domingo, 26 de novembro de 2017

Um privatismo sem jardins?

Praça Paris, ao mesmo tempo praça e jardim

‘O jardim e a praça’, de Nelson Saldanha é um livro pouco marcante. Parte disso tem a ver com o tempo decorrido de sua leitura: cerca de três semanas. Nesse período, muita coisa aconteceu na minha vida, e também nas minhas leituras. Ao me deparar com a tarefa de escrever algo sobre ele, sou obrigado a retomá-lo, dar uma breve olhada nas anotações e parágrafos marcados, e tentar extrair disso alguma coisa, alguma crítica.

De todas as ideias apresentadas nesse livro obscuro (não se o acha nem mesmo na Estante Virtual), a única que me deixou alguma marca (a ponto de lembrá-la a posteriori) é a ideia de que somos todos tributários da burguesia. O autor argumenta que, mesmo no polarizado século vinte, as discussões teóricas, e mesmo práticas, entre os sistemas político-econômicos, são todas burguesas. A discussão comunismo versus capitalismo, marxismo versus liberalismo, tudo isso remete a uma vida burguesa. O interessante argumento do autor é o de que, por conta desse pensamento polarizado herdado do século vinte, e também por uma certa tradição marxista de pensamento, a ideia de burguesia foi sendo empurrada à direita, se opondo frontalmente aos sistemas socialistas de pensamento e ação. Para Nelson, a noção de burguesia se opõe verdadeiramente ao sistema feudal, ao modo de ser medieval europeu, ruralizado, árcade. Mesmo as revoluções comunistas (russa, cubana, chinesa) não tiveram interesse em atacar a revolução burguesa de 1789 na França. Nenhuma delas pregou a volta da monarquia, da nobreza, do clero. Em contrapartida, mantiveram a relação de dominação da cidade sobre os campos, não destituíram de sentido as profissões liberais pequeno-burguesas, valorizaram a burocracia e fortaleceram a ocupação dos grandes centros urbanos. Nas palavras do autor: “o fosso entre feudalismo e capitalismo – ou sociedade moderna, ou burguesa – é mais profundo do que o que pode existir entre capitalismo e socialismo. Estes dois são, no fundo, resultantes do processo geral de secularização, que tanto afeta a esfera cultural quanto a econômica, enquanto o mundo feudal foi anterior àquele processo.”. Apresentar o deslocamento da noção de burguesia ao longo a história é uma excelente ideia (embora, muito francamente, eu também não seja capaz de precisar o quanto ela tem de original).

Quanto à oposição central proposta pelo título do livro (jardim versus praça), e que me motivou a comprá-lo, as ideias são meio embaralhadas. Trata-se de uma discussão interessante sobre o público e o privado, algo como ‘A casa e a rua’, do Roberto da Matta (que não li). A noção que fica é a de que Nelson Saldanha, nesse livro, apresenta uma espécie de pensamento divergente. Gosto do conceito ‘divergência’, acho que o feixe de significados proporcionado por ele é bem adequado à impressão que tive do livro. Se na oftalmologia, divergência tem a ver com a dificuldade de colocar algo em foco, no estudo de séries temporais (da matemática avançada), divergir tem o signficado de não ser possível chegar a um resultado com as condições de acumulação (somas ou produtos) fornecidas. Portanto, considerando ambas as possibilidades, creio ser este um termo que se aplica bem. ‘O jardim e a praça’ tem um problema de foco, mas também de resultados. Sem saber exatamente qual deles é a causa do outro, o que se pode dizer é que o ensaio apresentado nem bem focaliza o tema principal, nem chega a bom termo em termos de resultado, conclusão.

O que se depreende do parágrafo anterior, talvez erroneamente, é que o autor apresenta uma escrita frouxa. Mas, mea culpa, talvez frouxa possa ter sido a minha leitura.

Para além das ideias apresentadas, e pensando um pouco na forma, o que senti ali foi uma espécie de medo. Um medo de que, na ânsia de abarcar todas as esferas do conhecimento (história, sociologia, filosofia) e misturar isso com algum grau de poesia e um certo diletantismo, eu também venha caminhando para me tornar um pouco disso nas coisas que escrevo: uma coisa plástica, em certo sentido bonitinha, mas que não consegue dar ao leitor o mínimo esperado em termos de foco e resultado para que a leitura possa ser avaliada, ao final, como tendo tido algum valor, de alguma forma sido proveitosa.

Voltemos ao livro. Uma outra discussão bastante interessante que se apresenta é sobre as utopias. Acostumamo-nos a pensá-las de maneira positiva. A descontrução proposta por Nelson é a de que as utopias, ao primar pelo público em detrimento do privado, apresentam uma sociedade castradora, planificada, e na qual não há conflitos sociais. Diz Nelson: “as utopias são uma imagem anti-sociológica das coisas (...) Configuram uma sociedade em que nada muda, em que não há processos sociais.”. O que consigo pensar é que, se por um lado, as utopias insitgam o movimento (para que se possa alcançá-las), por outro, projetam um mundo estático, em que esse movimento cessa. Se pensarmos a felicidade como a grande utopia da vida privada, fico com a impressão de que é mesmo assim que as pessoas se pensam e se projetam: a felicidade é tanto um lugar/tempo estático, parado, quanto, subjetivamente, a felicidade também está associada ao repouso, à calma, ao olhar para o mar numa praia paradisíaca enquanto o tempo passa. É claro que a ideia do movimento como algo negativo está impregnada pelas opressões do mundo do trabalho, em que a fruição do próprio tempo em benefício de si mesmo é somente admitida em momentos estritamente demarcados (férias, final de semana, feriados). Entretanto, ainda considerando esses atravessamentos, penso que as pessoas gostam de acreditar nesse mundo ideal, bonitinho, sem conflitos; a felicidade como esse grande paraíso, esse lugar idílico em que as pessoas acariciam tigres tranquilamente, como nos folhetos oferecidos pelas testemunhas de Jeová.

