sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Manoel Bomfim – lucidez, vanguarda e dissonância na República Velha



“A América Latina – Males de Origem”, publicado em 1905 por Manoel Bomfim, é um livro muito poderoso. Só mesmo o poder deste livro, sua contundência e sua precisão quase cirúrgica ao apresentar para o leitor os males que afligiam a América latina (e ainda afligem) justificam o silêncio sepulcral que se faz em torno desta obra, e da vida de Manoel Bomfim de maneira geral. Apesar de sua versão em pdf disponível na internet (trata-se de uma obra de domínio público), o livro está fora de catálogo; portanto, não pode ser encontrado nas livrarias. Quanto aos sebos, comprei o único exemplar disponível na Estante Virtual e, com algum esforço financeiro, pude desfrutar da obra impressa. Na contracapa do livro, há alguns comentários sobre o autor. Um deles, o de Aluizio Alves Filho, é particularmente representativo: “Não nos iludamos, Manoel Bomfim não é apenas um ensaísta esquecido; mais que isto: faz parte de um discurso que procuram silenciar.”

O ensaio de Manoel Bomfim tem como mote uma metáfora entre o processo de colonização sul-americana e o processo biológico do parasitismo. A partir dessa ideia, o autor desdobra o seu pensamento em uma miríade de temáticas: a crueldade dos portugueses e espanhóis quando chegaram à América, a relação com os Estados Unidos, o conservadorismo, a república, a instrução popular.

Temas mais contemporâneos, e que poderíamos julgar não ser possível abordar àquela época estão também contemplados: o racismo, a construção da democracia, os privilégios, o fazer-se cumprir das constituições e, pasmem, a questão da dívida pública e da distribuição orçamentária.

Manoel Bomfim assume posições francamente progressistas. Muito à frente do seu tempo, é natural que seu discurso tenha permanecido encoberto. Certamente, houve muita incompreensão, justamente por ser um contradiscurso, um discurso dissonante dos seus pares da alvorada republicana. Mas houve também má-fé, tentativa de silenciamento, um esforço ativo no sentido de fazê-lo esquecido, não-lido. Como já disse, trata-se de um livro poderoso, quase incendiário.

Existe também uma outra razão para que o livro de Manoel Bomfim tenha permanecido no esquecimento, e embora o próprio autor não tenha podido dizer isso (uma vez que é impossível saber o alcance do livro no momento em que se o escreve), ele apresenta conceitualmente a causa de seu obscurantismo: o analfabetismo.

Segundo o autor, a proclamação a República nada teve a ver com democracia. Muda-se uma coisa aqui, outra ali, redistribuem-se os cargos imperiais em cargos republicanos, trocam-se os nomes das posições de comando, mas permanece lá uma velha oligarquia, conservadora, reacionária, ciente dos próprios privilégios e que efetua manobras sempre no sentido de mantê-los, conservá-los. Como é possível exigir que a república possa ser realmente uma instituição democrática quando se excluem os analfabetos e eles contam 90% da população brasileira? Nas palavras do autor: “Fez-se a república no Brasil e adotou-se- o regime da democracia pura, o sufrágio universal; o governo seria, apenas, um mandatário – o delegado, representando a vontade da maioria da nação. Tal é a essência do regime – um órgão governamental em nome da maioria. Não sendo assim, não concorrendo a maioria das vontades para instituir os poderes públicos, está falseado o sistema. Ao mesmo tempo, compreendendo, e compreendendo muito bem, que, hoje, o indivíduo analfabeto não é um cidadão completo, e que, numa democracia, todo cidadão deve conhecer seus direitos e deveres – compreendendo isto, a Constituição republicana estabelece que ‘só serão eleitores os indivíduos que souberem ler e escrever’. No entanto, ocorre que no país, apenas 10% dos cidadãos sabem ler e escrever, e vem dali que, mesmo quando as eleições fossem puríssimas, ainda assim, o regime estaria falseado – porque apenas 10% dos cidadãos iriam às urnas. Em hipótese nenhuma, seria uma República democrática, pois que o governo representa a vontade de uma minoria insignificante, e o sufrágio universal – uma burla, visto a ignorância absoluta das massas. Dado isto, qual o dever do Estado-República? Mandar ensinar a ler a escrever a esta população de analfabetos. Bem, há treze anos que existe a República, e, em todo esse tempo, nenhuma voz reclamou contra este absurdo, ninguém se ocupa do assunto.”

