O livro é excelente. Se Risério
não é reconhecido atualmente como intérprete do Brasil, brevemente o será. As
grandes costuras, janelas e pontes que constrói entre arquitetura, política,
urbanismo e história enriquecem o escopo do título, que aparece inicialmente
restrito ao que se chama de cidade. Num olhar mais próximo, nenhuma análise da
cidade pode ter seu escopo restrito. A meu ver, temos um novo Paulo Prado,
desta vez baiano, quem sabe já paulista.
Paulo Prado, contudo, certamente
não empregaria a palavra “enquanto” de maneira inadequada com tanta frequência
(como “projeto reformador pombalino enquanto programa ideológico e enquanto
forma). Também não lançaria mão de verbos inexistentes, como “inexistir”, e
outros vocábulos estranhos, como massivo e massivamente.
Contendo tantas opiniões e
citações, o ensaio carece de números e responsabilidade acadêmica. Torna-se,
então, outro retrato impressionista. Mas um retrato atual. Publicado há poucos
anos, o livro nos fala mais perto. Não é preciso se imaginar um quatrocentão da
SP de 1920 para compreender o contexto do livro. Nós estamos nele, em cada
página.
O livro é vivo. O ensaio dá vida
a cada uma das cidades que descreve, ou de seus modelos. O passeio pelos períodos
e projetos, autores, arquitetos e países é delicioso.
As considerações políticas são de
grande confluência com as minhas, como quando ele diz que o liberalismo
econômico impede a inserção da população operária e o seu atendimento por
políticas governamentais de moradia. O liberalismo econômico leva à plutocracia
(governo do 1% para o 1%). “Para os pobres, higiene. Para os ricos, Higienópolis”.
Em vários capítulos aparece a
expressão “segregação socioespacial”, de que gostei muito. O ponto não ganhou
um capítulo específico, foi explicado e desenvolvido dispersamente, mas mais
concentradamente numa seção do capítulo 5 e no último capítulo, mais autoral
ainda que os anteriores, assim como o último capítulo da Formação Econômica do
Brasil (Celso Furtado), e, também como ele, mais propositivo.
Apesar do estilo paulopradiano,
às vezes Risério tem momentos freyreanos. Seu elogio irrestrito à capacidade
brasileira de se misturar chega a ser irritante de tão míope. Brasileiro gosta
de imigrante branco e rico. “O brasileiro gosta de se misturar”, assim, dito
simplesmente, sem atentar para as nuances, chega a ser uma falácia. Há um
nazista xenófobo dentro de cada coração conservador tupiniquim. Imigrantes nordestinos
sofrem o diabo quando vêm para o sudeste, muitos migram de volta, especialmente
no momento atual, em que o sudeste deixou de ser a grande ponta de crescimento
econômico do país. Imigrantes africanos e haitianos (esses africanos da
América) sofrem ainda mais, correndo risco de serem assassinados. O que ele
chama de know-how de convivência, que
seria a nossa mensagem planetária, não se sustenta quando o imigrante é pobre
ou preto. Ou quase pretos de tão pobres.
O acolhimento brasileiro aos
imigrantes, ricos e brancos, vem com uma fascinação. Vemos o gringo clássico, o
turista americano ou europeu em Copacabana, como uma pessoa a princípio
interessante, quiçá superior, ou uma possibilidade de ascensão social
interpaíses, de ganhar dinheiro. Isto nada mais é do que um braço do nosso
complexo de vira-latas, que considera tudo o que vem do país como brega, o que
nos transformou, durante muito tempo, em “uma nação de copistas”. Hoje temos, a
bem da verdade, uma dimensão que não nos permite ser meros copistas. Produtos,
ideias, técnicas, projetos têm de ser desenvolvidos aqui. Não dá mais para
importar tudo ou quase tudo. Risério aponta, e eu concordo, que este talvez
seja o mais importante legado do positivismo nacional. Uma preocupação com o
desenvolvimento vinda de dentro, dos médicos e engenheiros, após o fim da
exclusividade bacharelista.
A discussão da segregação
socioespacial, em escala geopolítica e local, me fez pensar na opulência da
Europa e dos Estados Unidos, e dos condomínios fechados, ou dos bairros ricos.
Enquanto houver muito ricos e muito pobres, vai haver violência e discriminação.
Um detalhe importante que ele cita é a baixa fertilidade dos brancos ricos, em
sua reação “com posturas etnocêntricas, preconceituosas e mesmo agressivamente
racistas, ao tempo em que se reproduzem pouco e envelhecem a olhos vistos”.
Acabou a pureza de raça.
O tema da desigualdade social é
central. Estamos atingindo níveis de desigualdade de patrimônio e renda
similares aos anteriores à Primeira Guerra. A violência é gerada pela desigualdade. Os ricos não sabem, não querem governar
para os pobres. O Estado serve aos ricos sempre, com raríssimas exceções consistentes
(alguns países nos anos 1950-80).
Outro ponto divergente que tenho
com o pensamento de Risério é a particularidade do brasileiro em ver seu tempo
glorioso no futuro. Eu não vejo assim. Risério dá sua opinião, não cita
pesquisas que comprovem ou refutem isto. Portanto, a minha opinião é que o
Brasil adulto está coalhado de “antigamente é que era bom”. Como nação não
achamos nosso ponto glorioso no passado, mas percebemos que, se não foi
glorioso, agora está pior. Há sempre alguém “acabando com este país”. E quem
diz isso nunca diz que está bom, só que está piorando. Uma sociedade capaz de
construir uma manchete que critica uma ciclovia porque vai tirar a vista do mar
a partir dos carros não me parece muito com o olhar no futuro.
De volta às convergências, no
último capítulo — meu favorito — Risério coloca de maneira sintética, clara e
eloquente os principais problemas das cidades de hoje e do caminho que elas
seguem. E a segregação está no cerne desse problema. A guerra urbana está
instalada e estamos dando respostas tardias e não só insuficientes, mas
contraproducentes. Assim são as soluções violentas propostas pela maioria. O projeto
da UPP naufragou, sem a continuidade da criação de projetos de lazer, educação,
saneamento básico (e avançado). A cidade, como ele mesmo fala em um capítulo
anterior, é forçada a resolver localmente problemas globais. A desigualdade
social é um problema crônico e mundial, e muito grave no Brasil, mas a solução
é cobrada na ponta, na cidade. Não há como resolver a questão da violência sem lidar
com o problema da desigualdade, e esta, por sua vez cede muito pouco às ações
tímidas até o momento postas em prática pela sequência de governos federais
brasileiros desde a redemocratização. Para abordar de modo eficaz os
verdadeiros problemas brasileiros, cicatrizar a ferida na alma que ela nos
traz, e que supura e fede, é necessário contrariar
interesses dos ricos e poderosos.
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