Esse breve ensaio que vocês
começam a ler surge a partir de uma leitura crítica do livro “Formação
Econômica do Brasil”, do economista Celso Furtado (CF).
Este livro, que já nasceu sendo
um clássico, se propõe a explicar as condições do desenvolvimento brasileiro
até meados da década de 1950, sob um prisma histórico e econômico.
‘Formação Econômica do Brasil’
(FEB), como toda obra clássica que interpreta o nosso país, pode ser
reinterpretado através de seus vícios e de suas virtudes. Ambos estão lá no
texto de CF. Mas se você é fã do referido autor, tome cuidado: do ponto de
vista deste que ora vos escreve, as críticas são muito mais numerosas e graves
do que os elogios; vou começar por este últimos, então. Cabe ressaltar, antes
de começarmos, que estas impressões estão baseadas apenas na leitura de FEB,
desconsiderando os outros aspectos da vida de CF. Todas as vezes em que parecer
que há um julgamento a respeito de CF, este julgamento é sempre a respeito de
CF como autor de FEB.
Como pontos positivos, pode-se
destacar a seriedade, a concisão e a audácia do texto de CF: realmente, a
mistura desenvolvida pelo autor entre a história e a economia, num movimento
dicotômico e pendular, produz um texto de caráter inovador. Por isso mesmo é
que se trata de um texto seminal.
Em relação ao conteúdo de sua
obra, é relevante o capítulo sobre a economia mineira do século XVIII. Naquele
momento, Minas Gerais passou a ser o centro do país, e pela primeira vez a
economia se integrava internamente. O sul e o Nordeste forneciam gado e
mão-de-obra para a atividade mineira. Muito embora esse entrelaçamento das
partes tenha sido perdido à medida que a economia dos metais preciosos de Minas
Gerais entrava em declínio, foi a primeira vez, de forma efetiva, que os
fatores de produção se integravam regionalmente. Essa integração ocorreu
novamente quando o centro dinâmico do país se modifica para o Vale do Paraíba e
se concentra no Estado de São Paulo. É a São Paulo, e não mais a Minas Gerais,
que passam a acorrer os fluxos de pessoas, de capitais e de mão-de-obra. Embora
CF não lance mão dessa hipótese de forma marcada em seu ensaio, creio que um
dos fatores que tenha tido importância para a consolidação do território
brasileiro em um único país (e não em vários, como foi o caso da América
Espanhola) foi justamente a criação de um centro dinâmico de economia regional
dentro do próprio território: não o de São Paulo, pois ao final do século XIX
já tínhamos um país independente, mas o de Minas Gerais, no século XVIII. Ainda
que as bandeiras dos séculos XVI e XVII tenham sido importantes para que o
Brasil tenha deixado de ser apenas uma união de portos marítimos em comunicação
direta com Portugal, foi somente no século seguinte que se pôde operar uma
verdadeira união econômica entre os territórios do norte e do sul do país
através de um centro dinâmico na região central do Brasil.
O momento em que CF aponta como
se deu o processo de triangulação comercial entre os EUA e as Antilhas é também
muito didático e esclarecedor. Ficou claro como os EUA puderam se constituir
numa espécie de colônia especial e fazer de suas colônias vizinhas suas
próprias colônias, sob vista grossa da Inglaterra.
Os elogios acabam por aqui. Começarão
as críticas.
CF escreve de um jeito esquisito.
O uso excessivo de expressões como ‘Sem embargo’, ‘inversões’ (no sentido de
investimentos) e ‘inversionistas’ (no sentido de investidores) dá a ideia de
que estamos lendo uma tradução mal feita de um texto em espanhol. Com o tempo,
evidentemente, acabamos nos acostumando.
Uma das coisas mais ditas sobre
FEB é que se trata de um livro que apresenta uma visão equilibrada entre
história e economia (eu mesmo disse isso nos primeiros parágrafos). Ocorre que
se trata de equilíbrio apenas se considerarmos uma média aritmética de todo o
conteúdo do livro. FEB começa numa pegada mais histórica, e portanto, de leitura
mais agradável (para o meu gosto). Aos poucos, vão entrando uma visão e um
jargão mais econômicos, de forma que lá pelo meio do livro temos, de fato, esse
suposto equilíbrio. Do meio para o final, entretanto, CF escancara seu economês
para os leitores. Dessa forma, um livro que se propõe a ser para iniciantes,
engana de forma deliberada aqueles que se propõem a lê-lo, pois começa
simulando uma facilidade de leitura e termina numa prosa árida, difícil,
fastidiosa. Um texto para iniciados disfarçado de texto para iniciantes: um
engodo.