A massa de analfabetos que compunha a população no início do século XX era responsável por sustentar uma máquina estatal desproporcional e autofágica, patrimonialista, garantidora de privilégios (não é assim que funciona o Judiciário ainda hoje?). Em nenhum momento, Manoel Bomfim sustenta uma posição de acabar-se com o Estado, uma posição anárquica. Mas ele coloca muito bem a questão orçamentária e, embora não de forma nominal, aponta para a questão da auditoria cidadã da dívida, uma das questões de grande relevância política nos dias de hoje, e atualíssima: “Examine-se  um orçamento como o do Brasil: o cômputo geral das despesas (1903) é de 300.000:000$000, dos quais apenas 47.000:000$00 são gastos em serviços de verdadeira utilidade pública. Tudo mais – duzentos e cinquenta e três mil contos – representam capítulos improdutivos, despesas de magnificência ou compromissos estéreis do passado; 15%, tão-somente, das despesas do Estado vão para serviços de interesse coletivo; 85% são consumidos, de uma forma ou de outra, com aparelhos e privativos do Estado, ou com as dívidas contraídas também no seu interesse, contra os da nação. (...) A receita é, quase toda, consumida por estas quatro rubricas – dívida pública, máquina pública, força pública, repartições fiscais. Se, ao menos, essa dívida pública representasse empréstimos contraídos para a realização de obras de interesse coletivo, melhoramentos, etc... Mas não; ela compreende empréstimos que foram devorados pelo Estado como renda ordinária.” Não estaria nesse parágrafo de 1905 o sêmen de uma discussão sobre a Auditoria Cidadã da Dívida Pública que só toma corpo no alvorecer do século XXI? Não encampa este parágrafo uma discussão sobre orçamento participativo, sobre a forma de gastar o dinheiro proveniente dos tributos, sobre a função da dívida no orçamento?

Se olharmos com calma para esses quatro itens apontados como os campeões de orçamento em 1903, podemos ver como estamos um século depois. A dívida pública ainda responde por quase metade do orçamento da União. A força pública, a polícia, embora não seja de reponsabilidade da União, é sobrevalorizada pelo Estado. Esta sobrevalorização não é dada em forma de salários aos policiais, mas é dada em forma de drones, sistemas de vigilância, armas de fogo, armas não-letais, balas de borracha, gás lacrimogênio e, principalmente, prestígio, um prestígio de tapinha nas costas dadas à instituição da polícia e aos seus membros pelos governantes após uma ação truculenta e silenciadora contra os movimentos sociais, prestígio este que se ancora no conluio com boa parte da população. As repartições fiscais, nos dias de hoje, ainda estão na briga com os entes do poder Judiciário para ver quem é mais bem-sucedido em herdar o ranço patrimonialista que lhes garantem privilégios há mais de um século. Por fim, a máquina pública, apesar dos esforços de modernização, ainda apresenta aspectos bem onerosos e, especialmente nos poderes Legislativo e Judiciário, ainda se estrutura na manutenção de privilégios e no patrimonialismo, na promiscuidade da indissociabilidade quase monárquica entre o público e o privado. É evidente que melhoramos muito nos últimos cento e poucos anos. Mas ainda carregamos estruturalmente esse embate entre um povo que se quer liberto e uma classe de parasitas. Mais uma vez Manoel: “Breve é a luta que não findará mais, entre a classe privilegiada pela tradição, pela pátria de origem, solidarizada pelo egoísmo coletivo, ciosa dos seus ‘direitos’, garantida pela fortuna, fortalecida pela autoridade, gozadora indisputada até então, senhora absoluta de toda a riqueza e de todas as posições – e a luta entre ela e as novas populações, extenuadas já ao nascerem, miseráveis, desabrigadas de todo o conforto, ignorantes e pobres, mas em todo caso investindo para a vida, e dispostos a tomar conta da terra onde nasceram, aspirando vagamente fazer alguma coisa de si mesmas.”

