domingo, 27 de novembro de 2016

Ressurgências



‘O Dono do Morro’, de Misha Glenny, é um livro que tem muitas semelhanças com ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha. Ambos contam a história dos anti-heróis do seu tempo, os criminosos mais procurados do país; ambos optam por um viés neutro/positivo na construção do protagonista, em oposição a uma mídia de pensamento uniformizado que os detrata e os desumaniza; ambos contam a história de uma realidade longínqua, apartada das classes burguesas e privilegiadas a quem o livro se destina; ambos retratam a história de uma guerra fratricida em que morrem tanto os que caçam quanto os que são caçados, iguais em cor e pobreza; ambos descrevem personagens que são carismáticos e políticos, e que se assenhoreiam simbolicamente de um lugar e de um povo onde o Estado jamais chegou (a não ser quando veio com suas armas); ambos lamentam tacitamente o triste fim daqueles que retrataram, seja a morte, seja a prisão, e evidenciam o caráter injusto de uma guerra aos pobres em voga no país praticamente desde o seu nascimento, ora disfarçada de guerra ao monarquismo, ora de guerra às drogas, mas sempre lá, e sempre guerra.

Se em certa maneira, Misha Glenny é Euclides da Cunha, é porque Nem é também Antonio Conselheiro. E a Rocinha é também Canudos. E o sertão é também a favela. E o soldado é também o PM. E o jagunço é também o traficante. E os pobres, no meio disso tudo, são também os pobres, os mesmos pobres no meio do fogo cruzado da disputa por território entre aqueles que querem governar o que não lhes foi concedido e os que querem retomar o que nunca tiveram.

Pouco mais de cem anos separam as duas narrativas.

Em cem anos acontece bastante coisa, é bem verdade. É possível escrever livros grossos esmiuçando as filigranas da política brasileira, com nomes, datas e bastidores. É possível descrever os regimes políticos, a política externa, os presidentes, os golpes de Estado, as Constituições.

O filósofo italiano Giambattista Vico, que viveu entre os séculos XVII e XVIII, foi um dos primeiros a desenvolver o pensamento sobre a recursividade da História, que ele chama de corsi i ricorsi. Para Vico, a História se divide em três fases: a do Deuses (e da poesia), a dos heróis (e das epopeias), e a dos homens (e da razão). Essas fases se repetiriam de maneira mais ou menos cíclicas em fluxos e refluxos (corsi e ricorsi), rompendo com a lógica cartesiana de linearidade temporal. É de Vico esta noção de que a história não é necessariamente evolutiva, mas a de que ela caminha ora para um lado, ora para outro, incessante nesses fluxos e refluxos entre fases.

Mas para quem habita os estratos mais baixos da pirâmide social brasileira, salvo pequenas alterações conjunturais, o Brasil é precisamente o mesmo país: armado, violento, beligerante, torturador.

Que tipo de teoria da história Vico teria escrito se habitasse uma cidade brasileira em vez de Nápoles?
 
Pode ser mesmo que a teoria da recursividade da História só faça sentido para quem é rico. A riqueza é que, em certa maneira, erigiu sua própria narrativa através de uma intelectualidade, também por ela criada, para dar conta dos fenômenos de transição de poder e capital entre a nobreza e o clero, entre a aristocracia e a burguesia. Mas para os mais pobres, para a ralé brasileira (como denomina Jessé Souza), a quem não foi e não é dada a chance de produção discursiva de amplo espectro (ainda que isso aumente gradativamente em ritmo muito lento), a situação de desamparo, desatenção, e mesmo de enfrentamento, é uma história una, em bloco, sem direito a margens e nuances, sem fluxos e sem refluxos, cuja perpetuação ao longo do tempo, salvo raríssimas exceções, é constante.

Como dizem os Titãs, miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes.

Não quero fazer um texto pessimista. Na verdade, não nego as melhorias pontuais na condição de vida daqueles que são mais pobres ao longo da história brasileira. Mas é muito duro perceber que não houve mudanças estruturais na forma em que a sociedade brasileira se pensa, se posiciona e age.

E quando digo sociedade brasileira, não me refiro apenas à elite aburguesada e intelectualizada. Falo também das coisas que acontecem em meio à própria condição de pobreza.

Um dos exemplos trazidos pelo livro do Misha Glenny é a vinculação entre o machismo e as estruturas de poder. Nem, o protagonista da história, era um homem casado em uma relação monogâmica estável. A partir do momento em que ele entra para o tráfico, e vai galgando posições até chegar ao posto de ‘dono do morro’, Nem é como que empurrado para uma condição de homem-macho. Para demonstrar poder, é necessário que ele mostre se relacionar com várias mulheres, e que mostre que mantém com elas uma relação de dominação.

A demonstração de poder e de marcação de território através de relações de dominação com as mulheres não é nenhuma novidade. Dos casos de estupro em quase todas as guerras (fazendo as mulheres de prisioneiras e servas sexuais) à valorização simbólica das características de ‘bela, recatada e do lar’, o patriarcado sempre estabeleceu o seu poder subjugando primeiramente as mulheres e, só depois, quem quer que seja declarado como inimigo. O interessante, porém, no relato de Glenny, é perceber que a relação entre o machismo e o poder é tão forte, que o exercício mesmo deste poder demanda uma transformação ou um desvio em direção a uma personalidade (ou a uma persona) machista, mesmo naqueles que não o são a priori.

No Festival Mix Brasil da Diversidade, realizado nesse mês de novembro em São Paulo, assisti a uma mesa-redonda com a temática Masculinidades. Um dos motes de discussão era justamente esse: será que é possível criar uma representação do masculino, ou seja, será que é possível exercer a masculinidade ou as masculinidades sem que isso seja feito de maneira opressora? Como constituir-se como homem sem subjugar a mulher?

Um dos debatedores desta mesa era o Daniel Teixeira, advogado e pesquisador do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade), que inserido na perspectiva da interseccionalidade, discutiu um pouco a masculinidade dos homens negros. Um dos aspectos que mais me chamou a atenção é a de que, na transição menino-homem, o jovem negro entra numa zona em que as pessoas passam a ter medo dele. Isso se dá pelo porte físico do homem negro, pela sua suposta (e fetichizada) virilidade e potência sexual e pela identificação dele com alguém criminalizável (embora isso também aconteça com as crianças negras, não só com os jovens). O fato é que durante a adolescência, esse momento tão relevante para a construção das subjetividades, o jovem negro já é lido pela sociedade como alguém violento, alguém de quem se deva ter medo.

Na minha leitura (e isso não foi mencionado na palestra), imagino que isso funcione como uma espécie de profecia autorrealizável. Se a sociedade o percebe como violento, e se ser homem (na construção subjetiva) é algo a que se aprende a ser na adolescência, o homem negro só pode se constituir como homem de maneira violenta, que é como a sociedade o enxerga. E a partir desse momento, e durante a toda a vida adulta, a violência e a masculinidade se tornam intrinsecamente ligadas na construção da subjetividade do homem negro.