Outro aspecto completamente
irritante em FEB é a quantidade de elucubrações acerca de algo que não ocorreu.
O recurso do ‘E se...’, ou do futuro do pretérito, é um exercício interessante
em textos históricos, mas deve ser utilizado com muita cautela, muita
parcimônia. Qualquer pessoa que tenha noções mínimas de historiografia sabe que
esse é um recurso ardiloso, uma vez que se as coisas tivessem tomado outro rumo
na história, os fatos subsequentes se dariam de uma outra forma que é, por
definição, imprevisível, insondável. Novamente, trata-se de um recurso
interessante para explicar alguns fenômenos, mas CF se utiliza deles não apenas
de forma exaustiva, mas de maneira completamente irresponsável, ao encadear
mais e mais elementos a fatos que não ocorreram. ‘Se tivesse ocorrido A em vez
de B, então teríamos tido C, e portanto, D, e, portanto, E, o que nos levaria
inevitavelmente a F.’ Nao há como levar a sério esse tipo de construção. Vejam
como é ruim no texto do próprio, no capítulo 2, ‘Fatores do êxito da empresa
agrícola’: “Não fora o retrocesso da
economia espanhola – particularmente acentuado no século XVII – e a exportação
de manufaturas de produção metropolitana para as colônias teria necessariamente
evoluído, dando lugar a vínculos econômicos de natureza mais complexa que a
simples transferência periódica de um excedente de produção sob a forma de
metais preciosos. O consumo de manufaturas europeias pelas densas populações da
meseta mexicana e do altiplano andino teria criado a necessidade de uma
contrapartida de exportações de produtos locais, seja para consumo na Espanha,
seja para reexportação. Um intercâmbio desse tipo provocaria necessariamente
transformações nas estruturas arcaicas das economias indígenas e possibilitaria
maior penetração de capitais e técnica europeus. Houvesse a colonização
espanhola evoluído nesse sentido, e muito maiores teriam sido as dificuldades
da empresa portuguesa para vencer.”
Existem ainda outros elementos
ruins no texto de Celso Furtado. O conceito que ele tem acerca do
desenvolvimento sustentável é particularmente destrutivo. No capítulo 28, ‘A
defesa do nível de emprego e a concentração de renda’, CF postula: “A situação pode ser perfeitamente
assimilada à de uma indústria extrativa, pois o esgotamento de uma reserva
mineral representa a alienação de um patrimônio cuja ausência poderá ser
lamentada pelas gerações futuras. Mas, se o aproveitamento da reserva esgotável
se faz para dar ‘início’ a um processo de desenvolvimento econômico, não
somente a geração presente mas também as futuras - que receberão a reserva
transformada em capital reprodutível - serão beneficiadas.” É razoável
supor que, uma vez que o texto foi escrito na década de 1950, ainda prevalecia
uma visão desenvolvimentista que suplantava uma visão mais holística a respeito
dos recursos naturais. Mas é importante ressaltar que CF veio a falecer em 2004
e que, durante o período do lançamento do livro até sua morte, efetuou pequenas
modificações no texto. Donde podemos concluir que se CF optou por não rever
seus conceitos acerca do desenvolvimento com base na extração dos recursos
naturais sem contrapartidas, certamente
o fez porque não encontrou relevância na questão.
Na esteira dos problemas do texto
de FEB podemos citar também o ponto de vista. CF parece se propor sempre a defender o ponto de vista dos
donos dos meios de produção, que tomaram, muitas das vezes, decisões
estapafúrdias ao longo da história do Brasil. Dessa forma, CF consegue
articular uma visão que defende a política de defesa da produção do café, na
qual os fazendeiros destroem boa parte da produção com vistas à manutenção do
lucro. Igualmente, consegue defender também a politica dos mesmos fazendeiros
que não transformam os lucros obtidos nas suas propriedades em aumento de
salários, provocando concentração de renda. O argumento é interessante: não
repassando os aumentos de lucro dos sucessos, o fazendeiro também não repassa
aos salários de seus empregados os prejuízos decorrentes do fracasso na
produção/venda de café, o que garante o nível de empregos. Dessa forma, CF
consegue nos fazer crer que uma postura concentradora de renda é, na verdade,
uma política de proteção à economia do Brasil.