Nos trechos observados até agora, é interessante notar que o discurso de Manoel Bomfim é tão atravessado pela linguagem poética quanto o foram, alguns anos seguintes o de Gilberto Freyre, em “Casa-Grande & Senzala”, e o de Eduardo Galeano, em “As veias abertas da América Latina”, nestas duas obras que podemos dizer, aparecem como um desdobramento, um desenrolar, ou, para mantermos a poesia do discurso, como filhas da obra de Manoel Bomfim. Mas só os filhos alcançaram fama e glória.

Dizer que Manoel Bomfim é precursor de Gilberto Freyre é apontar para o fato de que já em 1905, em pleno fervilhar das ideias racistas e de eugenia, e pouquíssimo tempo após a abolição da escravatura no Brasil, Manoel Bomfim já aponta para a insustentabilidade das ideias de raça superior e de raça inferior, e para a defesa da mestiçagem. Primeiro, ele faz uma defesa do negro brasileiro, explicando que o negro era tratado realmente como capital, como não-humano, e que não podia haver nada de humano nas relações entre o escravo e senhor de engenho. Vejam o trecho: “Comprado ou vendido, o negro ou o índio era um capital: o chicote, o meio de crescer-lhe o juro, o recurso para que não se extraviasse. ‘Fazia-se ao negro o que não é lícito fazer a nenhuma espécie de gado.’ Ao moralista e ao sociólogo há de parecer impossível, ao ler as crônicas da escravidão, que entes humanos houvessem chegado ao estado de perversão moral característico e comum nos senhores de escravos. Não se trata de coisas passageiras, de ódios e cruezas que acompanhavam as lutas armadas. Não; é a abjeção moral definitiva, a perversidade e desumanidade permanentes: gerações e gerações  de homens que viveram a martirizar, a devorar gerações de índios e de negros escravos – pela fome, o açoite, a fadiga... Não havia nada de humano nas relações entre senhor e escravo.” A estrutura desse pensamento é particularmente importante porque é muito comum que se defendam ensaístas e escritores que tenham se posicionado de forma essencialmente racista ao longo do século XX, especialmente na primeira metade do século. O argumento que muitos utilizaram para defender o racismo de Celso Furtado (cuja desconstrução faço aqui) é que ele é, de certa forma, vítima do próprio tempo. Ora, mais ou menos cinquenta anos antes de Celso Furtado escrever ‘Formação econômica do Brasil’, foi possível alguém pensar que enxergar o negro e o índio como recursos, como capital, é perpetuar tudo que existe de abjeto na relação senhor-escravo. Ainda na defesa do negro brasileiro, prossegue algumas páginas adiante Manoel Bomfim: “Citam-se os clássicos defeitos dos negros: submissão incondicional, frouxidão de vontade, docilidade servil... Tais qualidades são antes o efeito da situação em que os colocaram. Pensem na mísera condição desses desgraçados, que, jovens ainda, ignorantes, de inteligência embrionária, são arrancados ao seu meio natural e transportados a granel, nos porões infectos, transportados por entre ferros e açoites, a um outro mundo, à escravidão desumana e implacável! É como se, a nós, nos atirassem à Lua!” Outro ponto em que o argumento de Manoel Bomfim precede o de Gilberto Freyre é aquele que diz respeito à defesa da mestiçagem: “Não há na história da América Latina um só fato provando que os mestiços houvessem degenerado de caráter, relativamente às qualidades essenciais da raças progenitoras. Os defeitos e virtudes que possuem vêm da herança que sobre eles pesa, da educação recebida e da adaptação às condições de vida que lhes são oferecidas. (...) Quanto à inteligência, ninguém contestará que os há – mestiços – admiravelmente bem dotados. São exceções, dizem. Sim, sem dúvida que são exceções; não só entre os mestiços, mas por toda parte – os grandes talentos, os gênios, constituem exceção, formam uma minoria insignificante sobre a massa geral, banal, medíocre. Dar-se-á, por acaso, que a Inglaterra seja constituída de Shakespeares, Newtons e Bacons, ou que na Alemanha só haja Goethes e Gutenbergs?” O argumento final, entretanto, para que Manoel Bomfim derrube a tese sobre a defesa das raças superiores é o de que não se pode tomar como prova de superioridade de uma raça sobre a outra apenas as circunstâncias atuais. Sobre os índios e negros, nas palavras do autor: “Que é que prova serem eles assim incapazes e inferiores? ‘O fato de se manterem até agora como selvagens ou bárbaros.’ É esta a única prova positiva apresentada. Um tal modo de raciocinar é idêntico ao de um grego do século de Péricles, que, ao contemplar o estado de barbaria absoluta, de abjeção e atraso, dos povos todos que posteriormente formaram a Alemanha, Áustria, França, Inglaterra, Países Baixos, Bélgica, Escandivávia, Rússia e Estados Unidos – e atendendo à distância social entre eles e os atenienses, concluísse que aqueles bárbaros eram inferiores, e declarasse incapaz de progredir essa raça de onde deviam sair Newton e Shakespeare, Leibniz e Rembrandt, Pascal e Molière, Bacon e Darwin, Pasteur e Auguste Comte, Goethe e Tolstoi e Ibsen, e todos os gênios da civilização moderna... Mal se compreende como esses homens confundem assim, lastimosamente, as ‘alternativas históricas dos povos’ com ‘inferioridade definitiva de raças’.”

