
culpa dos opressores. Manoel Bomfim não obtém esse sucesso porque se insere
genuinamente como um contra-discurso. Fica muito claro para quem o lê que as
condições históricas dos negros ao longo dos mais de três séculos de escravidão
é indissociável da relação parasitária dos ibéricos com a riqueza americana,
que, por sua vez, é indissociável da miséria da população não-escravizada,
espraiada pelos sertões brasileiros, analfabeta, e que, por isso, não pode
também se dissociar da burla que se torna o sistema republicano nestas
condições, completamente apartado de um regime verdadeiramente democrático, e
assim sucessivamente. Manoel Bomfim não acena positivamente para nenhuma elite,
para nenhum conservadorismo, e por isso, permanece obscuro.
Uma outra coisa muitíssimo
importante que acontece nesse texto, e que pode passar despercebido por muitos
leitores, é o uso da palavra ‘machismo’. É uma pena que Manoel Bomfim não tenha
desenvolvido a ideia, e não tenha ficado claro qual sua posição em relação a este
assunto, mas, antes ainda do movimento das sufragettes na Europa, que
pleiteavam o direito feminino ao voto, Manoel Bomfim escreve: “Não há liberdade, pois que a vontade da
nação não existe, pois que são sacrificados os mais essenciais dos princípios
de justiça; todavia, as gerações se vão entretendo com o ‘fogo de vista’
parlamentar-constitucional – o jogo do machismo democrático, onde só não
existia o elemento democrático, o povo.” Ou seja, a parte que não existe é
o ‘democrático’, ao que fica claro que o ‘machismo’ é, portanto, a parte que
existe. Talvez se devessem consultar obras posteriores do autor para verificar
se existe algum posicionamento dele em relação à questão das mulheres.
Entretanto, mesmo quando isto se não nos apresenta de maneira direta, é
importante registrar este que é, possivelmente, um dos primeiros usos da
palavra ‘machismo’ num texto brasileiro.
É na minúcia de cada palavra,
realmente, que se apreende o pensamento de Manoel Bomfim. Muitos podem
acusá-lo, e talvez não sem razão, de positivista. O autor tem uma noção linear
e retilínea de progresso, acredita que a humanidade caminha a passos largos
para esse progresso que ainda é difuso, mas que ocorrerá. Entretanto, apesar
disso, ele critica a cultura do bacharelismo, do encarceramento do conhecimento
nas torres de marfim universitárias, da cultura letrada sem lastro nas
vivências e nas experiências, da repetição dos clichês econômicos e científicos
que são muitas vezes produzidas pela ‘sociologia
oficial da Europa e dos Estados Unidos’ (olhem aí como ele se adianta às
discussões contemporâneas de produção local de conhecimento!). Mas o argumento
que afasta Manoel Bomfim do discurso positivista é o que se pode ver abaixo, na
crítica da lei constitucional do início da República: “Veio a República, e quando a proclamaram, já foi – a República
Federativa dos Estados Unidos do Brasil. Aboliu-se a centralização, adaptou-se
o federalismo, pediu-se uma Constituição... Uma Constituição para o Brasil não
centralizado? ... Está achada: abre-se a Constituição dos Estados Unidos da
América do Norte, e a Constituição da Suíça, e algumas páginas da Constituição
argentina; corta daqui, tira daí, copia dacolá, cosem-se disposições de uma, de
outra, e de outra, alteram-se alguns epítetos, pregam-se os nomes próprios,
tempera-se o todo com um molho positivistoide, e temos uma Constituição para a
República do Brasil, na qual só não entraram as necessidades, a história do
Brasil.” O uso do termo ‘positivistoide’ dessa maneira irônica, em tom de galhofa,
evidencia que o autor não se sente preso a uma escola positivista ou aos ideais
positivistas, e se coloca de maneira absolutamente independente quando escreve,
embora, evidentemente, alguma parte desse positivismo corrente seja contemplada
em seu próprio discurso, mas apenas aquela parte que o autor julga pertinente.
Quanto à projeção e ao alcance
desse seu discurso, vimos que, apesar da baixa aceitação à época, suas ideias
aparecem em Gilberto Freyre e em Eduardo Galeano. Gilberto Freyre consegue
emplacá-las porque, como já foi dito, opta por uma abordagem conciliatória. Mas
e “As veias abertas da América Latina”? Neste livro, que é o mais genuíno filho
de “América Latina – males de origem”, estão lá arrebanhando multidões todos os
mesmos elementos que, alguns anos antes, haviam sido justamente aqueles
responsáveis pelo fracasso de “América Latina – males de origem”. A abordagem
pan-latinoamericana não encontra eco em um momento em que todos os povos estão
voltados para a construção e afirmação das próprias nacionalidades, logo após
cortarem os vínculos coloniais com a metrópole. Além disso, o livro escrito em
português dificulta a circulação das ideias pelos outros países do continente,
todos falantes do espanhol. Alguns anos mais tarde, sob a égide das ditaduras
civil-militares nos anos 1970, o livro de Eduardo Galeano, apesar de proibido
em muitos países, obtém sucesso. Nesse momento, as nacionalidades
latino-americanas já estão solidificadas, apesar de suas questões políticas
internas estarem em plena ebulição. É também nesse momento que fica mais clara uma
necessidade de compreensão dos fenômenos políticos que afligem de forma
inescapável todos os países que compõem a América Latina. É importante
ressaltar que, nesse momento posterior, já existe a União Soviética, que se
apresenta como alternativa ao capitalismo, e também o movimento da contracultura.