Portanto, a possibilidade de construção de um mundo onde haja menos homens negros violentos é, precisamente, a construção de um mundo que seja menos violento para os jovens negros.

E nesse sentido, é curioso perceber como a personalidade de Nem, jovem, negro, favelado, resiste a uma moralidade violenta até a relação estável com a sua primeira esposa, no início da vida adulta. O recurso à violência é utilizado apenas quando explicitamente necessário para as estruturas de poder que sustentam a sua trajetória profissional até sua coroação como ‘dono do morro’. Portanto, heroísmos à parte, é possível dizer que Nem é bastante resistente ao uso da violência, e se isso é um aspecto pouco comum entre aqueles que se envolvem com o crime organizado nas favelas cariocas (conforme a descrição dos outros ‘donos do morro’ anteriores feitas por Misha Glenny), certamente é também um dos fatores que o tornam mais bem-sucedido do que aqueles que o antecederam.

Nesse sentido, o uso parcimonioso da violência é um dos elementos fundamentais para projetar a Rocinha como favela-modelo do Rio de Janeiro, possibilitando maiores intercâmbios entre a favela e o asfalto mesmo antes da política de pacificação das UPPs.

Esta política, apesar de todos os seus aspectos controversos, conseguiu alterar um pouco a percepção social da favela como um lugar de medo para a de um lugar possível, e mais do que isso, um lugar fruível pela elite.

Misha Glenny fala da boate Emoções, um must entre jovens bem-nascidos na Zona Sul carioca que queriam conhecer um baile na Rocinha, na primeira década do século XXI.

Nunca fui à Emoções, mas dentro de meu ponto de vista pequeno-burguês, morador do condomínio Zona Sul, já entrei em uma favela algumas (poucas) vezes. Já fui a festas e a bares. Semana passada, fui almoçar no Bar do David, um simpático boteco no Chapéu Mangueira, no Leme, cujo prato chamado ‘Ressurgências’, à base de frutos do mar, venceu o último concurso Comida di Buteco.

Todas as vezes em que vou a uma favela (TODAS) fico problematizando e pensando o quão diferente eu realmente sou de uma pessoa que sai de um país europeu e entra num desses jipes para ficar vendo e admirando a pobreza (e eventualmente discutindo sobre essa pobreza em longos textões, como faço agora).

Muitas vezes, acho que sim, que sou desses. Que minha presença na favela tem mais a ver com a realização de um turismo diferentão e à construção de uma personalidade bacana e descolada, mas que isso não traz qualquer benefício para quem mora por lá.

Mas, recentemente, comecei a pensar de outra forma. Penso que sou morador da minha cidade e que este local também me pertence. Que é preciso estar lá porque sou cidadão e sou citadino, e minha presença (ou a presença burguesa no geral) colabora para legitimar a favela como território da urbe.

A verdade é que o acesso à favela pelo morador do asfalto enseja uma discussão sobre essa presença que pode ser percebida ora como turismo antropológico, ora como direito à cidade.

O que tem me levado, contudo, à opção por encarar esta presença mais como direito à cidade e menos como turismo antropológico é a percepção de que ela proporciona a abertura de poros no tecido urbano e de que esses poros, pouco a pouco, ao estabelecer um fluxo de indivíduos do asfalto em relação à favela, contribuem para torná-las menos herméticas e mais integradas à cidade.

Penso também que o cerne desta questão é uma clivagem cada vez maior entre o que é popular e o que não é. É um pouco como o SUS. Enquanto ele não chega à classe média, permanece o discurso de que ‘o SUS não resolve nada’, ‘a fila do SUS é um absurdo’ etc. No Brasil, tudo que é popular está sujeito a um sucateamento e a uma degradação. A solução para isso, no meu ponto de vista, é prover aos não-populares o acesso ao popular.

Imagino que essa sentença possa soar um tanto quanto elitista, mas penso que só o acesso de quem não é popular garante o que é popular. A favela será capaz de prover condições tanto mais dignas aos seus habitantes quanto mais a classe média frequentar os seus espaços. As praças serão tão melhores e bem cuidadas para todos quanto mais as pessoas (especialmente as de classe média) as utilizarem. As escolas públicas municipais no Rio eram de boa qualidade até o ponto em que a classe média aderiu maciçamente às particulares. As universidades públicas são de boa qualidade hoje, no geral, porque a classe média está lá.

‘Estar lá’ tem a ver com uma lógica de ocupação e de acesso e não com uma lógica de propriedade e posse. Quando digo que a classe média precisa estar nas favelas, não acho que ela precise comprar casas ou que ela deva criar territórios isolados e encarecidos que pouco a pouco vão expulsando quem é mais pobre. Este é o fenômeno da gentrificação e, embora a presença da classe média na favela se dê muitas vezes por esse caminho, não acho que seja o mais adequado.

Embora pareça bem cartesiano formular as coisas dessa forma, imagino que o nível ideal da presença da classe média na favela seja aquele que possa provocar mudanças nas condições de vida da população local (porque o Estado sempre estará preocupado em garantir boas condições de uso da coisa pública a que as classes mais abastadas decidem acessar), mas que, por outro lado, não impeça os moradores locais de terem acesso à mesma coisa pública e aos mesmos equipamentos de cultura e lazer públicos e privados a que as classes mais abastadas acessam.

É preciso criar espaços de convivência em que, por mais que não se consiga estabelecer neles um real sentido de pertencimento, que pelo menos eles possam se estabelecer como espaços de não-conflito, de não-confronto e, sobretudo, de não-estranhamento.

Mas que será que é possível, de fato, abolir esse estranhamento? Será que é possível que eu suba o morro e não me sinta estranho, e que também alguém que desça o morro não se sinta estranho? Como garantir que a presença não seja estranha se não há pertença?

A resposta é que talvez seja preciso pertencer um pouco. Penso que a sensação de pertença, ainda que parcial, é o que possibilita que as pessoas não se estranhem.

Mas aí surge outro desafio? Como separar uma pertença parcial de uma pertença, digamos ‘genuína’? Como garantir que minha presença na favela não seja percebida nem por mim nem pelos outros como um corpo estranho, ao mesmo tempo em que sei que existe uma diferença qualitativa entre o meu senso de pertencimento e o de alguém que, por exemplo, tenha sido criado em uma determinada comunidade?

A essa pergunta, as possibilidades de resposta são mais escorregadias. O que poso dizer, nesse sentido, é que, por mais que, por exemplo, o próprio Mishsa Glenny tenha se esforçado por ser um ‘local’, tanto na acepção de brasileiro quanto na de morador da Rocinha, percebo que, ainda que na maior parte das vezes seu discurso seja coeso e verossímil, aparece um elemento aqui e acolá que evidencia que seu discurso é estrangeiro e, em certa medida, colonialista.