A verdade é que CF é muito hábil
na construção de um halo de respeito em torno de si. Num texto de poucos
adjetivos, transmite a ideia de sobriedade e, sobretudo de imparcialidade em
torno de suas ideias, como se o processo histórico-econômico estivesse
completamente desacoplado de uma visão ideológica, isto é, como se fosse
possível contar a história sem tomar partido. Essa neutralidade cai por terra
ao analisarmos o uso da adjetivação que CF realiza em FEB, que é pouca, mas
suficiente para que consigamos entender o seu viés. Isto fica particularmente
evidente no tratamento dado por CF à questão dos negros.
Esta não é uma questão central no
trabalho de CF. Isso se justifica pelo recorte dado ao seu trabalho: uma
abordagem histórica e econômica, que passa ao largo das questões sociológicas.
Mas a adjetivação e o julgamento realizado por CF em FEB mostra que essa
discussão não passa tão ao largo assim.
Logo no capítulo 6,
‘Consequências da penetração do açúcar nas Antilhas’, CF coloca uma frase que
soa no mínimo esquisita: “A pessoa
interessada assinava um contrato na Inglaterra, pelo qual se comprometia a
trabalhar para outra por um prazo de cinco a sete anos, recebendo em
compensação o pagamento da passagem, manutenção e, ao final do contrato, um
pedaço de terra ou uma indenização em dinheiro. Tudo indica que esta gente
recebia um tratamento igual ou pior ao dado aos escravos africanos”. A
primeira pergunta que se faz é: Ora, como é possível dizer, sem incorrer em uma
afirmação temerária, que os brancos ingleses que emigraram para os EUA possuíam
uma condição de vida pior do que a dos negros brasileiros? Como é possível
afirmar que alguém que trabalha num regime de servidão tendo em vista a sua
liberdade e o seu direito à propriedade em, no máximo, sete anos tem uma
condição pior do que aquele que trabalha sabendo que permanecerá como escravo
até o fim dos seus dias, sem direito à liberdade, à propriedade, e tendo como
certo que sua condição de escravo será transmitida aos seus descendentes?
No capítulo 7, ‘Encerramento da
etapa colonial’, CF faz uma das afirmações mais abjetas de todo o seu texto: “A escravidão demonstrou ser, desde o primeiro momento, uma condição
de sobrevivência para o colono europeu na nova terra.” É completamente
INADMISSÍVEL que um texto escrito em 1950 ainda se aferroe à inevitabilidade do
regime escravocrata. A escravidão da população negra na colonização das
Américas é um crime hediondo contra a Humanidade e, como tal, deve ser tratado.
Fico imaginando que julgamento teria um texto que propusesse também como
inevitável o lançamento da bomba atômica norte-americana sobre Hiroshima ou o
holocausto contra o povo judeu provocado pelo regime nazista alemão no final da
primeira metade do século XX, ou ainda, a tortura praticada pelo Estado
brasileiro contra os manifestantes políticos dissidentes na década de 1970. São
todos igualmente crimes contra a Humanidade e, por definição, indefensáveis,
injustificáveis, e que devem ser punidos quando possível no tempo histórico, e
indenizados a qualquer tempo. Nesse sentido, não deveria ser mais possível que
um texto com uma declaração desse tipo, que presta um desserviço aos direitos
humanos e, em especial, à dos negros escravizados e de seus descendentes
prejudicados pela escravidão, estivesse ainda em circulação sem qualquer tipo
de nota explicativa / justificativa / pedido de desculpas / etc. FEB, do jeito
que está, com essa frase colocada sem conflitos no sétimo capítulo, é aplaudido
e referenciado por estudantes de economia, que assimilam essa ideologia
travestida de neutralidade.