A partir dessas citações, é razoável supor Manoel Bomfim como precursor de Gilberto Freyre, que viria a publicar ‘Casa-Grande e Senzala” vinte anos depois. Mas por que Gilberto Freyre se tornou um clássico e Manoel Bomfim permaneceu obscuro? Trata-se de uma questão não só de abordagem temática, mas de posicionamento político. Gilberto Freyre defende o negro e o mestiço brasileiros através de um discurso pacifista, conciliatório. Ele consegue, a um só tempo, colocar os negros e mestiços numa situação de não-inferioridade (considerando o padrão racista vigente na época), humanizando-os, e praticamente suprimir as relações de opressão existentes entre senhores e escravos, entre negros a brancos, criando esse mito do congraçamento das raças no Brasil. Esse discurso, de humanizar os historicamente desumanizados ao mesmo tempo em que suprime a culpa dos desumanizadores, dá a Gilberto Freyre uma posição muito similar ao lulopetismo brasileiro da primeira década do século XXI, que alcança marcas históricas de popularidade por se ancorar numa espécie de congraçamento de opressores e oprimidos, ora arrefecendo um pouco as condições dos oprimidos, ora expiando a culpa dos opressores. Manoel Bomfim não obtém esse sucesso porque se insere genuinamente como um contra-discurso. Fica muito claro para quem o lê que as condições históricas dos negros ao longo dos mais de três séculos de escravidão é indissociável da relação parasitária dos ibéricos com a riqueza americana, que, por sua vez, é indissociável da miséria da população não-escravizada, espraiada pelos sertões brasileiros, analfabeta, e que, por isso, não pode também se dissociar da burla que se torna o sistema republicano nestas condições, completamente apartado de um regime verdadeiramente democrático, e assim sucessivamente. Manoel Bomfim não acena positivamente para nenhuma elite, para nenhum conservadorismo, e por isso, permanece obscuro.

Uma outra coisa muitíssimo importante que acontece nesse texto, e que pode passar despercebido por muitos leitores, é o uso da palavra ‘machismo’. É uma pena que Manoel Bomfim não tenha desenvolvido a ideia, e não tenha ficado claro qual sua posição em relação a este assunto, mas, antes ainda do movimento das sufragettes na Europa, que pleiteavam o direito feminino ao voto, Manoel Bomfim escreve: “Não há liberdade, pois que a vontade da nação não existe, pois que são sacrificados os mais essenciais dos princípios de justiça; todavia, as gerações se vão entretendo com o ‘fogo de vista’ parlamentar-constitucional – o jogo do machismo democrático, onde só não existia o elemento democrático, o povo.” Ou seja, a parte que não existe é o ‘democrático’, ao que fica claro que o ‘machismo’ é, portanto, a parte que existe. Talvez se devessem consultar obras posteriores do autor para verificar se existe algum posicionamento dele em relação à questão das mulheres. Entretanto, mesmo quando isto se não nos apresenta de maneira direta, é importante registrar este que é, possivelmente, um dos primeiros usos da palavra ‘machismo’ num texto brasileiro.