Mas negar o movimento é algo empobrecedor. Tanto para a vida privada, como para a vida pública. Nesse sentido, sempre me lembro de uma entrevista do psicanalista Contardo Calligaris na Folha de São Paulo (o link aponta para a Revista Claudia, mas eu jurava ter lido Folha), em que ele diz não querer ser feliz. ‘Eu quero é ter uma vida interessante’, diz Contardo.

A felicidade (a paz, a democracia, e tantas outras coisas) não estão lá esperando ser alcançadas. Essas coisas têm mesmo sua condição de existência no movimento.

Nesse ponto, entra uma outra construção interessante de Saldanha: “a cultura democrática se considera mais dinâmica em relação aos estágios ‘pré-democráticos’ e, nesse dinamismo cabem, como preço, as instabilidades e as crises latentes”.

Ora, a democracia está em crise no Brasil. Talvez no mundo todo. Mas quando não esteve? Quando a democracia foi ‘um dado do problema’? Talvez a estabilidade proporcionada pelo continuum FHC-Lula-Dilma1 nos tenha dado uma falsa impressão de que a democracia era para sempre, mas ‘o pra sempre sempre acaba’, como já dizia Cássia Eller. Talvez para começar de novo, talvez não. Talvez venha nova, reconfigurada, moldada pelas mãos de muitos ou de poucos, não sabemos.

Mas o que sabemos é que as coisas não estão paradas e que, se olharmos para a história do Brasil vamos ver que a democracia sempre foi um paulatino campo de batalha.

Batalha esta que nem todos querem travar. Parte dessa negação tem a ver com a nossa formação burguesa. Mais uma vez Nelson: “o modo de viver dito burguês seria, no caso, um constante evitar riscos, e como a vida é feita de riscos, ela perde em substância com os excessos de cautela.” Essa passagem explica, um pouco, o atoleiro em que nos enfiamos. Gostar do governo ninguém gosta. Mas quem é que está disposto a ir para rua fazer protesto, enfrenter polícia, correr da cavalaria, receber spray de pimenta na cara, ser chamado de vândalo? A maior parte de nós (incluindo a mim mesmo, nos anos recentes) não está. Fomos educados para sermos avessos ao risco. Isso explica o nosso comportamento (mas, não, não nos exime da culpa).

Essa explicação se dá, em parte por sermos historicamente burgueses, mas também por sermos brasileiros. Saldanha argumenta que somos mais afeitos ao privado do que ao público (é importante ressaltar que o livro é de 2005, muito antes, portanto, de 2013, o ano que ainda não acabou, e que ensejou novas formas e pensar e agir sobre os espaços públicos). Ele explicita suas ideias no trecho a seguir: “De certa forma, o problema do privatismo brasileiro, que se prende ao ‘personalismo’ ainda hoje perceptível, deverá ser entendido em conexão com fenômenos idênticos, correntes em toda a América Latina: latifúndios, famílias dinásticas, caudilhismo político, partidos formados por coalizões pessoais, escassa e descontínua presença do povo e do sentido da coisa pública como tal. (...) Há de qualquer sorte, em torno da tendência nacional ao privatismo (o gigantismo de Brasília e da burocracia nacional é outra coisa), algumas observações a fazer. Vejamos, por exemplo, este paradoxo: um povo em que sempre foi uma constante a violência privada, sob diversas formas (crimes de fim de semana, assassinatos, rixas, faclidade do uso de armas, trânsito violento), e que entretanto não tem o hábito da violência pública. Não o tem em geral, sem embargo de sedições aqui e ali ocorrentes na história; não o tem no sentido do enfrentamento com a milícia nem no da própria disposição revolucionária.

Ora, se somos um povo (na visão de Nelson Saldanha pré-2013) que não ocupa as ruas, que não quer correr riscos; se abdicamos do público, da praça, certamente, é porque estamos cuidando dos nossos jardins, certo?

E aí, Nelson Saldanha, nos deixa essa provocação, com a qual teremos de lidar: “Um privatismo sem jardins. Dir-se-ia ser esse o caso brasileiro.”

Aproveito o final do texto para dizer que, relendo com mais calma minhas anotações, ‘O jardim e a praça’ é sim um ensaio bem rico. Quando comecei a escrever, eu não me lembrava de várias reflexões que eu havia tido durante a leitura, e que fui puxando ao longo do processo de escrita. Então, peço desculpas ao Nelson (que morreu em 2015) e aos leitores desta crítica se fui meio ‘azedo’ nos parágrafos iniciais.

Mas é isso, pensemos no caso brasileiro, um privatismo sem jardins.

PS: Acabei de escrever o texto e fui procurar uma imagem para ilustrá-lo. Tive a ideia de pegar a 'Praça Paris', no bairro da Glória (no Rio de Janeiro) que é ao mesmo tempo, praça e jardim. E funciona de maneira muito boa, tanto como jardim quanto como praça. A Praça Paris nos faz questionar o suposto caso brasileiro, do privatismo sem jardins. Porque ela é justamente o oposto: um lugar público com jardins. Esse pensamento me levou a inserir um ponto de interrogação no título, instigando à reflexão sobre esse pensamento pessimista do Saldanha. Tivesse pensado na Praça Paris antes, eu teria escrito uma coisa completamente diferente, tendo esta praça como eixo norteador. :)

domingo, 3 de setembro de 2017

Identidade e Morenidade

Tão Longe, Tão Perto é o primeiro material de conteúdo acadêmico sobre racismo com que tenho contato. Até então, tudo o que via eram textos jornalísticos ou de opinião, além dos textos do GEB que abordam o tema, mas não são diretamente sobre ele. 
  