A partir do sétimo capítulo, CF
avança numa discussão supostamente neutra, mas que atua em um forte sentido da
desumanização negra, isto é, de não encarar a população negra como população,
como gente, como seres humanos com os quais se deve preocupar na condição de
humanos e não na condição de máquina ou mercadoria.
No capítulo 8, ‘Capitalização e
nível de renda na economia açucareira’, CF coloca: “É quando a rentabilidade do negócio está assegurada que entram em
cena, na escala necessária, os escravos africanos: base de um sistema de
produção mais eficiente e mais densamente capitalizado.”. A pergunta que
fica é: qual é a escala necessária? Necessária para quem? Para que tipo de
economia? Vale lembrar que é a população negra que é comercializada e traficada
na condição de escravos. ‘Entra em cena’ é o tipo de construção linguística que
retira a culpa daqueles que sujaram as mãos.
Ainda no capítulo 8, CF avança na
construção de sua desumanização negra, ao encará-los sob diversas perspectivas.
Primeiro, apenas como capital, como requisito para produção: “Os gastos monetários de reposição, que cabe
deduzir para obter o montante da renda líquida, podem ser estimados grosso modo
em 110 mil libras: 50 mil libras para reposição dos escravos – admitindo-se uma
vida útil média de oito anos, 15 mil escravos a 25 libras por cabeça – e 60 mil
libras para a parte de equipamento importado – admitindo-se que a terça parte
do capital fixo (inclusive escravos) estivesse constituída por equipamentos
importados e que estes tivessem uma vida útil média de dez anos.”. Mais à
frente, CF compara os negros aos animais: “Estima-se
que o número total de bois existentes nos engenhos era da mesma ordem do número
de escravos. Por outro lado, admite-se que um boi valia cerca da quinta parte
do valor de um escravo e que sua vida de trabalho era de apenas três anos.”. Em
um momento seguinte do mesmo capítulo, CF compara os negros às instalações de
uma fábrica: “A mão-de-obra escrava pode
ser comparada às instalações de uma fábrica: a inversão consiste na compra do
escravo e sua manutenção representa custos fixos. Esteja a fábrica ou o escravo
trabalhando ou não, os gastos de manutenção terão de ser despendidos. Demais,
uma hora de trabalho do escravo perdida não é recuperável, como ocorreria no
caso de uma máquina que tivesse de ser impreterivelmente abandonada ao final de
um dado número de anos. É natural que, não podendo utilizá-la continuamente em
atividades produtivas ligadas diretamente à exportação, o empresário procurasse
ocupar a força de trabalho escravo em tarefas de outra ordem, nos interregnos
forçados da atividade principal.”.
O processo de desumanização negra
brasileira é colocado durante o texto de maneira paulatina. Até aqui, ainda se
pode argumentar em favor de CF que ele, pessoalmente, não encara o negro como
um fator de capital, mas que se refere às condições históricas de um negro
escravizado, e que não faz nada mais que retomar a maneira pela qual este negro
era encarado à época. Uma frase do próprio capítulo 8 é capaz de desmentir esta
hipótese. CF, que raramente se utiliza de adjetivos na construção de seu
discurso, escreve, como uma nota de rodapé: “Já
o jesuíta Antonil, nos seus sábios conselhos aos senhores de engenho, no começo
do século XVIII, recomendava que ‘aos feitores de nenhuma maneira se deve
consentir o dar coice principalmente na barriga das mulheres, que andam
pejadas, nem dar com pau nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes
, e podem ferir na cabeça a um escravo de préstimo que vale muito dinheiro e
perdê-lo’”. Nesta frase, CF cita o jesuíta Antonil, mas o julgamento de que
este é um ‘sábio’ conselho é uma construção do próprio autor. Esta noção de que
existe alguma sabedoria em não espancar um negro escravizado até à morte
reforça a posição pessoal do autor de que o negro não deve ser encarado como uma
pessoa, como um ser humano, mas sim como um elemento absolutamente
desumanizado, como um fator de capital, um boi ou as instalações de uma
fábrica.