Cito, nesse caso, dois exemplos. O primeiro é quando Misha Glenny diz, em algum momento do livro, que a opção de Nem pelo tráfico é, em certo sentido, fruto de sua condição de pobreza (afirmação com a qual tendo a concordar), e que se ele fosse dotado das mesmas qualidades intelectuais mas não morasse na favela, ele certamente poderia ter sido um empresário de sucesso.

Esse é um discurso colonialista. Sem se aperceber disso, Glenny imputa à população brasileira os seus próprios valores (ou os de seu país) do que seja ‘obter sucesso’. Certamente, na escalada do que seja ser bem-sucedido no Brasil, outras opções me vêm à mente muito antes de empresário: funcionário público, médico, juiz, auditor fiscal, herdeiro bon vivant, fazendeiro.

É claro que eu também sou permeado pelas minhas próprias experiências ao apontar o que seria o ‘sucesso’ de algum brasileiro (mesmo quando tento pensar de forma não individual), mas a verdade é que não enxergo e também não vejo enxergarem o empresário como o maior exemplo de sucesso no Brasil.

Um outro exemplo, mais óbvio e mais doloroso, é quando Glenny afirma que as pessoas foram às ruas em 2013 por causa dos escândalos da Petrobras e da corupção. Eu sei, pela minha vivência, que não foi bem assim. Mas sem querer entrar numa acepção muito pessoalizada das ideias, as manifestações de 2013 ainda estão em plena ebulição, sendo objeto de acaloradas discussões no que diz respeito à construção de um discurso unificado que permita enquadrá-las na situação sociopolítica do Brasil contemporâneo. É, portanto, bastante reducionista que se reduza o escopo delas a essas duas pautas, quando na verdade o que se tem é um dos mais complexos fenômenos da política brasileira recente.

Então, retomando a questão da pertença e do estranhamento, e inserindo essa perspectiva do discurso, afirmo que por mais que eu faça esforços para naturalizar a minha presença na favela, posto que quero me apropriar da cidade através da construção de um sentimento de pertença, ainda que parcial, em relação àquele território, é ainda mais difícil fugir à sensação de estranhamento quando me percebo construindo um discurso sobre uma situação e/ou território a que não tenho uma pertença total, apenas uma pertença frágil e quebradiça, uma quase-não-pertença.

Penso que, em qualquer momento, posso incorrer em erros crassos ou mesmo sutis ao optar por falar de uma realidade que não é a minha, podendo dar ao favelado que me lê a mesma sensação que Misha Glenny me deu ao me apresentar o seu discurso: a de que existe alguém estranho que conta a sua história.

Mas, então, o que fazer? Deslegitimar esses discursos? Certa vez, comentando sobre a situação das travestis, um amigo meu falou que não deveríamos nos preocupar em construir discursos sobre elas, de que a responsabilidade de produção do discurso das travestis é das próprias travestis.

Fiquei um tempo pensando nisso, mas depois cheguei à conclusão de que não acho que os discursos daqueles que não possuem vivência sejam ilegítimos. Pelo contrário, penso que os discursos oriundos de diferentes pontos de vista sobre um mesmo objeto e/ou situação, uma vez que respeitem, explicitem e aceitem seus próprios locais de fala, são capazes de criar pontes e mediar diálogos entre todos aqueles que se relacionam com os sujeitos dos quais o discurso fala.

Produzir, mas sem projetar. A projeção de um discurso estrangeiro tem efeito similar à compra de casas na favela pela burguesia e ao processo de gentrificação: é castrador. O discurso estrangeiro (ou estranho) deve ter um tamanho tal que seja capaz de aludir ao objeto/situação, sem entretanto, protagonizá-lo. O papel do discurso estranho, em virtude de sua aceitação pela elite cultural/racial/social, é o de convocar, trazer, e dar subsídios à projeção de um discurso não-estranho ao centro do debate.

Por fim, é importante lembrarmos que o papel do discurso estranho é também o de contar alguma história e de resgatar alguma memória quando o discurso não-estranho não se faz possível.

O resgate da memória nos traz novamente ao conceito do corsi i ricorsi de Giambattista Vico. Quando nas sístoles e diástoles da História, uma estória muito similar é contada cem anos depois, através do mesmo ponto de vista externo/estrangeiro/estranho, o que temos de incremental e diferente na versão de Glenny, contrapondo-a com a de Euclides, é a possibilidade de produção de novos discursos, e discursos não-estranhos.

Enquanto que em Canudos morreram todos, a Rocinha permanece com seu número de habitantes rondando a centena de milhar, e o protagonista desta história que Misha Glenny nos conta permanece vivo, embora preso. O tempo de produção do discurso não-estranho é o hoje, o agora.

É neste hoje, neste agora e neste Rio de Janeiro que talvez Giambattista Vico, inspirado pela culinária local e despreocupado de suas questões metafísicas, desse ao corsi i ricorsi o nome de Ressurgências.

Nemesis

Uma das imagens de Nemesis, a deusa grega da vingança distributiva.
Nemesis é a deusa grega da justiça distributiva e da vingança. Curiosamente, esta parte do título original do livro de Misha Glenny ( Nemesis – One Man and The Battle for Rio) ficou de fora na tradução (O Dono do Morro – Um Homem e a Batalha pelo Rio).  A deusa infligia dor ou concedia graça de acordo com o que era justo. Em inglês, no entanto, nemesis passou a significar inimigo, opositor, mas ao mesmo tempo semelhante.

Nossa Nemesis, o Nem, encara esses papeis. Funciona como justiça distributiva — a opulência do faturamento do crime se transforma em cestas básicas e audiências com o “Dono do morro”. Neste aspecto me pergunto se é possível considerar a estrutura do tráfico como mimese do Estado.

O poder do tráfico não tem accountability, não tem fiscalização com participação popular. O bem-estar do povo conta na medida em que a tranquilidade ajuda os negócios, e a agitação atrapalha. A distribuição de comida, crédito e justiça fica amarrada à personalidade de um indivíduo. Não dá para chamar de “Estado paralelo” um sistema que funciona recorrendo muito à violência, e cuja linha de sucessão é também decidida arbitrariamente e na violência. O Estado formal recorre à violência excessivamente, mas não a tem como método principal, ao menos enxergo assim, em tese. O Estado tem meios de controle, onde podemos encontrar muitas falhas e manipulações, mas ao longo do tempo há um mínimo de estabilidade. Pensando um pouco mais, o tráfico funciona talvez como mais uma ONG, que tem objetivos específicos dentro de uma determinada área de atuação ou área geográfica restrita, mas não tem compromisso com macro questões, mesmo dentro da favela. A distribuição de cestas básicas é apenas algum alívio. Pode-se pensar na pax nemea como um fator estabilizante contributivo à prosperidade econômica, mas no frigir dos ovos foi a prosperidade econômica geral do Brasil nos anos Lula, que fez a diferença na pujança da Rocinha. O aumento sistemático do salário mínimo e o Bolsa Família (além do PAC, como Glenny mencionou), são os verdadeiros responsáveis por esse ganho ocorrido na favela. Esta é a minha principal questão contra o papel das ONGs. Todo mundo acha muito bonito a ONG, que ajuda de fato muita gente, mas não gera mudanças nucleares na sociedade. Apenas o Estado, com o devido planejamento, é capaz de promover essas mudanças. Somente o Estado pode articular ações nacionais (ainda que não possa prescindir de entes locais) que contrariem interesses localizados na manutenção da pobreza. Por exemplo, ONG nenhuma vai conseguir expandir acesso à saúde gratuita em larga escala; primeiro porque não é comprometida com a integralidade da atenção básica, e segundo porque não vai ter força para contrariar os donos de clínicas populares que ganham dinheiro cobrando consultas e exames. Aqui, ainda, destaco a importância do planejamento nacional e estadual em contraponto ao local. Seguindo na área da saúde, a existência de uma política nacional de implantação de Saúde da Família criou grande pressão para que a prefeitura do Rio aceitasse implementá-lo na cidade. Cesar Maia resistiu enquanto pôde, mas Dudu abriu a porteira e o rio deixou de ter quase zero para uma cobertura significativa de Saúde da Família. Detalhes e problemas dessa cobertura no caso do Rio podem e devem ser discutidos, mas o passo principal foi a política nacional.