Verônica produziu uma obra linda. Muito hábil nas palavras, ela conseguiu colocar um saber técnico sem a aridez dos textos acadêmicos, colocando as próprias impressões nos momentos certos, comentando os resultados de maneira sempre crítica e sóbria. Apenas em um ou dois pontos acho que ela exagera nos termos técnicos estatísticos, considerando que o livro não é a tese, mas isso não compromete em nada o todo da obra. 
  
Para começar a discussão, ela logo coloca a noção de raça na espécie humana como construto cultural, portanto fluido e suscetível a toda sorte de modificações a partir de diferentes contextos e fatores influenciadores. É inútil, pois, buscarmos uma determinação purista ou essencialista do que seria a raça ou suas variações, pois as diferenças biológicas significativas param no nível da espécie. 
  
A revisão bibliográfica e a pesquisa própria de Verônica têm a enorme vantagem de se debruçarem sobre a realidade brasileira, onde a morenidade é importante e significativamente diferente da negritude e da visão estadunidense da “gota de sangue”. As pesquisas são pragmáticas e realistas. 
  
Esse interesse pela mistura é fundamental, pois a ciência gasta muito tempo e recursos na busca de purezas, de fatores isolados, marcadores biológicos puros, quando na verdade a vida é só mistura. A grita biologia (pura) versus sociedade (cultura) deixa de fazer sentido quando estudamos a sério e olhamos com cuidado as relações humanas e suas contradições. 

Uma boa parte da minha leitura de TLTP aconteceu na FLIP, que em 2017 homenageou Lima Barreto. Sob essa influência identifiquei na trajetória de vida Lima Barreto alguns pontos presentes no livro da Verônica. Lima era um escritor brilhante, suburbano, e, apesar de relativamente remediado (tinha trabalho regular), tinha dificuldade de se inserir nos estratos sociais superiores. Vivia o drama do pardo que pode ascender socialmente. Diferentemente de seu antecessor pardo mais celebrado, Machado de Assis, Lima denunciou em sua obra (isso eu percebi no único romance dele que li, Clara dos Anjos) o preconceito racial e social. Teve importante reconhecimento profissional em vida, mas hesitava sempre em se inserir no estrato branco dos mais abastados, a ponto de por mais de uma vez apresentar e retirar candidatura a vaga na Academia Brasileira de Letras. Atormentado por essas ambivalências, sofria com o alcoolismo. Sua obra mostra claramente esse ressentimento com a sociedade que o aceitava apenas parcialmente.  Machado de Assis ignorou o racismo em sua obra e recebeu todo o reconhecimento possível em vida. Lima Barreto denunciou o problema e sofreu as consequências. 
  
A noção de mestiçagem e o papel dos mestiços é particularmente importante no caso do Brasil, onde a mestiçagem foi incorporada ao discurso identitário nacional, seja como característica boa ou indesejável. A ideia da miscigenação como força do brasileiro, a partir de Gilberto Freyre, foi muito criticada por ignorar a discriminação e o preconceito sofrido também pelo “pardo” ou “mulato”. Sinceramente, eu não concordo que Casa Grande e Senzala possa ser resumido nesse tom conciliatório com que muitas vezes a obra é citada. 

Tão Longe, Tão Perto expõe também a rejeição das categorias intermediárias de cor da pele pelo movimento negro. A categoria “pardo” serviria para dividir os negros. Neste caso, é importante notar a particularidade do caso brasileiro, em que variações no tom da pele implicam, necessariamente, variações no grau de preconceito. Um dado interessante, exposto no estudo sobre denúncias de racismo nas delegacias de São Paulo, é que os termos usados nas injúrias aludem ao que a vítima tem de negro, não de pardo 

Há um efeito interessante no relativo à ascensão social dos pardos, que a autora desenvolve muito bem. Que a aceitação de alguns pardos-quase-brancos serviria como forma de se mostrar que a barreira racial no Brasil não é tão significativa, aplacando a revolta dos que querem ascender. Vejo isso como parte de um esquema maior, que valoriza a narrativa do heroísmo e da exceção para deslocar o caráter coletivo do racismo para o particular do mérito do esforço individual. Trata-se, não tenho dúvida, do velho esquema de responsabilizar a vítima.  

No interessantíssimo estudo em que coloca, lado a lado, a relação entre discriminação, classe e cor, fica evidente a diferença entre pretos e pardos, em especial na camada mais abastada. Ali os pardos são mais aceitos como quase brancos, ao passo que com pretos a percepção de discriminação é mais aguda. Isto não deixa dúvida, portanto, que, se em alguns momentos classe e cor podem se confundir, em outros não há a menor confusão. O preconceito é de cor.  

A separação entre o moreno e o pardo merece consideração. Pardo permanece como termo oficial, presente nas estatísticas e estudos, enquanto poucos se descrevem espontaneamente como pardos. Já moreno e suas derivações são utilizados de maneira muito mais ampla pelos próprios sujeitos. Se por um lado isso distancia a pesquisa do dia-a-dia do léxico de cores, por outro cria um nicho protegendo o termo pardo de todas as oscilações vocabulares inerentes ao idioma.   

Neste nosso país marcado pela escravidão, é impossível dizer que o racismo é apenas um problema de brancos ou de negros, ou que a luta contra ele deve se restringir a pessoas desta ou daquela cor. Considerando a penetração ampla da escravidão em diversos estratos sociais, historicamente, e como isso contribuiu para a formação de um povo com desigualdades tão gritantes, a saída para a criação de uma sociedade mais justa passa não só pelo acesso dos negros e pardos à cidadania, mas também pela compreensão dos privilegiados que privilégios não fazem sentido. 