O processo de desumanização
conduzido por CF em FEB piora ao longo do texto. Após essa parte inicial do livro,
CF insiste em utilizar o termo ‘estoque de escravos’. Em uma das passagens em
que isso fica mais evidente, temos o trecho do capítulo 21, ‘O problema da
mão-de-obra – oferta interna potencial’: “É
interessante observar a evolução diversa que teve o estoque de escravos nos
dois principais países escravistas do continente: os EUA e o Brasil. Ambos os
países começaram o século XIX com um estoque de aproximadamente 1 milhão de
escravos.”
Vez por outra, CF ameaça fazer um
mea culpa. No capítulo 19, ‘Declínio
a longo prazo do nível de renda: primeira metade do século XIX’ temos o trecho:
“Admitamos que a população em 1850 seria
de 7 milhões, inclusive 2 milhões de escravos, os quais não se têm em conta na
formação da renda per capita.”. Nesse trecho, CF concede às pessoas negras
o direito de serem computadas na população brasileira. É uma pena que essa
concessão não dure mais do que uma linha porque, logo na sequência, o autor não
os considera para o cálculo da renda per
capita.
A população negra brasileira,
aliás, toda a população negra americana que estava submetida ao regime
escravista não se conformava ao papel desumanizado que a população europeia a
submetia. Vez por outra eclodiam algumas revoluções que tinham como mote a
liberdade do povo negro americano. No Brasil, podemos citar o Quilombo dos
Palmares e a Revolta dos Malês como exemplos desses movimentos. Um dos mais
intensos relacionados a essa temática e, possivelmente uma das revoltas
populares de maior ousadia na história das Américas seja a da revolução
haitiana, ocorrida em fins do século XVIII. Os negros escravizados do Haiti se
rebelaram contra o regime escravocrata e não apenas proclamaram a sua liberdade,
como também proclamaram a república do Haiti, a primeira colônia a se tornar
independente nas Américas. No capítulo 16 de FEB, ‘O Maranhão e a falsa euforia
do fim da época colonial’, CF cita a revolução haitiana: “Em 1789 entrou em colapso a grande colônia açucareira francesa que era
o Haiti. Nesse pequeno território estavam concentrados quase meio milhão de
escravos que se revoltaram e destruíram grande parte da riqueza ali acumulada.”
CF utiliza o termo ‘entrou em colapso’, que é dotado de uma certa frieza e
de uma distância higiênica em relação aos movimentos populares. A única coisa
que CF é capaz de enxergar é que, neste período, os escravos ‘destruíram grande
parte da riqueza’. Ora, destruíram uma riqueza que era concentrada nas mãos de
poucos homens brancos e que, de nenhuma forma se convertia em melhores
condições de vida para a população negra haitiana, que compunha a vasta maioria
dos habitantes da ilha. É interessante notar como CF está sempre predisposto a
assumir o lado daqueles que são proprietários, dos mais ricos. Os oprimidos
quando se rebelam ‘destroem riqueza’. Os proprietários de café, por outro lado,
quando, literalmente, destroem boa parte da sua produção com vistas à proteção
do mercado estão ‘mantendo o nível dos empregos’. Dois pesos e duas medidas,
como pode ser visto ao longo de todo o livro.
No capítulo 21, ‘O problema da
mão-de-obra – oferta interna potencial’, CF mostra que seu problema não apenas
com os negros. Aqui ele faz uma afirmação sobre os ‘caboclos’, completamente
sem eira nem beira: “Tem-se repetido
comumente no Brasil que a causa dessa agricultura rudimentar está no ‘caboclo’,
quando o caboclo é simplesmente uma criação da economia de subsistência. Mesmo
que dispusesse de técnicas agrícolas muito mais avançadas, o homem da economia
de subsistência teria que abandoná-las, pois o produto de seu trabalho não
teria valor econômico. A involução-das técnicas de produção e da forma de
organização do trabalho com o tempo transformariam esse homem em ‘caboclo’”. Não
fica claro ao que ele se refere quando utiliza a palavra ‘caboclo’. CF parece
argumentar que ninguém nasce caboclo, torna-se um, mas é realmente impossível
entender o que ele quer dizer; Essa ausência de explicação sobre os caboclos
parece ter mais a ver com as deficiências estruturais do livro, em especial a
uma certa falta de coesão, do que com algum preconceito claramente direcionado.
Se FEB fosse encarado como uma novela, essa parte na qual ele se refere aos
caboclos certamente poderia ser encarada como uma ‘ponta solta’.