Ponho em questão também o “paralelo”. Ora, o poder do tráfico na favela não é “paralelo” ao do Estado, mas sim muito bem articulado com este. No momento em que a coisa cresce, deixa de ser um pequeno comércio informal seja de drogas ou de leite em pó, o Estado entra. Para fazer chegar armas, drogas, ou mesmo insumos para o beneficiamento da pasta de coca, é necessária uma contribuição do Estado.

Glenny realiza um verdadeiro estudo de caso com a biografia de Nem. A partir de dados dele e de seu entorno, podemos analisar um importante recorte da história recente do Rio, com seus vieses político, socioeconômico e cultural. A vida de Nem deu errado em inúmeros pontos, se pensarmos no ideal, ou menos em uma trajetória que não leve a um presídio de segurança máxima em Campo Grande, MS. O simples fato de existirem favelas já mostra a falência de um povo em cuidar dos seus.

Antônio nasceu em uma favela, é produto desse meio, e sujeito nele. O lar em que nasceu é atravessado pelas marcas da pobreza e da precariedade da cidadania. O pai não tinha emprego sólido e qualificado, e foi vítima da violência que, a meu ver é gerada pela imensa desigualdade. Largou a escola. A mãe alcoólatra sem tratamento, era ausente porque tinha de trabalhar nesse nosso querido sistema de serviço doméstico. A filha não teve acesso a tratamento eficaz de saúde e a família não pôde contar com uma rede mínima de proteção. Este foi o ponto de virada que empurrou Antônio para o submundo (segundo nosso ponto de vista, porque provavelmente para ele aquilo é que era o mundo).

Antônio foi vítima de uma espécie de escravidão, a escravidão por dívida. Um dos maiores sucessos de Nem talvez tenha sido conseguir pagar essa dívida, mas aí ele já tinha gerado outra; é muito difícil sair do “movimento” depois de se trabalhar tanto nele. Caso morasse nos EUA, Nem provavelmente teria feito três hipotecas de seu imóvel, caso tivesse, para pagar o tratamento de Eduarda. Iria à falência. Caso morasse na Dinamarca, pode ser que não tivesse imóvel, mas não precisaria gastar com o tratamento. Muito menos largar o emprego. Se Nem fosse funcionário público federal no Brasil, poderia tirar uma licença para cuidar de sua filha, provavelmente teria plano de saúde, ou então algum conhecido que pudesse dar um jeitinho de ele ser atendido no Hospital da Lagoa, ou na UFRJ. O livro não dá detalhes do périplo de Eduarda pelos hospitais, nem das tentativas de tratamento, mas sinceramente esperava que na FioCruz o caso fosse resolvido. Não foi. Neste caso fica mais evidente que, para uma rede de proteção social eficaz, uma saúde pública eficiente não basta. É necessário um esquema de apoio para garantir que os pais ou responsáveis não serão excluídos do mercado de trabalho e ao mesmo tempo poderão cuidar de seus filhos doentes.

Pode-se pensar estes pontos em que a história de vida de Nem foi empurrada para a delinquência como pontos de falha do Estado. No entanto talvez seja o caso de pensar não como falha, mas como produção mesmo. Rapidamente aparecem as articulações da favela e de seus esquemas de poder com o Estado. E, no nível macro, a perpetuação da pobreza também significa manutenção dos privilégios.

O livro mostra todo o poder destrutivo da guerra às drogas. Mesmo pintados como heroicos, os esforços dos policiais para conter ou desmantelar a estrutura do tráfico acabam gerando no mínimo uma impressão de futilidade, e em última análise, pena. No livro esse debate não aparece, mas a legalização das drogas criaria um cenário bem diferente para este enredo, e um roteiro menos violento e com menos mortes. Esse não-debate velado gerou um incômodo que ia e voltava várias vezes no decorrer de minha leitura, por vezes encoberto pela riqueza de eventos interessantes e muito bem descritos, por outras reavivado por alguma morte desnecessária ou pela descrição de uma intricada investigação policial cujo resultado final não é mais que sobrecarregar uma cela de prisão.

No debate sobre as UPPs, eu lembro muito bem que, quando de seu lançamento, todas as autoridades destacavam que a parte ocupação policial deveria ser somente um passo inicial para abrir caminho para a presença do Estado, ampliando o acesso à cidadania aos habitantes. Todos sabiam e falavam isso. O que se mostrou na verdade foi uma negligência a esta segunda parte do projeto. Talvez porque seja difícil esperar da polícia outra maneira de lidar com a pobreza que não seja a violência, e tão ou mais difícil esperar do Estado outra maneira de lidar com a pobreza que não a polícia.

Rebentos e Dejetos

Eu penso que muito se pode dizer sobre uma sociedade observando o modo como ela lida com suas crianças e com seus dejetos. Escola ruim e esgoto não tratado. Um bom resumo.

A Rocinha aparece representando favelas no coletivo, no universo particular do Rio, e na singularidade de seu território. Universalmente, favelas são concentrações de pobreza. Construções precárias, falta de acesso a serviços básicos, como água encanada, transporte. Falta a mínima presença do Estado organizado. Na zona sul do Rio as favelas são ilhas elevadas no meio de bairros mais ou menos abastados, o que torna a geografia diferente de outras cidades brasileiras, onde é mais comum que a pobreza se espalhe pela periferia, e não se estabeleça como manchas no mapa da cidade. A singularidade da Rocinha se mostra no isolamento de outros morros da cidade, fazendo com que, mesmo que o tráfico por lá fosse controlado por uma ou outra facção, ela pudesse ser relativamente autônoma, o que trouxe alguns períodos de paz enquanto outras favelas sofriam. Esses períodos de paz geraram um respiro para que lá pudesse haver uma identidade mesmo cultural. Aí também se destaca a personalidade mesma de seu déspota, que se reflete nos negócios e na prosperidade local.