No Brasil a luta pela igualdade racial ganha força, hoje, num momento em que há maior valorização do ganho, lucro e ascensão no plano pessoal do que no coletivo.  O enfraquecimento geral das lutas coletivas, como sindicatos e movimentos sociais em geral prejudica o avanço das correções das desigualdades que prejudicam tanto a nação.  

Após a leitura, fica ainda mais evidente que cor de pele e "raça" são conceitos derivados da cultura, cuja concretude é dada pelo comportamento das pessoas, dos meios de comunicação e altamente variáveis no tempo e no espaço. O livro não propõe aprisionar o conceito e defini-lo, o que se mostraria um esforço fútil, mas entendê-lo como algo fugidio que tem sua materialidade nos prejuízos sofridos pelos discriminados. 
  

A cor de Verônica

'La mulâtresse', de Auguste François Biard (1862)

O livro de Verônica Tostes Daflon, “Tão longe, tão perto – identidades, discriminação e estereótipos de pretos e pardos no Brasil” (Ed. Mauad X), é um largo apanhado sobre as questões de raça e cor no Brasil, com foco na questão da categoria do pardo, o mestiço brasileiro.

O texto é riquíssimo. Anotei uma série de coisas e informações que gostaria de discutir, mas deixei o livro com meu irmão e, no momento que faço esse textão, não tenho meu exemplar comigo. De certa forma, isto não é um problema, pois o principal elemento que eu gostaria de discutir não é exatamente textual: é o peritexto, isto é, os elementos não-textuais que acompanham a escrita.

Escrever já foi uma coisa mais fácil. Há algum tempo atrás, a arte da escrita se resumia a isto: escrever. Caneta-tinteiro, esferográfica, máquina de escrever, computador. Pronto. Escrevia-se, viabilizava-se uma forma de publicação, e a obra seguia seu rumo, não exatamente desacoplada de seu autor, mas dona de um caminho próprio, seu.

Uns poderiam dizer que a contemporaneidade borra a fronteira entre autor e obra, mas tenho a impressão de que se trata de algo mais além: é como se esse ‘borrar’ fosse de alguma maneira mais intenso, e nos aproximássemos de algo como uma fusão. De certa maneira, autor e obra se confundem: o autor é também a sua obra.

A máxima de que não se julga um livro pela capa é cada vez menos válida no século XXI. O livro não é também a sua capa, como outrora, mas é, talvez, sobretudo a sua capa.

Ao me deparar com o livro de Verônica, vi estampada na capa a ilustração de uma mulher. Toda desenhada em preto e branco, a figura é a de uma mulher que não é nem preta, nem branca. Trata-se da ilustração ‘La mulâtresse’, (‘A mulata’), de um artista francês chamado François Auguste Biard (1798-1882).

Comecei a ler o livro, enfim. Mal virei a primeira página, quis saber: qual, seria, afinal, a cor de Verônica?

Seu rosto não estampava a capa, nem a quarta-capa, nem a orelha do livro. Joguei na internet seu nome completo, tive dificuldades de encontrar sua imagem. Só quando achei no Facebook uma imagem da autora no lançamento de seu livro, pude constatar o que internamente eu já sabia: Verônica era branca, branquíssima, loira, óculos de gatinha, o protótipo da intelectual de ciências humanas no Brasil. Sua imagem só foi conseguida a muito custo.

Na FLIP 2017, o homenageado do ano foi Lima Barreto, autor mestiço, suburbano e, de certa maneira, marginal. Tomando para si o mote da diversidade, a FLIP ficou mais preta esse ano, com o depoimento de dona Diva Guimarães, a presença de Conceição Evaristo, a participação da autora ruandesa Scholastique Mukasonga, e os debates literários do ator/escritor/performer Lázaro Ramos.

Em virtude do meu interesse recente pela língua francesa, procurei para comprar um livro da Scholastique, na versão original. Por uma série de choques de horário (e também por não ter tido interesse suficiente, confesso), não vi a palestra da autora. Mas ao passear na livraria oficial da FLIP, me deparei com o livro ‘Ce que murmurent les collines’, e tive interesse em comprá-lo (e efetivamente o comprei). O livro tinha uma tira de destaque cobrindo boa parte da capa (não sei se vocês já viram, mas é tipo uma faixa em que geralmente vem escrito ‘Livro mais vendido do ano’, ‘Vencedor do Nobel de Literatura’ ou algo assim). No livro de Scholastique, a tira de destaque trazia uma enorme foto da autora. Como vocês podem imaginar, Scholastique é uma mulher negra.

O livro mais vendido da história de todas as FLIPs é o livro ‘Na minha pele’, de Lázaro Ramos. Lançado na FLIP 2017, o livro vendeu nada menos do que 1200 exemplares. É muita raça de exemplar!

Raça, por sinal, estampada, na capa do livro. ‘Na minha pele’ possui uma capa laranja adornada de cima a baixo por uma belíssima foto de Lázaro Ramos, em versão cara-metade (e quem não se imagina como a cara-metade de Lázaro?)

Comprei ‘Na minha pele’ e o li inteirinho dentro do ônibus na volta de Paraty para o Rio. É bom. A mim, sinto que não acrescentou muita novidade, mas penso que é uma obra com alta capacidade de difusão popular. É escrito numa linguagem simples, é pequeno, conversa com o leitor, conta uma história com a qual as pessoas podem se identificar, não é escrito nem no jargão academicista empertigado, nem no ranço odiento e amargurado da opressão. É um livro doce, bacana, com muitos predicados.

A mim, negro, o livro de Verônica, branca, diz muito mais que o livro de Lázaro, negro. Não é uma comparação, porque são obras de naturezas diferentes, mas o que Verônica tem a dizer, encontra muito mais eco nos meus interesses do que Lázaro. Meu lugar de fala e minhas vivências passam mais por uma certa compreensão do mundo através de um estudo acadêmico sobre raça do que pela experiência e vivência de mundo sendo um corpo negro sofrendo um grau alto de opressão.