É na minúcia de cada palavra, realmente, que se apreende o pensamento de Manoel Bomfim. Muitos podem acusá-lo, e talvez não sem razão, de positivista. O autor tem uma noção linear e retilínea de progresso, acredita que a humanidade caminha a passos largos para esse progresso que ainda é difuso, mas que ocorrerá. Entretanto, apesar disso, ele critica a cultura do bacharelismo, do encarceramento do conhecimento nas torres de marfim universitárias, da cultura letrada sem lastro nas vivências e nas experiências, da repetição dos clichês econômicos e científicos que são muitas vezes produzidas pela ‘sociologia oficial da Europa e dos Estados Unidos’ (olhem aí como ele se adianta às discussões contemporâneas de produção local de conhecimento!). Mas o argumento que afasta Manoel Bomfim do discurso positivista é o que se pode ver abaixo, na crítica da lei constitucional do início da República: “Veio a República, e quando a proclamaram, já foi – a República Federativa dos Estados Unidos do Brasil. Aboliu-se a centralização, adaptou-se o federalismo, pediu-se uma Constituição... Uma Constituição para o Brasil não centralizado? ... Está achada: abre-se a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte, e a Constituição da Suíça, e algumas páginas da Constituição argentina; corta daqui, tira daí, copia dacolá, cosem-se disposições de uma, de outra, e de outra, alteram-se alguns epítetos, pregam-se os nomes próprios, tempera-se o todo com um molho positivistoide, e temos uma Constituição para a República do Brasil, na qual só não entraram as necessidades, a história do Brasil.” O uso do termo ‘positivistoide’ dessa maneira irônica, em tom de galhofa, evidencia que o autor não se sente preso a uma escola positivista ou aos ideais positivistas, e se coloca de maneira absolutamente independente quando escreve, embora, evidentemente, alguma parte desse positivismo corrente seja contemplada em seu próprio discurso, mas apenas aquela parte que o autor julga pertinente.

Quanto à projeção e ao alcance desse seu discurso, vimos que, apesar da baixa aceitação à época, suas ideias aparecem em Gilberto Freyre e em Eduardo Galeano. Gilberto Freyre consegue emplacá-las porque, como já foi dito, opta por uma abordagem conciliatória. Mas e “As veias abertas da América Latina”? Neste livro, que é o mais genuíno filho de “América Latina – males de origem”, estão lá arrebanhando multidões todos os mesmos elementos que, alguns anos antes, haviam sido justamente aqueles responsáveis pelo fracasso de “América Latina – males de origem”. A abordagem pan-latinoamericana não encontra eco em um momento em que todos os povos estão voltados para a construção e afirmação das próprias nacionalidades, logo após cortarem os vínculos coloniais com a metrópole. Além disso, o livro escrito em português dificulta a circulação das ideias pelos outros países do continente, todos falantes do espanhol. Alguns anos mais tarde, sob a égide das ditaduras civil-militares nos anos 1970, o livro de Eduardo Galeano, apesar de proibido em muitos países, obtém sucesso. Nesse momento, as nacionalidades latino-americanas já estão solidificadas, apesar de suas questões políticas internas estarem em plena ebulição. É também nesse momento que fica mais clara uma necessidade de compreensão dos fenômenos políticos que afligem de forma inescapável todos os países que compõem a América Latina. É importante ressaltar que, nesse momento posterior, já existe a União Soviética, que se apresenta como alternativa ao capitalismo, e também o movimento da contracultura. Nesse sentido, o livro de Eduardo Galeano, apesar de se apresentar como contradiscurso, se insere numa espécie de discurso do contradiscurso, compondo uma cena onde surgem como propostas, além de um outro discurso, uma outra cultura, uma outra política e uma outra estética. Para Manoel Bomfim, em cuja época não havia existido sequer a Revolução Russa, a inserção de suas ideias ficou bloqueada pelo discurso dominante, oscilando, na percepção dessa elite, entre a incompreensão e o panfleto. Eduardo Galeano também se beneficia mais uma vez da estética de seu tempo, que valoriza a criação de textos menos crus, no sentido de permitir e estimular a plasticidade poética do material escrito, e aceitando a falta de clareza na fronteira entre o que é ensaio e o que é literatura. Nesse sentido, Manoel Bomfim, ao escrever um texto bastante adjetivado e de forte densidade poética, pode ser visto, a seu tempo, apenas como um ensaísta pouco rigoroso, frouxo. Gilberto Freyre, na mesma toada adjetivada e malemolente, já é percebido vinte anos depois não apenas como vanguarda científica, mas também como vanguarda estética. Eduardo Galeano, valendo-se das mesmas propriedades estéticas dos outros dois, isto é, valendo-se de forma simultânea tanto dos elementos da construção poética quando da densidade da pesquisa científica e histórica, escreve um texto já dentro do seu tempo, e que é recebido de braços abertos por um segmento populacional significativamente alfabetizado que já o espera.