Parecido com a economia informal do Canindé de Carolina Maria de Jesus, também no tráfico da Rocinha há sistema elaborado de crédito e débito. Mesmo donos de um negócio tão poderoso como o comércio de drogas têm dívidas, seja de produtos e dinheiro a fornecedores de drogas e armas, seja dívidas de lealdade a amigos e companheiros. Traços dessa “economia humana”, para usar um termo emprestado do David Graeber, aparecem muito claramente no episódio da frustrada compra de armas, se não me engano, por Bibi Perigosa. Neste evento ela paga uma parte do valor e toma, como garantia, um adolescente, cujo parentesco não é explicitado no livro.

O livre comércio e a livre organização na favela geraram um poder autocrático, machista e violento. O monopólio do comércio é garantido, ou conquistado, na base da bala. Esporadicamente são usadas outras formas de garantir o poder, mas todas são residuais quando comparadas ao terror.

Nem é nemesis por ser inimigo do estado e causar empatia no autor de sua biografia, assim como gerou respeito na população sob seu comando (um pouco menos que os 100.000 descritos por Glenny). É nemesis por ter poder quase divino de distribuir graça ou terror e punição.


No mais, Misha Glenny fornece um excelente resumo do Brasil naquele intervalo de sua história. Um resumo descritivo, com poucas considerações em termos de explicações. O Estudo de Caso de Antônio Francisco mostra um rico ponto de convergência de elementos históricos, políticos, econômico e sociais. Mais do que uma exposição de opiniões ou teorias em um debate, trata-se de uma riquíssima descrição de um momento brasileiro.

A pólis é o espaço da política - das favelas brasileiras ao Congresso americano




A leitura do livro "O Dono do Morro - Um Homem e a Batalha pelo Rio" é fluída e saborosa e deixa, ao final, a vontade de ler mais sobre o processo de urbanização da capital fluminense, as raízes da sua violência e desigualdade e as políticas de combate às drogas. A despeito de Misha Glenny cair no canto da sereia de ser condescendente com seu biografado (o que por vezes dá um tom meio previsível à sua narrativa), ele ainda assim é capaz de contar sua história de maneira a colocar o foco em diversos aspectos da favela e da cidade - e por vezes me perguntei se a biografia era de fato sobre Antonio Francisco Bonfim Lopes ou se o sujeito da biografia eram a Rocinha ou a própria cidade do Rio de Janeiro.

Pois essa é uma das virtudes mais impressionantes deste livro: para além de contar a trajetória do "Dono do Morro", Misha consegue nos mostrar um pouco da vida vibrante e difícil dos moradores da Rocinha, oferecendo-nos, ainda, algumas espiadelas sobre a cidade do Rio de Janeiro e sua trajetória contemporânea no combate às drogas. E são tantas as imbricações e singularidades que nos são apresentadas em um piscar, quase como se Misha estivesse de carona em um dos famosos mototaxis e só nos pudesse oferecer realmente um vislumbre destes assuntos, que é até difícil selecionar apenas um para escrever neste texto. Mas vou apostar no que me chamou mais atenção: a política - e o modo como ela aparece de maneira transversal nesta narrativa.

Logo no início, na Parte 1, em que o autor está elaborando o cenário do Rio de Janeiro dos anos 1960-1980, mostrando como a cocaína invade a cidade e como as grandes facções dos anos 1990 tem seu nascimento nos presídios da ditadura militar, Misha nos apresenta à lógica da guerra às drogas americana, e nos mostra o impacto desta política nas mazelas brasileiras. Como bem pondera nosso narrador: "a lógica da guerra às drogas, ainda firmemente adotada em Washington e na maioria dos países europeus, europeus, criara um círculo vicioso de matanças e excessos que uniam os fabricantes de armas dos Estados Unidos, os traficantes da América do Sul e os consumidores de cocaína das classes médias de Berlim a Los Angeles." (Capítulo 5 - Colapso Moral). Uma pena que Misha abdica de apresentar mais argumentos do debate moderno em torno da liberação das drogas (e vale sempre a pena se atualizar sobre o debate. A favor da liberação: aqui e aqui. Contra: aqui), embora, me pareça claro o posicionamento dele contrário à política da guerra às drogas1. Contudo, achei incrível o modo como ele conseguiu conectar a decisão do presidente americano Nixon em intensificar a guerra às drogas (por questões da política interna americana) na década de 1970 com o aumento do número de óbitos na cidade do Rio de Janeiro nas décadas seguintes. 

Esse é um aspecto bastante interessante do fenômeno das drogas no mundo contemporâneo: as decisões tomadas pelos legisladores e governantes impactam, profundamente, a vida dos outros países em seus níveis mais locais (não só no que se refere ao gigante norte-americano, mas também para todos os países produtores, consumidores e distribuidores de droga - ou seja, o mundo quase todo). Assim, a política deve ser enxergada sob o prisma local e global, sendo bastante complicado que as decisões tomadas nas arenas decisórias de uma nação tem efeitos substanciais nas demais - sem que seus cidadãos possam ao menos ser consultados (nem ter consciência) sobre isso.

Outra faceta da política que nos é apresentado é o das eleições ao governo do Rio de Janeiro. Misha nos apresenta brevemente à história de José Mariano Beltrame, como se este fosse o "nêmesis" do Nem (capítulo 21 - Nêmesis). Talvez por ter feito bastante pesquisa entre os membros das forças policiais (há, inclusive, um apêndice sobre as principais forças policiais no Rio de Janeiro), há um bocado de informação - e de percepção - sobre os policiais ao longo da narrativa. Contudo, me chamou a atenção o modo como a política no âmbito do Poder Executivo estadual (e também o municipal, claro, como vimos na mais recente eleição para prefeito do Rio de Janeiro) é profundamente influenciada pelos acontecimentos na vida das favelas. Como cidadãos do município do Rio de Janeiro, é claro que os moradores das comunidades devem ter vez no espaço público (embora na prática... não muito), mas o modo como a real politk se constrói nos níveis mais estratégicos do governo do Estado, embricada com o controle que os traficantes e milicianos possuem sobre as comunidades onde atuam é realmente impressionante. 

A política de combate às drogas não é apenas uma política pública ("policy", em inglês), mas também, e fundamentalmente, uma questão de política ("politics", em inglês). E, tal qual como apontado acima, as decisões tomadas entre agentes das forças policiais - na teoria, representantes do Poder Executivo cumprindo orientações decorrentes das leis e regulamentos e, por isso mesmo, apenas "burocratas de nível de rua" sem poder de decisão, mas que, na prática, criam as leis, julgam e executam, à revelia de suas atribuições e hierarquia - e representantes dos tráficos e das milícias - que comandam a vida das comunidades em que atuam e que, como Misha aponta no livro, no melhor dos cenários não passam de "déspotas esclarecidos" -  passam ao largo da vida pública formal do governo do Estado, sem que seus cidadãos possam ao menos ser consultados (nem ter consciência) sobre isso. 