Decerto, não se trata de nenhum absurdo. É uma vivência individual, cada pessoa vive e sente do seu jeito, da sua maneira.

Mas... se eu não tivesse sido exposto à indicação do livro de Verônica, será que eu o teria comprado? Certamente, não. Eu pensaria... ‘hmmm, um livro sobre raça que foi escrito por alguém que não mostra a sua cara? Essa mulher deve ser branca! E eu vou lá comprar um livro sobre raça no Brasil escrito por gente branca? Eu, hein! Vou comprar esse livro aqui que tem um negão bonito na capa....’ E eu teria saído da livraria com o livro do Lázaro, sem saber que a leitura de Verônica teria sido bem mais enriquecedora (para a minha pessoa, considerando a minha subjetividade, é bom frisar mais uma vez).

É claro que não dá pra falar que existe racismo reverso no Brasil. É claro que Verônica teve uma série de benefícios no mundo por ser branca, e Lázaro (e também Scholastique) sofreram violências e opressões físicas e simbólicas por serem negros.

As revistas de moda e os comerciais estão todos hiperpovoados pela branquitude. Isso é ponto pacífico.

Mas se dedicarmos a nossa atenção ao nosso feudo pequeno-burguês, ao nosso gueto intelectualizado que ama a diversidade e idolatra o textão, percebemos que preto vende. E vende bem.

De alguma forma, esse movimento de consumo da imagem preta pode ter a ver com uma certa exotização e fetichização do corpo negro. ‘Olha, que legal, uma mulher preta que perdeu a mãe numa guerra civil de um país africano cujo nome eu mal sei pronunciar. Ai, me dá aqui esse livro, vou levar.’

Por outro, tem a ver com um certo empoderamento mesmo, de gente preta que está povoando os espaços de poder, dando palestras na FLIP e comprando livros. Isso é verdadeiramente legal!

Mas, se por um lado, pretos começam a ser representados, os pardos permanecem invisíveis. É como se os pardos estivessem à margem da desmarginalização preta. O empoderamento pardo ainda não chegou.

Essa questão dos pardos é interessantíssima, mas vou deixar para que vocês a acessem através do livro de Verônica. Ela torce nossas ideias preconcebidas sobre o assunto e, manifestando certa independência de pensamento, conduz o texto de maneira bastante agradável e chega a conclusões interessantes. Leiam o livro, vale a pena!

Por fim, duas observações: cada vez mais, livro é imagem! ‘Na minha pele’ corre o risco de ser um fiasco no Kindle. Ou, ao menos, ele não será tão bem vendido quanto o for na vida real. ‘Na minha pele’ tem em sua capa uma parte importante do que tem a dizer, e um componente importante de suas vendas. Uma hipótese é que o livro digital em geral (Kindle, etc.) não deslanchou como se supunha por causa desse vínculo entre texto e imagem. As pessoas não querem só ler: elas querem ver, querem consumir a imagem de seus livros.

A segunda observação é a respeito de um texto que escrevi há dois anos atrás, intitulado "Castro Alves, Gregório Duvivier e o protagonismo dos movimentos sociais". Minha hipótese à época era de que, transmutado para o século XXI, Castro Alves seria algo como Gregório Duvivier. Era o branco a ser ouvido. Sua imagem, contudo, de traços que apontavam em diferentes direções, possivelmente em decorrência de alguma mestiçagem, era sistematicamente corrigida pelos retratistas da época, num contumaz e diligente processo de embranquecimento.

Talvez Castro Alves, no século XXI, se falasse a uma plateia na FLIP ou se quisesse vender seu livro de poemas na livraria oficial do evento, deixasse o cabelo crescer para que seus cachos ficassem bem aparentes. Talvez rolasse até, muito de leve, aquele Photoshop pra engrossar um pouco os lábios e deixar o nariz um pouco menos afilado. E ele, representado como negro autêntico em toda a sua iconografia presente e vindoura, seria aclamado como ‘um dos nossos’, ‘gente da gente’, ‘finalmente um preto falando pra preto sobre a escravidão’.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Lugar de Fala, Lugar de Escuta


Após a leitura do livro "Prisioneiras" do Drauzio Varela, fiquei impactada por muitos assuntos tratados no livro. Começo pelo que mais me chamou atenção:

Por que o narrador da história das mulheres encarceradas em um presídio feminino de São Paulo teve que ser um homem, branco e não-preso?

Essa é um tema que já apareceu nas discussões GEBianas: o lugar da fala. A trilogia do doutor Drauzio Varela sobre o sistema carcerário no Brasil (Estação Carandiru, Carcereiros e Prisioneiras), divulgada ao longo dos últimos 18 anos tem uma grande importância - inclusive sendo transposta pra outras mídias, como filme e série televisiva, e traduzida para diversos idiomas. São obras de leitura gostosa e compreensão fácil, permitindo que um tema tão "não-mainstream" tivesse um grande alcance social. Mas o que está em questão não é a importância dos livros, mas sim por uma questão de percepção: a percepção da experiência carcerária é muito diferente para quem esteve preso, para quem trabalha no sistema punitivo ou para quem nunca teve contato com este mundo. Memórias do Cárcere expressa uma percepção muito diferente sobre a prisão do que Estação Carandiru apresentou - e não se trata apenas de uma questão de estilo. Contudo, essa diferença de percepção é ainda mais sensível em Prisioneiras, ao termos um homem construindo uma narrativa sobre mulheres.

