quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Pobreza, Excremento e Ruína

O livro é excelente. Se Risério não é reconhecido atualmente como intérprete do Brasil, brevemente o será. As grandes costuras, janelas e pontes que constrói entre arquitetura, política, urbanismo e história enriquecem o escopo do título, que aparece inicialmente restrito ao que se chama de cidade. Num olhar mais próximo, nenhuma análise da cidade pode ter seu escopo restrito. A meu ver, temos um novo Paulo Prado, desta vez baiano, quem sabe já paulista.

Paulo Prado, contudo, certamente não empregaria a palavra “enquanto” de maneira inadequada com tanta frequência (como “projeto reformador pombalino enquanto programa ideológico e enquanto forma). Também não lançaria mão de verbos inexistentes, como “inexistir”, e outros vocábulos estranhos, como massivo e massivamente.

Contendo tantas opiniões e citações, o ensaio carece de números e responsabilidade acadêmica. Torna-se, então, outro retrato impressionista. Mas um retrato atual. Publicado há poucos anos, o livro nos fala mais perto. Não é preciso se imaginar um quatrocentão da SP de 1920 para compreender o contexto do livro. Nós estamos nele, em cada página.

O livro é vivo. O ensaio dá vida a cada uma das cidades que descreve, ou de seus modelos. O passeio pelos períodos e projetos, autores, arquitetos e países é delicioso.
As considerações políticas são de grande confluência com as minhas, como quando ele diz que o liberalismo econômico impede a inserção da população operária e o seu atendimento por políticas governamentais de moradia. O liberalismo econômico leva à plutocracia (governo do 1% para o 1%). “Para os pobres, higiene. Para os ricos, Higienópolis”.

Em vários capítulos aparece a expressão “segregação socioespacial”, de que gostei muito. O ponto não ganhou um capítulo específico, foi explicado e desenvolvido dispersamente, mas mais concentradamente numa seção do capítulo 5 e no último capítulo, mais autoral ainda que os anteriores, assim como o último capítulo da Formação Econômica do Brasil (Celso Furtado), e, também como ele, mais propositivo.

Apesar do estilo paulopradiano, às vezes Risério tem momentos freyreanos. Seu elogio irrestrito à capacidade brasileira de se misturar chega a ser irritante de tão míope. Brasileiro gosta de imigrante branco e rico. “O brasileiro gosta de se misturar”, assim, dito simplesmente, sem atentar para as nuances, chega a ser uma falácia. Há um nazista xenófobo dentro de cada coração conservador tupiniquim. Imigrantes nordestinos sofrem o diabo quando vêm para o sudeste, muitos migram de volta, especialmente no momento atual, em que o sudeste deixou de ser a grande ponta de crescimento econômico do país. Imigrantes africanos e haitianos (esses africanos da América) sofrem ainda mais, correndo risco de serem assassinados. O que ele chama de know-how de convivência, que seria a nossa mensagem planetária, não se sustenta quando o imigrante é pobre ou preto. Ou quase pretos de tão pobres.

O acolhimento brasileiro aos imigrantes, ricos e brancos, vem com uma fascinação. Vemos o gringo clássico, o turista americano ou europeu em Copacabana, como uma pessoa a princípio interessante, quiçá superior, ou uma possibilidade de ascensão social interpaíses, de ganhar dinheiro. Isto nada mais é do que um braço do nosso complexo de vira-latas, que considera tudo o que vem do país como brega, o que nos transformou, durante muito tempo, em “uma nação de copistas”. Hoje temos, a bem da verdade, uma dimensão que não nos permite ser meros copistas. Produtos, ideias, técnicas, projetos têm de ser desenvolvidos aqui. Não dá mais para importar tudo ou quase tudo. Risério aponta, e eu concordo, que este talvez seja o mais importante legado do positivismo nacional. Uma preocupação com o desenvolvimento vinda de dentro, dos médicos e engenheiros, após o fim da exclusividade bacharelista.

A discussão da segregação socioespacial, em escala geopolítica e local, me fez pensar na opulência da Europa e dos Estados Unidos, e dos condomínios fechados, ou dos bairros ricos. Enquanto houver muito ricos e muito pobres, vai haver violência e discriminação. Um detalhe importante que ele cita é a baixa fertilidade dos brancos ricos, em sua reação “com posturas etnocêntricas, preconceituosas e mesmo agressivamente racistas, ao tempo em que se reproduzem pouco e envelhecem a olhos vistos”. Acabou a pureza de raça.

O tema da desigualdade social é central. Estamos atingindo níveis de desigualdade de patrimônio e renda similares aos anteriores à Primeira Guerra. A violência é gerada pela desigualdade. Os ricos não sabem, não querem governar para os pobres. O Estado serve aos ricos sempre, com raríssimas exceções consistentes (alguns países nos anos 1950-80).

Outro ponto divergente que tenho com o pensamento de Risério é a particularidade do brasileiro em ver seu tempo glorioso no futuro. Eu não vejo assim. Risério dá sua opinião, não cita pesquisas que comprovem ou refutem isto. Portanto, a minha opinião é que o Brasil adulto está coalhado de “antigamente é que era bom”. Como nação não achamos nosso ponto glorioso no passado, mas percebemos que, se não foi glorioso, agora está pior. Há sempre alguém “acabando com este país”. E quem diz isso nunca diz que está bom, só que está piorando. Uma sociedade capaz de construir uma manchete que critica uma ciclovia porque vai tirar a vista do mar a partir dos carros não me parece muito com o olhar no futuro.


De volta às convergências, no último capítulo — meu favorito — Risério coloca de maneira sintética, clara e eloquente os principais problemas das cidades de hoje e do caminho que elas seguem. E a segregação está no cerne desse problema. A guerra urbana está instalada e estamos dando respostas tardias e não só insuficientes, mas contraproducentes. Assim são as soluções violentas propostas pela maioria. O projeto da UPP naufragou, sem a continuidade da criação de projetos de lazer, educação, saneamento básico (e avançado). A cidade, como ele mesmo fala em um capítulo anterior, é forçada a resolver localmente problemas globais. A desigualdade social é um problema crônico e mundial, e muito grave no Brasil, mas a solução é cobrada na ponta, na cidade. Não há como resolver a questão da violência sem lidar com o problema da desigualdade, e esta, por sua vez cede muito pouco às ações tímidas até o momento postas em prática pela sequência de governos federais brasileiros desde a redemocratização. Para abordar de modo eficaz os verdadeiros problemas brasileiros, cicatrizar a ferida na alma que ela nos traz, e que supura e fede, é necessário contrariar interesses dos ricos e poderosos. 

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