Por fim, quero destacar a faceta da política da favela. Misha aponta que Nem é um membro fundamental da comunidade - e, como tal, precisava ter voz política na favela. No capítulo 24 - Política, o narrador nos descreve como Nem apóia membros da comunidade para tentarem se eleger como vereadores da Câmara Municipal. Em uma relação diferente da que nos foi apontada por Carolina em "Quarto de Despejo", ao invés de os moradores da favela trocarem seus votos por comida e roupa, Nem faz o esforço de construir um candidato local que possa ter voz nas instâncias formais de governo. Não seria a primeira vez - e certamente não será a última - que traficantes e milicianos investem suas fichas na construção de uma força política com voz e voto no poder público. A jogada não dá certo, a despeito de Feijão e  William terem boas chances e recursos para fazerem campanha. Contudo, para além das relações com o governo formal, me impressiona também a política existente no próprio comando do "dono do morro". 

Misha aponta que a força do traficante reside sobre três pilares: (i) ganhar apoio local, distribuindo parte dos lucros do tráfico entre os membros da comunidade; (ii) enviar a inimigos e dissidentes a mensagem de que a dissidência desencadeia o uso da força; (iii) praticar sistematicamente a corrupção dos agentes da polícia. Cada chefão punha pesos diferentes nesses pilares, o que significava que o clima mudava drasticamente de favela para favela e de chefão para chefão (Capítulo 4 - Corpos). Nem é um cara que consegue habilmente equilibrar estes 3 pilares, razão pela qual seu reinado é tão duradouro e "estável" (considerando os padrões existentes nas demais comunidades). Ele exerce forte influência sobre uma das Associações de Moradores da Rocinha (elegendo Feijão, seu amigo de infância, como líder comunitário). Ele consegue o apoio da comunidade ao implantar regras de boa conduta, como impedir a entrada de menores de 16 anos nas fileiras do tráfico. Ele consegue trazer celebridades do mundo pop para dentro da favela. Ele tem bom relacionamento com jogadores de futebol, jornalistas, intelectuais e políticos. Ele identifica pontos fortes e fracos dos seus subordinados e atribui a eles tarefas adequadas a seus perfis de personalidade. Ele consegue manter sua aura de "machão" na favela, ao mesmo tempo que mantém em dia todas as suas obrigações como pai de família e marido "provedor". Ele distribui doces Às crianças nas datas festivas e escuta paciente as demandas e reclamações dos moradores da favela. Nem compreende como ninguém que seu poder reside muito mais em sua rede de relacionamentos do que na força de suas armas. E que o "dono do morro", a despeito de ser um déspota esclarecido, não tem um reinado muito longevo se houver fraquezas na construção política dos pilares que o sustentam.

Talvez, de todos os aspectos da política que mencionei até aqui, a atuação do "déspota esclarecido" tenha sido o momento em que os cidadãos daquela comunidade pudessem, de fato, opinar de maneira mais decisiva na construção das decisões que mais impactam suas vidas. Longe de argumentar que o regime de terror imposto por traficantes e milicianos seja um esforço saudável de democracia; contudo, o que me causa mais espanto na identificação de como a política aparece de forma transversal neste livro, é que, nas instâncias formais de arena política, o cidadão tem pouco (senão nenhum) poder decisório sobre as decisões mais fundamentais do combate às drogas, enquanto na favela, durante o período de Nem, a política se constrói de modo mais direto para os seus habitantes. 

O termo "pólis" era o modelo das antigas cidades gregas, desde o período arcaico até o período clássico, vindo a perder importância a partir do domínio romano. Devido às suas características, o termo pode ser usado como sinônimo de cidade-Estado. A pólis, definido como modo de vida urbano em que os "cidadãos" participavam ativamente das decisões mais importantes da cidade, mostraram-se um elemento fundamental na constituição da cultura grega, a ponto de se dizer que o homem é um "animal politico". De fato, não existe vida sem política, em todos os níveis e para todos os aspectos relevantes da nossa existência. A trajetória de Nem, com seus muitos embricamentos e idiossincrasias, nos prova o quanto a política é transversal e opera de diferentes maneiras e em diversos níveis. Independente de ser na favela ou no Congresso americano, a política, em suas diferentes construções, é a arena de tomada de decisões públicas. A política não é uma opção - ela simplesmente é. 

1. "A única coisa que a guerra às drogas não conseguiu fazer no mundo ocidental foi cumprir seu objetivo: que as pessoas parassem de usá-las. O consumo nunca foi tão grande. Mas o impacto da política americana e europeia tem sido muito mais cruento cruento nos países de produção e distribuição das drogas. Desde os anos 1980, quando a indústria da cocaína criou um apelo de massas, centenas de milhares de centro-americanos e sul-americanos têm sido mortos em decorrência da guerra às drogas. Como gringo de um país que é ardoroso defensor dessa política, poucas coisas me parecem mais imorais (e a concorrência é acirrada)." (Capítulo 5 - Colapso Moral)

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Os Generos Alimenticios Deve Ser ao Alcance de Todos

Escultura Ugolino e seus Filhos, de Jean-Baptiste Carpeaux. A expressão de desespero de um pai  sem ter como alimentar seus filhos.


Um século depois do Brasil descrito em Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, Quarto de Despejo, o diário de Carolina Maria de Jesus nos mostra o imprinting da lógica segregadora brasileira. Certamente não é só o Brasil que tem essas desigualdades. Muitas sociedades no mundo são divididas assim. Na British Airways, funcionários não-britânicos não ascendem aos postos mais altos nas cabines das aeronaves. Quem é classificado como equipe de classe econômica, no dia da admissão na companhia, não vai nunca servir na executiva. Mas aqui é tudo mais agudo. A miséria é sistêmica.

Mesmo se considerarmos que muita coisa já melhorou – por exemplo, o mais comum nas grandes favelas hoje são casas de alvenaria sem acabamento; papelão e tábuas são mais raros -, o sistema continua enviesado para desfavorecer os desfavorecidos.  Carolina trabalha sempre e está sempre em falta. É a escravidão por dívida. “Cato papel (...), permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta.” Carolina não tem como sair desse ciclo nefasto de retroalimentação. A perpetuação da pobreza.

Olhando a partir de uma perspectiva sócio-econômica, o livro é um poço de exemplos sobre a perpetuação da pobreza. Logo de cara, os filhos de Carolina são criados sem pai. Mais do que isso, a situação de privação em que eles vivem é precária mesmo em comparação com outros núcleos de famílias monoparentais, pois não contam com avó, tias ou outros parentes que possam auxiliar no cuidado com as crianças. Essas crianças não têm supervisão ou orientação de adultos durante o dia, então é provável que eles cresçam com menos amor durante as horas em que estão sem a mãe. Isto faz muita diferença por exemplo no rendimento escolar delas. Carolina quando chega está cansada demais para ouvir os filhos contarem o que aconteceu no dia, o que aprenderam na escola, valorizarem a própria narrativa e a própria brincadeira. O processo mesmo de subjetivação deles está marcado por essa falta de conversa, de palavra, de legitimação. Neste ponto, quando pensamos que muitas famílias ainda vivem assim, acaba se tornando fundamental a defesa da escola em tempo integral, pois garante, minimamente, alguma presença adulta qualificada para a criança nas horas em que seus pais não estão lá.