Em diversos momentos o autor demonstra curiosidade (às vezes até um tom de espanto) em relação às relações afetivas existentes entre as mulheres, apontando as diferenças em relação ao que ele viu nas instituições voltadas a presidiários. Será que teríamos um peso tão grande para as relações afetivas se a narradora do livro fosse uma mulher? E se tivesse sido prisioneira, será que não haveria um foco maior na relação com os carcereiros homens (e será que não houve nenhum relato de maus tratos de carcereiros e carcereiras sobre as prisioneiras?) do que nas relações afetivas Entre as presidiárias?

Em entrevista recentemente divulgada no site Huffpost, Lázaro Ramos aponta o seguinte (e vou transcrever, porque achei muito legal a colocação dele):

"Geralmente, quando se fala em questão racial e quando tem um não negro que não quer escutar sobre esse assunto, ele fala também de alguma dor que teve: "ah, mas eu também passo por isso", "eu também sofri isso em determinado momento", negando o assunto e negando o ouvido. Acredito que a escuta é um lugar muito importante dos não negros para entender os outros lugares. Não que ele precise anular a sua dor. As dores estão aí e elas precisam ser trabalhadas. Mas o não negro precisa entrar em contato também com a escuta. Geralmente um não negro percebe a sua branquitude quando um negro, através da sua dor ou seu incômodo, provoca algum incômodo nele. Só aí a pessoa levanta e percebe. Eu acho que isso deveria ser um trabalho diário e natural. A questão da discriminação não deve ser um problema apenas dos negros. Essa é uma questão que faz parte da construção de país, da construção das nossas humanidades, da potencialização das nossas relações políticas e culturais. Pensar na questão racial é pensar em potência, em energia criativa, em energia tecnológica, em potência cultural."

A questão do lugar de fala e do lugar da escuta é muito importante, não apenas para o debate sobre não-prisioneiros escrevendo sobre prisioneiros (e Prisioneiras), mas também para o debate sobre não-negros falando sobre negros (e que diferença de perspectiva sobre Dear White People, que vi Ainda poucos episódios, e todas as outras séries que trazem dilemas da vida universitária americana, não acham?).

Falta interpretação de texto (como diria o Sakamoto). Falta percepção. E, acima de tudo, falta empatia.

Como bem colocou Lázaro Ramos, empatia e percepção são trabalhos diários e naturais, um exercício cotidiano para percebermos nosso lugar de fala, quando é o momento da escuta e quais são os pré-conceitos que precisam ser desconstruídos - e construídos, conforme o caso.

A leitura de Prisioneiras me colocou essa discussão: do lugar de fala de um médico Branco, não-prisioneiro, falando sobre a vida de Prisioneiras. Mas também me despertou a reflexão sobre o lugar da escuta. A minha percepção sobre as narrativas de mulheres que vieram de classes sociais, vivências e valores muito diferentes dos meus e acabaram sendo presas (e quantas não cometeram mais Crimes e por mais tempo do que aquelas condenadas, mas estão em casa, seja pelo indulto da prisão domiciliar [sim, estou falando da Adriana Ancelmo], seja por questões da burocracia penal [sim, estou falando da Claudia Cunha]) é muito diferente da percepção de quem já passou/trabalha pelo sistema penal. Me impressionou muito a diferença no número de visitas Entre encarcerados e encarceradas - e sobre como o julgamento moral das famílias é muito mais duro para mulheres do que para homens - mas será que eu ficaria tão espantada se meu lugar de escuta seria outro?

A leitura de Prisioneiras me trouxe muito forte a reflexão do lugar de fala e do lugar de escuta, e adoraria escutar (e falar, rs) com os demais colegas GEBianos sobre este tema. Mas também me chamou muito a atenção os seguintes temas:

  • A importância das facções na organização da prisão feminina;
  • A prisao como local de liberdade para q as mulheres realizem suas fantasias sexuais;
  • Como a política de combate às drogas foi mais cruel com as mulheres; 
  • As facções criminosas como uma "ideologia do crime" mais eficiente para manter a paz nas cadeias e nas comunidades do que o Estado;
  • A prisão de uma filha ou da mãe envergonhe mais do que a de um filho ou do pai, já que a expectativa da sociedade é ver as mulheres “no seu lugar”, obedientes e recatadas. O preconceito sexual faz parte desse contexto. O bandido pode ser considerado mau-caráter, desalmado, perverso, mas ninguém questiona sua vida sexual. A mulher, além dos mesmos rótulos, recebe o de libertina - muito pior nessas comunidades (Posfácio)


Essas foram as questões que mais me chamaram atenção na leitura de Prisioneiras e gostaria de ouvir esses temas debatidos no GEB hoje. Esses foram os temas que - do meu lugar de escuta - mais me chamaram a atenção neste livro.

Nuance e Militância - Cara Gente Branca

O certo seria escrever um textão por episódio de Cara Gente Branca. Mas vou escrever só um textinho mesmo.

O grande mérito dessa série, comparada ao acumulado de produções anteriores sobre o tema, na minha opinião, é abordar as nuances. É comum o racismo aparecer nas artes de maneira romantizada, com situações claras de opressão. Mas em Cara Gente Branca as nuances e sutilezas, tanto do racismo quanto dos conflitos e suas possíveis soluções, são a parte principal do enredo. Elas aparecem em outras obras, mas talvez não tão problematizadas quanto nesta. As diferenças de abordagem e de pontos de vista mesmo sobre a questão racial dentro do movimento e entre suas subdivisões; a questão do amigo/ namorado branco e sua posição; o humor; as interseções da questão racial com gênero e sexualidade. Até mesmo a questão do financiamento das universidades nos EUA é pincelada. Isso tudo é mostrado a partir de situações articulando conflitos individuais e coletivos/sociais. É de fato uma série genial. 