Voltando à questão central de
nossa discussão, o capítulo 22, ‘O problema da mão-de-obra – a imigração
europeia’, é particularmente importante para entender que FEB desenvolve o
processo de desumanização negra em oposição a uma valorização da população
branca. Vejam o trecho a seguir: “As
colônias criadas em distintas partes do Brasil pelo governo imperial careciam
totalmente de fundamento econômico; tinham como razão de ser a crença na
superioridade inata do trabalhador europeu, particularmente daqueles cuja ‘raça’
era distinta da dos europeus que haviam colonizado o país. Era essa uma
colonização amplamente subsidiada. Pagavam-se transporte e gastos de instalação
e promoviam-se obras públicas artificiais para dar trabalho aos colonos, obras
que se prolongavam algumas vezes de forma absurda. E, quase sempre, quando,
após os vultosos gastos, se deixava a colônia entregue a suas próprias forças,
ela tendia a definhar, involuindo em simples economia de subsistência. Caso
ilustrativo é o da colonização alemã do Rio Grande do Sul. O governo imperial
instalou aí a primeira colônia em 1824, em São Leopoldo, e, depois da guerra
civil, o governo da província realizou fortes inversões para retomar e
intensificar a imigração dessa origem. Contudo, a vida econômica das colônias
era extremamente precária, pois, não havendo mercado para os excedentes de
produção, o setor monetário logo se atrofiava, o sistema de divisão do trabalho
involuía e a colônia regredia a um sistema econômico rudimentar de
subsistência. Viajantes europeus que passavam por essas regiões se surpreendiam
com a forma primitiva de vida dos colonos e atribuíam os seus males às leis
inadequadas do país ou a outras razões dessa ordem. A conseqüência prática de
tudo isso foi, entretanto, que se formou na Europa um movimento de opinião
contra a emigração para o império escravista da América e já em 1859 se proibia
a emigração alemã para o Brasil.” Este é um trecho em que CF se esforça
para se manter neutro. É possível pensar que esse trecho alude a uma certa
compaixão pelos colonos, mas é tudo feito de maneira bastante difusa. Alguns
parágrafos depois, CF explicita que, sim, trata-se mesmo de uma relação
fortemente empática pelos colonos, recheada de pena, dó e comiseração: “Com efeito, o custo real da imigração
corria totalmente por conta do imigrante, que era a parte financeiramente mais
fraca. O Estado financiava a operação, o colono hipotecava o seu futuro e o de
sua família, e o fazendeiro ficava com todas as vantagens. O colono devia
firmar um contrato pelo qual se obrigava a não abandonar a fazenda antes de
pagar a dívida em sua totalidade. É fácil perceber até onde poderiam chegar os
abusos de um sistema desse tipo nas condições de isolamento em que viviam os
colonos, sendo o fazendeiro praticamente a única fonte do poder político.”. É
impressionante perceber como CF se compadece dos colonos europeus no sul do
país, falando em ‘abusos’ do sistema. Em suas pouco mais de 300 páginas, FEB em
nenhum momento se refere ao sistema escravista como um sistema de abusos, em
nenhum momento se refere ao negro brasileiro como um ser humano que foi sistematicamente
abusado ao longo de mais de três séculos de escravidão.
O capítulo 24, ‘O problema da
mão-de-obra – eliminação do trabalho escravo’ serve àqueles que, até o presente
momento, tinham alguma dúvida sobre real
posicionamento de CF em relação à questão dos negros em FEB. Neste capítulo,
suas posições ficam ainda mais claras. É natural que, por se tratar de um
assunto envolto em muitos tabus, CF começa por fazer o seu mea culpa prévio: “Mais que
em qualquer outra matéria, nesta dificilmente se conseguem separar os aspectos
exclusivamente econômicos de outros de caráter social mais amplo. Constituindo
a escravidão no Brasil a base de um sistema de vida secularmente estabelecido,
e caracterizando-se o sistema econômico escravista por uma grande estabilidade
estrutural, explica-se facilmente que para o homem que integrava esse sistema a
abolição do trabalho servil assumisse as proporções de uma ‘hecatombe social’.