Nesse sentido, o livro de Eduardo Galeano, apesar de se apresentar como
contradiscurso, se insere numa espécie de discurso do contradiscurso, compondo
uma cena onde surgem como propostas, além de um outro discurso, uma outra
cultura, uma outra política e uma outra estética. Para Manoel Bomfim, em cuja
época não havia existido sequer a Revolução Russa, a inserção de suas ideias
ficou bloqueada pelo discurso dominante, oscilando, na percepção dessa elite,
entre a incompreensão e o panfleto. Eduardo Galeano também se beneficia mais
uma vez da estética de seu tempo, que valoriza a criação de textos menos crus,
no sentido de permitir e estimular a plasticidade poética do material escrito, e
aceitando a falta de clareza na fronteira entre o que é ensaio e o que é
literatura. Nesse sentido, Manoel Bomfim, ao escrever um texto bastante
adjetivado e de forte densidade poética, pode ser visto, a seu tempo, apenas
como um ensaísta pouco rigoroso, frouxo. Gilberto Freyre, na mesma toada
adjetivada e malemolente, já é percebido vinte anos depois não apenas como
vanguarda científica, mas também como vanguarda estética. Eduardo Galeano,
valendo-se das mesmas propriedades estéticas dos outros dois, isto é,
valendo-se de forma simultânea tanto dos elementos da construção poética quando
da densidade da pesquisa científica e histórica, escreve um texto já dentro do
seu tempo, e que é recebido de braços abertos por um segmento populacional
significativamente alfabetizado que já o espera.
Manoel Bomfim não escreve para os
pobres. Ele sabe que apenas 10% da população brasileira sabia ler. Nesse
contexto sociocultural da República Velha, portanto, toda escrita nasce da
elite e é destinada a essa mesma elite de alfabetizados. Por que, então, e para
que, então, escreve Manoel Bomfim? Para o futuro, diriam alguns. Talvez. Mas se
o que move aquele que escreve é o desejo de ser lido, e se o futuro é sempre uma
incógnita, é indispensável considerar o a valorização do tempo presente, do
agora, na obra de Manoel Bomfim. Ele escreve para seus pares da elite,
sabidamente: homens, alfabetizados, letrados, políticos e/ou bacharéis. Apesar
de culpá-los a todos pelo fracasso até então do projeto brasileiro e
latino-americano (nações pobres, esfarrapadas, em que praticamente não há o que
se conservar), e apesar mesmo de chamá-los parasitas os seus pares e leitores,
em nenhum momento Manoel Bomfim apresenta-se como comunista ou como anarquista,
ou como membro de um movimento de esquerda. Dando-se a ver exclusivamente pelas
ideias que defende, Manoel Bomfim é um progressista, mas que muito sabiamente
não se rotula de nenhuma maneira. Isto tem um propósito, que me parece claro.
Rotular-se é, de alguma maneira, fechar-se ao diálogo, ou como se diz aqui no
século vinte e um, romper as pontes. Ao evitar se rotular ideologicamente ou
partidariamente, e apresentando-se com um pensamento independente, ele evita
que alguém desvalorize seu livro só pela pecha: “Não lerei; trata-se de um
comunista”. Ou ainda: “Esses bolcheviques são mesmo incendiários.”. Ao evitar
cair na armadilha fácil do rótulo, Manoel Bomfim abre espaço para o difícil
diálogo, em que aquele que quiser derrubá-lo terá que o fazer por meio de um
embate de ideias, que deverá, necessariamente, passar ao largo de uma
desqualificação ideológica.
Nesse sentido, para aqueles
homens da República Velha, foi mais fácil ignorá-lo, negá-lo, fingir que ele
não estava lá. Felizmente, outros pensadores como Gilberto Freyre e Eduardo
Galeano puderam levar a cabo a defesa de suas ideias, mesmo muitos anos depois,
onde o mundo se apresentava outra vez renovado, mas ainda preso a algumas
práticas e pensamentos parasitários, que ainda hoje se fazem sentir.
Manoel Bomfim é dos pensadores
mais ricos que este país foi capaz de produzir. Ainda hoje, no século vinte e
um, sua obra continua fazendo parte de um discurso que se quer silenciar. Tal
como a Revolução Haitiana ou como a Inconfidência mineira, o sufocamento das
ideias de Manoel Bomfim tem a ver, de certa maneira, com a ousadia daqueles
que, pela primeira vez, postulam algo que questiona a lógica dos privilégios
sobre a qual a história ocidental se erige. As ideias, muitas da vezes,
avançam: a escravidão acabou, a república foi proclamada, o Brasil é um país
alfabetizado. Mas o Haiti ainda hoje rasteja na dança da nações, Tiradentes foi
enforcado, e Manoel Bomfim permanece um autor obscuro. Invariavelmente, a
vanguarda cobra o seu preço.