Me chamou atenção o olhar que é dirigido ao namorado branco de Samantha White. Quando ele chega para acompanhá-la numa reunião, ele recebe olhares reprovadores, também dirigidos a ela, por namorar um branco. Isso vira uma questão. Será que todo o branco representa todo o racismo?


Mas o que me salta aos olhos, e eu acho que talvez seja um dos pontos de onde nossa discussão pode partir, é a especificidade da questão racial nos EUA e sua comparabilidade com o racismo à brasileira. O Risério já tinha apontado algo assim, como de certa forma alguns setores brasileiros se baseiam na noção racial americana da “gota de sangue”. E que isto seria artificial e “colonizado” no Brasil, já que aqui a gente trabalha mais com miscigenação. O racismo não é tudo ou nada, segue gradações de acordo com a tonalidade da pele. Outro ponto que merece destaque é que nos EUA a população negra não chega a 15%, e no Brasil ultrapassa 50%. Ainda assim, que universidade brasileira teria negros em número suficiente para criar uma comunidade como a casa onde vivem os personagens principais da série? Será que esse modelo de comunidade se aplica no Brasil, onde a mistura costuma ser o caminho? Será que a mistura ainda é o caminho escolhido pelos brasileiros? A hipótese da miscigenação pode ter perdido força desde Gilberto Freyre; e o racismo tem aparecido com mais força conforme os avanços sociais se consolidaram e, agora, são ameaçados. Na minha opinião, ainda não vivemos o período mais acirrado do racismo brasileiro. Quando o negro está na senzala, longe, é fácil não enxergar o próprio racismo. A distância tampona o conflito e o preconceito. Ele aparece mais quando o negro chega na faculdade, no avião, quando o médico ou o professor universitário são negros.

Da Destruição da Cidadania

De início torci o nariz para a forma um tanto debochada com que o autor se refere a determinadas práticas das presas, como as orações e louvores em voz alta. Depois essa resistência minha foi cedendo, para dar lugar a uma grande admiração. Dráuzio se coloca. Apesar de dizer no epílogo que é avesso a religiões e ideologias, mostra-se extremamente humano, confessando alguns erros e tropeços e, principalmente, colocando as próprias opiniões.

Logo no começo, quando fala da hierarquia e organização dos presídios, e depois quando descreve os “tipos”, salta aos olhos o machismo — não o do autor, que nem vi aparecer tanto, mas do próprio esquema de poder lá dentro. Mesmo num presídio feminino, o machismo se reproduz intensamente. De cara, com o comando masculino da facção que organiza a vida das presas. Talvez isso não seja apenas reprodução de machismo, mas machismo puro e simples. O impressionante de verdade é como as classificações das relações homossexuais seguem padrões machistas e opressores, que determinam as interações sociais dentro do presídio. Quanto mais comportamento macho tem a mulher, mais respeitada. Em paralelo, corre a homofobia no organograma do PCC, que não admite que seus integrantes tenham histórico de comportamento homossexual.

Coirmão do machismo, o autoritarismo é impressionante, como forma de manutenção da ordem. A passagem em que Varella compara o código penal do PCC com o do Estado organizado mostra como o autoritarismo é eficaz em manter a ordem em ambientes fechados, ao mesmo tempo em que a celeridade dos julgamentos e execuções admite erros como parte do processo.

Impossível não articular “Prisioneiras” com “Vigiar e Punir”, de Foucault. Essa articulação se impõe em uma passagem que diz “só um irmão virou cidadão”, ou algo parecido. Essa frase é dita por uma presa que fala que toda a sua família, de uma forma ou de outra, se envolveu com o crime. A frase é emblemática no sentido de colocar claramente que o preso deixa de ser cidadão. A punição deixa de ser relacionada ao ato, apesar de assim ser colocada nos códigos, e passa a ser biográfica (vide Foucault). A passagem pela prisão passa a ser definidora de uma vida ligada ao crime, à exclusão da cidadania. Do lado de fora, a vida é uma merda, tanto antes quanto depois de ser presa. Dentro pode haver alguma organização se as leis severas do comando forem respeitadas.

Além de machismo e autoritarismo, para completar a tríade na organização do comando, entra o capitalismo. Vários pontos-chave no organograma e processos de trabalho do PCC estão em absoluta consonância com o caminho do verdadeiro livre mercado. O controle dos processos pela força, a tendência ao monopólio, formação de carteis e destruição da concorrência. Dráuzio deixa claro que mesmo o que pode ser enxergado como uma contribuição benéfica da instalação do comando do PCC — como a proibição do crack nos presídios e da execução de presos — são na verdade decorrentes de decisões baseadas em estratégias e táticas visando à preservação e ampliação do negócio. Assim como a função nominal do presídio de proteção da sociedade e recuperação do cidadão encobrem vingança e destruição da cidadania, o lema livre concorrência e equilíbrio do mercado escondem vantagens injustas e busca incessante do lucro e do monopólio.

A facção organiza a vida dentro do presídio. O Estado é incapaz de fazê-lo, ou simplesmente não quer. O presídio é o resultado não de um projeto de reintegração das presas ou de proteção da sociedade, mas um dispositivo de vingança punitiva. Num dos últimos capítulos de Vigiar e Punir, Foucault fala sobre o fato de a prisão já ter nascido necessitando de reforma. Desde que nasceu a primeira prisão se fala em reformular o modelo. A partir daí, muito se fala na ineficácia dos presídios e cadeias em geral, mas temos de pensar, como propõe Michel, o Foucault, onde está a verdadeira eficácia das prisões.