Mesmo os espíritos mais lúcidos e fundamentalmente antiescravistas, como Mauá,
jamais chegaram a compreender a natureza real do problema e se enchiam de susto
diante da proximidade dessa ‘hecatombe’ inevitável. Prevalecia então a idéia de
que um escravo era uma ‘riqueza’ e que a abolição da escravatura acarretaria o
empobrecimento do setor da população que era responsável pela criação de
riqueza no país.”. Este mea culpa
funciona de forma muitíssimo semelhante à construção frasal das pessoas
racistas que começam suas falas por: ‘Não sou racista, mas’ e, uma vez feito
esse preâmbulo, descascam toda sorte de impropriedades nos termos seguintes. CF
opera da mesma forma. Dessa forma, após seu mea
culpa prévio, ele coloca: “As
vantagens que apresentava o trabalhador europeu com respeito ao ex-escravo são
demasiado óbvias para insistir sobre elas.” Misturando seus preconceitos
com os erros de coesão já mencionados, CF nos brinda com um período em que diz
que não irá dizer alguma coisa. CF deixa seus leitores encalacrados em um
sistema de obviedades que só faz sentido para o próprio autor. Alguns
parágrafos depois, CF parece acenar com algumas pistas sobre o assunto: “O homem formado dentro desse sistema social
está totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase
não possuindo hábitos de vida familiar, a idéia de acumulação de riqueza é
praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente
suas ‘necessidades’. Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o
bem inalcançável, a elevação de seu salário acima de suas necessidades - que
estão definidas pelo nível de subsistência de um escravo - determina de
imediato uma forte preferência pelo ócio.” Esta afirmação é de uma
estreiteza intelectual que chega a surpreender. Será que CF, douto, economista
respeitado, não sabia que os escravos mantinham seus vínculos afetivos e
familiares dentro das senzalas? Será que ele não sabia que muitos escravos
acumulavam riquezas ao longo de uma vida inteira no intuito de comprar suas
alforrias? É muita ingenuidade para não considerarmos a forçosa hipótese que a
cada linha se nos apresenta de maneira renovada: trata-se mesmo de má-fe. Esta
má-fé pode ser observada em um dos últimos parágrafos do capítulo: “Cabe tão-somente lembrar que o reduzido
desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a
segregação parcial desta após a abolição, retardando sua assimilação e
entorpecendo o desenvolvimento econômico do país. Por toda a primeira metade do
século XX, a grande massa dos descendentes da antiga população escrava
continuará vivendo dentro de seu limitado sistema de ‘necessidades’,
cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformações econômicas do país.”
CF parece enxergar que o Brasil é um país feito por brancos e para brancos.
Uma vez que a população negra é retirada da sua condição desumanizada a partir
da abolição da escravatura, CF, que até então os vinha encarando como máquinas,
bois e instalações fabris, não consegue alcançar a condição humana dos negros
brasileiros a partir do século XX e opta, por fim, por desconsiderá-los de todo
o processo econômico vindouro. CF, como um arauto do retrocesso, re-desumaniza
os negros: não é capaz de encará-los como seres humanos e como cidadãos.
Mais para o final do livro, CF,
que não é mais capaz de abordar a questão dos negros, por não conseguir
humanizá-los, demonstra uma estranha e suspeita simpatia pela região sul do
país. No capítulo 29, ‘A descentralização republicana e a formação de novos
grupos de pressão’, CF afirma: “A
organização social do sul transformou-se rapidamente, sob a influência do
trabalho assalariado nas plantações de café e nos centros urbanos, e da pequena
propriedade agrícola na região de colonização das províncias meridionais. As
necessidades de ação administrativa no campo dos serviços públicos, da educação
e da saúde, da formação profissional, da organização bancária, etc. no sul do
país são cada vez maiores. O governo imperial, entretanto, em cuja política e
administração pesam homens ligados aos velhos interesses escravistas,
apresentava escassa sensibilidade com respeito a esses novos problemas.”.
Para CF, existe uma necessidade grande de serviços públicos como educação e
saúde no sul do país. Essa comiseração e essa empatia são exatamente as mesmas dedicadas
à colônia de São Leopoldo e aos abusos sofridos por todos os imigrantes brancos
que chegaram da Europa para se instalar no sul do país.