Um fator que influencia muito isso, e que não é tão difícil assim de resolver, é a qualidade do transporte público. O tempo gasto no trajeto casa/ trabalho/ casa em última análise é tempo roubado da convivência entre pais e filhos. Este tempo adiciona qualidade à formação das crianças, e pode ser considerado um dos principais fatores iniciais da cota subliminar para brancos e não-pobres. Mas essa cota começa intra-útero.  A nutrição da mãe, a qualidade da assistência pré-natal, o álcool (pessoalmente acho que formas subclínicas de síndrome alcoólica fetal estão presentes de maneira significativa como potenciais redutores de inteligência*).

Depois que nasce, o período de crescimento e formação do bebê requer proteína. Cérebro nenhum vai se desenvolver bem se não tiver um aporte regular de proteína e energia. A perpetuação da pobreza é a baixa ingesta de proteína na infância, que grava os limites cognitivos no hardware de Vera Eunice, João José e José Carlos. Depois de uma determinada idade, o raciocínio deles não vai ser comparável ao dos filhos da dona Julita.  A perpetuação da pobreza se grava no mármore do desenvolvimento cerebral. Impossível não lembrar de Admirável  Mundo Novo, de Aldous Huxley, um dos meus autores favoritos. No mundo futuro do livro, todas as pessoas são geradas e gestadas em laboratório. A partir de determinações superiores guiadas pelas necessidades do sistema, são gerados indivíduos mais ou menos inteligentes. Analogamente, dá para pensar que o capitalismo hoje, com seus mecanismos geradores e perpetuadores de pobreza, atua como um fator produtor de doença e redutor de qualidade daqueles que lhe servirão mais tarde como trabalhadores e consumidores.

O trabalho extenuante de Carolina não garante o mínimo de conforto a ela e a seus filhos. É a prova viva da falsidade do discurso da meritocracia. Por um lado a história de relativo sucesso da Carolina reforça esse discurso. Ela tinha uma natureza que a distanciava dos “favelados”, de quem ela tão amiúde tentava se destacar, ouvindo valsas vienenses por exemplo, mas reconhecendo que também era uma. Carolina se esforçou e conseguiu, por sua índole inteligente e criativa de escritora, se livrar da pobreza. Então permanecer pobre é uma questão de escolha pessoal. Quem não percebe os próprios privilégios pode pensar assim.

O livro faz pensar muito também na questão da mulher. São as mulheres que trabalham e que protagonizam as atividades na favela. Quando se fala em famílias monoparentais, pode-se deduzir que a tal “mono” é uma mulher. As mulheres que vão pegar água na bica. A violência contra a mulher é aberta, e poucos se comovem com histórias corriqueiras de surras, e quase assassinatos. Não conseguindo armazenar dinheiro para viver, Carolina armazena paciência e resignação. Ela se sente sozinha, apesar de estar rodeada de pessoas na mesma condição. O enquadramento capitalista das relações faz com que cada um cuide dos seus próprios afazeres e destinos. Em momento algum no livro é citada alguma forma de associação de moradores ou outra agremiação qualquer voltada ao bem coletivo. Há cacos de uma frágil teia de cooperação, de uma microeconomia de crédito e confiança desmonetarizada, mas que não passa disso, cacos. Pensei agora que solidão e solidariedade têm o mesmo radical.

Carolina desfaz também o mito de que pobre não se preocupa com política. Seu diário tem algumas referências a políticos da época e a conversas sobre política dentro da favela. “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. ” Foi um presidente que passou fome que tirou o Brasil do mapa da fome.

Muito bem, Carolina. Os generos alimenticios deve ser ao alcance de todos.

Talvez o aspecto mais chocante do diário seja o da fome. A fome na terra em que se plantando, tudo dá. A fome como intervenção humana no ambiente, na espécie. Não foi a seca, enchente, escassez. É o desperdício, a ganância, esse motor do capitalismo que deve estar sempre em expansão. Carolina cita a especulação com linguiça. O frigorífico produz linguiça demais, não vende, guarda até o último momento e joga fora, quando não pode mais vender. O valor de uso mais precioso, o do alimento, é zerado e vai embora quando acaba o valor de troca. Se não pode mais vender é lixo. E se é lixo, é comida para Carolina e seus filhos. E para evitar a presença de indesejáveis, inutiliza-se a comida no lixo com creolina. Hoje na enseada de Botafogo vi uns vinte urubus em volta de uma carcaça de tartaruga. Lembrei do documentário Ilha das Flores, acho que do Jorge Furtado (quem não viu, veja. É obrigado). E também em todos os catadores dos lixões, quase indistinguíveis dos urubus.


*A Síndrome Alcoólica Fetal é um conjunto de manifestações presentes em casos em que a mãe ingere quanidades significativas de álcool durante a gestação. O quadro clássico inclui alterações no formato da face (que podem desaparecer com o crescimento), hiperatividade, desatenção e retardo mental. Minha hipótese é que, enquanto esses quadros mais clássicos precisam de grandes quantidades de ácool para se manifestarem, formas mais sutis, talvez apenas como limitadores do desenvolvimento intelectual, possam estar presentes em proporções variadas mesmo quando não se bebe tanto assim. A isso se alia o fato de que o alcoolismo prejudica a ingesta e a absorção de determinadas vitaminas, que são ainda mais importantes para a gestante e seu bebê. 
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domingo, 23 de outubro de 2016

Carolina, vida que teima em estar presente



No livro “Quarto de despejo” o leitor é convidado a acompanhar o cotidiano de uma moradora de uma favela dos anos 1950 a partir de trechos de um diário escrito por ela e editado por um jornalista. A protagonista é Carolina, moradora de Canindé, extinta favela de São Paulo. Não é uma leitura muito agradável. Seja pela forma, com erros de ortografia e concordância, seja pelo conteúdo, obviamente incômodo. Um aspecto marcante é o quanto o texto é repetitivo.

Acho que o primeiramente me fez refletir foram as diferenças entre o que se esperaria encontrar no diário de uma favelada de hoje e o que encontramos no de Carolina. Chama atenção a rotina de pegar água numa bica, a frequência com que a fome aparece e a ausência do poder paralelo do tráfico ou da milícia. Além disso, o alcoolismo é um problema citado, mas não há menção a outros tipos de droga. 

Sobre a violência, ela aparece na forma de brigas e da indigência em si, mas a polícia aparece como uma instância de mediação. Embora a polícia não se revele capaz de resolver de fato os conflitos da favela, está longe de ser considerada causadora de problemas.  O tema do abuso do poder policial não aparece.