Manoel Bomfim não escreve para os pobres. Ele sabe que apenas 10% da população brasileira sabia ler. Nesse contexto sociocultural da República Velha, portanto, toda escrita nasce da elite e é destinada a essa mesma elite de alfabetizados. Por que, então, e para que, então, escreve Manoel Bomfim? Para o futuro, diriam alguns. Talvez. Mas se o que move aquele que escreve é o desejo de ser lido, e se o futuro é sempre uma incógnita, é indispensável considerar o a valorização do tempo presente, do agora, na obra de Manoel Bomfim. Ele escreve para seus pares da elite, sabidamente: homens, alfabetizados, letrados, políticos e/ou bacharéis. Apesar de culpá-los a todos pelo fracasso até então do projeto brasileiro e latino-americano (nações pobres, esfarrapadas, em que praticamente não há o que se conservar), e apesar mesmo de chamá-los parasitas os seus pares e leitores, em nenhum momento Manoel Bomfim apresenta-se como comunista ou como anarquista, ou como membro de um movimento de esquerda. Dando-se a ver exclusivamente pelas ideias que defende, Manoel Bomfim é um progressista, mas que muito sabiamente não se rotula de nenhuma maneira. Isto tem um propósito, que me parece claro. Rotular-se é, de alguma maneira, fechar-se ao diálogo, ou como se diz aqui no século vinte e um, romper as pontes. Ao evitar se rotular ideologicamente ou partidariamente, e apresentando-se com um pensamento independente, ele evita que alguém desvalorize seu livro só pela pecha: “Não lerei; trata-se de um comunista”. Ou ainda: “Esses bolcheviques são mesmo incendiários.”. Ao evitar cair na armadilha fácil do rótulo, Manoel Bomfim abre espaço para o difícil diálogo, em que aquele que quiser derrubá-lo terá que o fazer por meio de um embate de ideias, que deverá, necessariamente, passar ao largo de uma desqualificação ideológica.

Nesse sentido, para aqueles homens da República Velha, foi mais fácil ignorá-lo, negá-lo, fingir que ele não estava lá. Felizmente, outros pensadores como Gilberto Freyre e Eduardo Galeano puderam levar a cabo a defesa de suas ideias, mesmo muitos anos depois, onde o mundo se apresentava outra vez renovado, mas ainda preso a algumas práticas e pensamentos parasitários, que ainda hoje se fazem sentir.


Manoel Bomfim é dos pensadores mais ricos que este país foi capaz de produzir. Ainda hoje, no século vinte e um, sua obra continua fazendo parte de um discurso que se quer silenciar. Tal como a Revolução Haitiana ou como a Inconfidência mineira, o sufocamento das ideias de Manoel Bomfim tem a ver, de certa maneira, com a ousadia daqueles que, pela primeira vez, postulam algo que questiona a lógica dos privilégios sobre a qual a história ocidental se erige. As ideias, muitas da vezes, avançam: a escravidão acabou, a república foi proclamada, o Brasil é um país alfabetizado. Mas o Haiti ainda hoje rasteja na dança da nações, Tiradentes foi enforcado, e Manoel Bomfim permanece um autor obscuro. Invariavelmente, a vanguarda cobra o seu preço.

Um comentário:

  1. Manoel Bomfim, médico, professor, psicólogo, jornalista, autoridade educacional da Primeira República, Sociólogo, Historiador, linguista e escritor de livros didáticos de sucesso, foi sem sombra de dúvidas o mais denso intelectual brasileiro da Primeira República e um verdadeiro fundador de discursividades que influenciou intelectuais do peso de Roquette-Pinto, Arthur Ramos, Darcy Ribeiro, Josué de Castro, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.

    ResponderExcluir