A prisão é eficaz em destruir pobres e negros.
A prisão é eficaz em produzir mais criminosos e mais graves.
A prisão perpetua a pobreza e as privações por que passam as famílias pobres.
A prisão encarna o desejo de vingança do brasileiro, criando mais destruição do que a simples morte, pois ela se dissemina pelas gerações.
A prisão, entendida como prolongamento do judiciário, funciona como mais um fator de exclusão do pobre e proteção do rico, pois os códigos — penal, de processo, criminal, implícitos ou explícitos — contêm, também desde o nascimento, uma pletora de detalhes e brechas sujeitos a interpretações diversas a serem interpretadas por juízes de maneiras diferentes a partir de quanto se pode pagar por um bom advogado, da cor da pele e da origem social do acusado ou condenado (papeis que podem já vir fundidos em muitos casos). Ainda em Vigiar e Punir, Foucault evidencia também a eficácia da prisão em valorizar a pequena delinquência, encobrindo a grande delinquência, que pode ser representada pela própria estrutura excludente da sociedade, das leis injustas e de seu cumprimento e interpretações ainda mais injustos, do controle do poder pelo capital. A realidade mostra isso quando um helicóptero com meia tonelada de maconha fica sem dono, e um zé-povinho pego uma qualquer quantidade pode ser considerado traficante e preso, com as consequências biográficas que a experiência no cárcere implica.

A obra gebiana à qual a comparação com Prisioneiras aparece mais diretamente é “O Dono do Morro”, de Misha Glenny. A favela, assim como o presídio, está sujeita aos desmandos de uma organização de poder “paralelo”. A diferença é que no ambiente fechado do presídio o controle é forte o suficiente para impedir a entrada de crack. Pode ser que em algumas favelas haja proibição ao crack eficaz, mas não sei.

Comparando os autores, o relato jornalístico e cuidadosamente distante de Glenny ao descrever a história de Nem, mesmo com seus muitos adjetivos, contrasta com a maneira pessoal com que Dráuzio relata sua própria experiência como médico no meio das presas. Varella não só descreve as situações, mas conta suas mancadas, erros de juízo e, acima de tudo, opiniões. Diferentemente de Glenny, Dráuzio critica frontalmente a política de guerra às drogas, com argumentos fortes e colocados de maneira muito compreensível.

No epílogo de Prisioneiras, o segmento que poderíamos chamar de mais autoral do livro, Dráuzio coloca a própria história, mesclando-a com uma síntese absolutamente clara do que se sabe sobre os fatores de risco ligados ao aumento da criminalidade e da futilidade das medidas tomadas pelo Estado até o momento para lidar com o problema, não só da violência, mas também do aumento da população encarcerada. O epílogo é a pérola do livro. Além de problematizar as situações sociais, econômicas e culturais, no plano macro, Dráuzio se coloca no particular de sua condição de médico, e mesmo na singularidade de sua vivência com cada presa, ouvindo as histórias e entendendo, ou tentando entender como estabelecer algum contato de qualidade com aquelas pessoas para exercer algum poder de cura, melhora ou alívio de sofrimento. 


segunda-feira, 29 de maio de 2017

O Estigma.

Estigma. O estigma teve diversos significados ao longo do tempo, nos dias atuais pode refletir "a situação do indivíduo que esta inabilitado para a aceitação social plena" conforme definido por Goffman. Ainda de acordo com Goffman, a sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e seus respectivos atributos. Assim, formam-se atributos estruturais de uma "identidade social" que incluem elementos físicos, comportamentais e etc., que acabam por pré-conceber a visão que temos uns dos outros. Inconscientemente (ou  não), fazemos isso muitas vezes, reduzindo os desconhecidos a estigmas que carregamos desde cedo pela nossa formação.

Moonlight trata de dois estigmas da sociedade atual: o negro e o gay. No caso do personagem, ambos os estigmas são sentidos de formas diferentes. Como negro, nascido em uma comunidade pobre , é muito difícil fugir da sua realidade e consequentemente do estigma que a sociedade impõem. Como gay, engolir seus desejos mais profundos por outros homens é tentar fugir do segundo estigma que a sociedade iria impor a ele.

No filme a 13a emenda, fica muito claro que a sociedade americana nunca quis incluir o negro, já o colocando como criminoso desde que a escravidão foi abolida. Mais de 100 anos depois, esse estigma se alastrou e séries como Dear White People, mostram o quanto perverso e cruel essa identidade social traçado pelo homem branco  pode (continuar) ser nos EUA.

No Brasil não foi elaborada uma 13a emenda, mas o negros não foram incluídos, sendo marginalizados ao longo de todo esse tempo. Empobrecido, viu seu futuro estar atrás das grades, em condições péssimas de moradia e quase zero assistência de um Estado que muitas vezes é o seu próprio algoz.

Olhar em volta e saber que há estigmas em tudo e todos, pela simples razão das sociedades terem uma obsessão em categorizar aquilo que é diferente é pensar que ainda estamos mais perto de situações como o nazismo, já que o número de mortes de negros e gays no Brasil e nos EUA devem estar chegando perto (e deve ultrapassar) aos mortos durante o tempo das trevas na Alemanha.

Se você for um gay, branco com dinheiro… está tudo (quase) certo. Para quem é branco, não tem empatia que salve… a verdade é que nunca saberemos o que é ser negro, o que é ser marginalizado, o que é ter que ser perfeito o tempo todo pra mostrar o seu valor (e mesmo assim, muitas vezes ser rejeitado).

E, mais do que isso, existem negros (e gays) sentindo vergonha do que são e não conseguindo assumir sua identidade, ou pior, se comportando como brancos (e héteros) para se sentirem mais aceitos. Existe uma falsa ideia de que avançamos. Mas como? Se as mortes aqui e nos EUA não param de crescer?


O que existe é a continuidade de uma luta, o que existe são mais meios existentes para que essas causas possam ser ouvidas.  Contudo, ainda estamos muito longe dos estigmas (de qualquer tipo) serem uma barreira invisível de nos enxergarmos enquanto seres-humanos.