Outros aspectos parecem ainda ser familiares aos atuais favelados, como a falta de saneamento e a sujeira (“Ao redor da torneira amanhece cheio de bosta. E quem limpa sou eu. Porque as outras não interessam”), a sensação de marginalização social, de estar no “quarto de despejo” e a descrença nos políticos.

Sobre Carolina em si, é interessante ver como ela pensa sobre as coisas e tentar imaginar de onde ela tira suas ideias. Ela fala muito pouco do passado e de perspectivas para seu futuro. O texto se mantém fiel à proposta de ser um diário de se ater ao presente, de forma quase obsessiva. Mas sabemos que ela migrou de Minas para São Paulo e que gosta de ler jornais e livros, embora deteste gibis, a ponto de surrar seu filho por estar lendo um. Em um trecho ela diz que havia “pegado um livro para ler”, mas não fica claro onde exatamente ela consegue seus livros. Em outro momento ela cita uma conversa com um funcionário da livraria Saraiva, deixando suspeitar que ela compre livros lá. 

Sobre seu círculo íntimo, quase não há menção a familiares, exceto seus filhos, com cujos pais não mais se relaciona, apesar de o “pai da Vera” ser citado algumas vezes. Diz ter se iludido com homens, mas tem um crush que também mereceu ser citado nos seus relatos.

Parece haver por parte de Carolina um respeito pela autoridade. Inclusive é ela que com frequência chama a polícia ou intervém em brigas dos vizinhos. Ela é solidária com os mais pobres que ela e parece se sentir mais responsável que os outros favelados. Em alguns momentos ela se coloca diretamente como diferente deles, fazendo críticas ao comportamento “dos pobres”. Ela diz que “nas favelas os homens são mais tolerantes, mais delicados. As bagunceiras são as mulheres”. Ela não fala como se ela mesma fosse da favela e sim como uma observadora de fora. Isso chama a atenção e se repete em vários outros momentos do livro.

Carolina parece não ter uma religião definida. Não demonstra ter simpatia pelos “crentes”. Ela cita que “os favelados zombam dos conselhos” dos crentes e jogam pedras no barracão onde eles pregam. Ou seja, diferentemente dos dias de hoje, naquele tempo as Igrejas evangélicas não eram muito populares. Por outro lado, Igreja Católica se faz mais presente na vida da favela. Carolina cita que os freis promovem cinema gratuito e tratamento médico. Ela diz não entender como “o Frei Luiz descobriu que os favelados têm chagas”, revelando sua sensação de estarem desamparados pelas autoridades e expressando bem a realidade da época: os pobres não tinham direito à saúde, só podendo contar com a caridade das “Santas Casas de misericórdia”. Não era direito, era misericórdia (mais ou menos como no governo Temer).

Talvez a religião com a qual Carolina mais se identifique seja a espírita. Ela conta que no Centro Espírita as pessoas a recebem sorrindo, sem distinção por sua classe. Lá ela recebe doações de agasalhos e diz gostar de ouvir as palavras de um religioso. Mas Carolina não demonstra ser seguidora propriamente do espiritismo, podendo, afinal, ser considerada como cristã “católica não praticante”.

Notam-se  também os preconceitos de Carolina. Ela afirma que os portugueses não têm educação, são obscenos, pornográficos e estúpidos e pensam ser mais inteligentes que os outros. Sobre um espanhol, diz que não admite que estrangeiro grite com ela. Sobre os ciganos, ela diz que “o cigano é pior que o negro”, mas não fica muito claro o que ela quer dizer com isso. Em outro momento afirma que os ciganos são violentos e diz: “mil vezes os nossos vagabundos do que os ciganos”.

Vale imaginar também o que Carolina pensa sobre os negros, lembrando que ela própria é negra. Uma pista é o contraste com o que ela pensa sobre os judeus. Ela diz que os judeus são perseguidos por serem inteligentes e que o profeta Moisés teria intercedido por eles junto a Deus e que, devido a esse fato, os judeus são quase todos ricos. “Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós”. Essa passagem revela tanto uma sensação de inferioridade intelectual e idealização dos judeus, como também um conceito ingênuo, quase infantil, de Deus. Curioso ela ter preconceito com estrangeiros e ciganos e ter os judeus em tão boa conta. Sabemos que entre o ano de 1929, em que nos deparamos com o antissemitismo aberto de um consagrado intelectual como o Alcântara Machado, e 1955, ano dos relatos de Carolina, fatos significativos aconteceram; mas, de qualquer forma, achei surpreendente.

Além desses trechos, a questão racial pouco aparece. Ela chega a citar que um vizinho seria um “negro preto” e não fica claro o que isso significa exatamente. (edit: depois de ler o texto do Igor, em que ele cita a passagem em que Carolina se orgulha de sua negritude, eu me lembrei disso. Bem, não vou problematizar isso agora...rs).

Sobre política, também temos apenas algumas pistas sobre as ideias de Carolina. Ela diz que as mulheres da favela fazem intriga como “Carlos Lacerda”, famoso opositor de Getúlio Vargas, mas não fala nada do próprio Vargas. Ao citar homens simpáticos ao comunismo ela diz que o “custo de vida faz o operário perder a simpatia pela democracia”, mas também não deixa clara a sua opinião. Em outro trecho ela compara os atacadistas paulistanos aos imperadores romanos, e diz que eles atacam os pobres pela fome da mesma forma que os imperadores atacavam os cristãos. Uma imagem bastante forte, por sinal. É intrigante o trecho em que ela cita ter ficado nervosa ao contemplar o “dinheiro de alumínio”, que ela critica por valer menos que os “gêneros”. Confesso que não entendi e gostaria de entender (rs).

Para finalizar, vale lembrar que Carolina fala em vários momentos, desde o início dos relatos, que deseja publicar seu diário. Não fica muito claro o porquê desse desejo. Em certos momentos ela parece usar isso como uma defesa contra algumas pessoas, que demonstram medo de serem difamadas. Não me lembro de ter lido alguma passagem em que ela diga que o diário seria uma forma de ela melhorar de vida ou ficar rica. É possível que ela tivesse essa motivação, mas, novamente, o foco em relatar o cotidiano é o que fica do livro. Carolina teima em estar no presente, e teima em se fazer presente no mundo por meio de sua escrita. Mais do que os grandes escritores que saem da vida pra imortalidade literária, Carolina sai da insignificância pra imortalidade. Um feito e tanto.


PS: gostaria de contar uma coincidência. Estive em São Paulo no início do ano e visitei o Ibirapuera e lá na parte de fora do museu Afro Brasil eu vi uma exposição em homenagem justamente à Carolina Maria de Jesus. Eu passei muito rapidamente e até fiz questão de tirar foto com um livro gigante e pensei em depois procurar saber mais sobre ela. Porém, chegou a roda viva e me esqueci completamente disso, inclusive tinha esquecido o nome dela (sou péssima com nomes) só tendo lembrado desse fato agora, depois de ter lido o livro!