Existe um respeito muito grande
ao sofrimento e às necessidades dessa parcela da população que vive no sul do
Brasil. Argumentar que é porque se trata de pessoas brancas pode parecer uma
simples coindicência, mas CF, astuto, não opera por coincidências. No último
capítulo do livro, o capítulo 36, ‘Perspectiva dos próximos decênios’, CF diz: “Por uma feliz circunstância, a região
riograndense - culturalmente a mais dessemelhante das demais zonas de
povoamento - foi a primeira a beneficiar-se da expansão do mercado interno
induzida pelo desenvolvimento cafeeiro.”. Neste trecho, a simpatia pela
região sul fica mais explícita por se tratar de uma circunstância ‘feliz’,
justamente em um texto que utiliza os adjetivos de forma muito parcimoniosa. Em
uma frase mais adiante, CF mostra que a suspeita que se possa ter a respeito da
sua simpatia pela região sul ter a ver com questões étnicas é uma suspeita
verdadeira, isto é, uma constatação: “O
Rio Grande do Sul praticamente nao conheceu economia escravista e na formação
de sua população o contingente português foi menor que nas demais regiões do
pais, até fins do século XIX.”
Através dessa desconstrução do
discurso de CF em FEB, podemos perceber que se trata de um texto racista, e que
explora esse racismo pelas vias explícitas e também pelas vias tácitas, pelos
não-ditos, pelas entrelinhas.
É importante ressaltar, mais uma
vez, que essa é uma análise de CF no papel de autor de FEB. Não é função deste
texto julgar o papel de CF como Ministro, como professor ou como político.
Portanto, no exercício deste papel, como autor de FEB, é sim, possível utilizar
a expressão ‘arauto do retrocesso’ ao
se referir a CF, como foi feito nesse texto, de maneira contextualizada.
Mais uma vez, é necessário reforçar
que FEB tem muitas virtudes, o que deixam claro o imenso número de cópias
vendidas e a adoção maciça deste livro nas escolas de economia.
Entretanto, colocar a desumanização
negra no centro do debate, ou ainda, mais do que isto, colocar as questões
referentes à abordagem que se faz do negro hoje, em textos considerados seminais
para as ciências humanas, sociais e sociais aplicadas é não apenas necessário
como um dever de todos aqueles que se propõem a aprender e a ensinar de forma
crítica.
É de se supor que a maioria das
pessoas que travam contato com FEB lê este livro procurando outras coisas e se
atém puramente àquilo que procura: isto é, as questões econômicas propriamente
ditas, o balanço de capitais, as contas públicas, o desenvolvimento industrial,
etc.
Mas as questões ideológicas estão
lá. Pode-se falar do racismo em especial, mas também estão lá a promoção do
capitalismo, a defesa dos interesses de uma burguesia industrial nacional, etc.
A despeito de toda ideologia contida no livro, a despeito do racismo destilado
em FEB do início ao fim, contudo, a noção que se tem é a de um livro
supostamente imparcial, como se supõem ser os livros ditos seminais. A ideologia
nos é inculcada não nos materiais abertamente panfletários, mas naqueles que
supostamente são ‘detentores da verdade’, isto é, materiais aos quais se devota
um certo respeito e algum grau de veneração. É preciso descontrui-los para
mostrar que, por detrás dessa suposta imparcialidade existem premissas, existe
um discurso prévio e um discurso construído que são eivados de ideologia.
Nesse sentido, é muito importante
que o debate acerca das questões étnico-raciais (e também as de gênero, de
sexualidade, etc...) sejam abordadas não apenas de maneira direta, mas também
de forma transversal. Seria interessante que essas questões pudessem ser
abordadas não apenas em grupos que discutem as questões raciais, mas também
entre aqueles que estão cursando seu primeiro ano da faculdade de economia, por
exemplo.
Por fim, vale lembrar que o
racismo é crime inafiançável, de acordo com o artigo 5º da Consitutição Federal
de 1988. Portanto, para que nunca mais as pessoas se arroguem ao direito de
encarar a escravidão como uma inevitabilidade histórica, em vez de a encararem
como o crime hediondo contra a humanidade que realmente foi, gostaria de deixar
como reflexão e como bandeira as seguintes palavras: Menos CF, mais CF88!