segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Um Bode Preto na Sala ou Os Fossos e Pontes de Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado

O livro é claro a maior parte do tempo e tenta ser restrito aos aspectos econômicos tanto quanto possível. É bem verdade que certos detalhes técnicos de economês eu não pesquei, mas não acho que tenha prejudicado a compreensão geral do livro. Senti falta de um escopo mais amplo. De considerações políticas e sociais. Senti falta de tomada de opinião e de juízo de valor.

Fiquei especialmente incomodado com a aparente indiferença com que ele aborda a questão da escravidão. Manter um distanciamento, segurando o foco na economia de algo tão desumanamente humano como a escravidão coloca um bode na sala do livro. Acho justo que o livro, retratando a economia da época da escravidão, aborde o escravo como engrenagem nesse processo, mas ele não foi escrito no século XIX. Era para conter minimamente algum constrangimento com a escravidão. Mas faltou. O próprio Piketty, em seu “O Capital no Século XXI”, menciona a escravidão economicamente, mas não deixa de emitir alguma opinião sobre o assunto. Como gostei muito da leitura, fico procurando atenuantes, como pensar em comparar com outros livros escritos na mesma época — avaliando a maneira como falavam da escravidão. Ou entender este meu incômodo como um viés meu, que sempre quero ver a questão da escravidão mencionada e debatida, assim como a questão da desigualdade. Ou então que uma opinião indignada com a escravidão é algo tão difundido e previsível que seria dispensável no estudo dele. Mas nenhum desses meus argumentos, nem todos em conjunto, conseguem tirar o bode da sala. Para concluir as reflexões seguintes, tive de fazer um esforço para enxergar as pontes apesar do fosso.

Senti falta também de uma consideração específica à desigualdade. O termo é mencionado algumas vezes, mas não ganha atenção especial, nem no capítulo final, que tem um tom mais propositivo que o resto do livro, prioritariamente descritivo.

Além dessas faltas, outros pontos me vieram a partir da leitura. Um deles é como a economia mudou do século XIX para cá. Hoje estamos tão industrializados que já entramos em desindustrialização. Nisso o Estado teve papel fundamental, bancando a criação da indústria de base a partir do Getúlio — CSN, Álcalis, Vale do Rio Doce, Petrobrás, o próprio BNDE (que na época não tinha S). Na desindustrialização também, com a abertura dos mercados — a adesão de Collor e FH à cartilha neoliberal — e com as privatizações.

Um segundo ponto é o de que ainda precisamos mudar muito, economicamente falando. Ainda somos muito dependentes de exportação de produtos primários. OK, não é mais só café nem só açúcar, é também a soja, o minério de ferro, o boi, o porco, o jogador de futebol que tem banzo quando chega na Europa ou no Oriente Médio. O setor que cresce é o agronegócio. Apesar de muita coisa ter mudado, de termos conseguido criar um mercado interno robusto, com reservas fortes, nossa economia ainda é muito influenciada pela demanda externa. Toda a prosperidade é associada ao aumento de preços das commodities. Talvez do mesmo modo que o café financiou a industrialização do sudeste de forma geral, e particularmente de SP, daqui a uns decênios olharemos o boom das commodities dos anos Lula como o ponto de inflexão que gerou distribuição de renda significativa. Não uma redistribuição pura e simples, mas os mais pobres ficaram, pela primeira vez, com uma fatia maior da nova riqueza que se gerava.


Ele deixa muito claro também o quanto a elite cafeeira influenciava o governo e suas políticas econômicas. Ali, no momento de superprodução e queda do consumo, na década de 1930, a solução adotada foi a prática antiga de socializar os prejuízos e privatizar os lucros. Na crise financeira do fim dos anos 90 também foi assim. Os bancos foram socorridos com dinheiro público. Hoje no chamado ajuste fiscal também é essa, em linhas gerais, a proposta: mantemos um sistema tributário regressivo, duro com os pobres e principalmente com a classe média e leniente com os ricos e ultrarricos. Mesmo numa situação em que é preciso gerar caixa, a resposta é cortar as despesas que funcionam como agentes distribuidores de renda (saúde e educação), sem encostar em grandes fortunas ou capital especulativo. A relação entre os grandes grupos econômicos e os governos é tão próxima, que acho que já nem é o caso de se falar em influência do poder econômico sobre o político, mas de uma identidade, uma fusão entre eles. Na plutocracia que vivemos, há pouca diferença em um e outro ramo do poder.

domingo, 25 de outubro de 2015

A desumanização negra



Esse breve ensaio que vocês começam a ler surge a partir de uma leitura crítica do livro “Formação Econômica do Brasil”, do economista Celso Furtado (CF).

Este livro, que já nasceu sendo um clássico, se propõe a explicar as condições do desenvolvimento brasileiro até meados da década de 1950, sob um prisma histórico e econômico.

‘Formação Econômica do Brasil’ (FEB), como toda obra clássica que interpreta o nosso país, pode ser reinterpretado através de seus vícios e de suas virtudes. Ambos estão lá no texto de CF. Mas se você é fã do referido autor, tome cuidado: do ponto de vista deste que ora vos escreve, as críticas são muito mais numerosas e graves do que os elogios; vou começar por este últimos, então. Cabe ressaltar, antes de começarmos, que estas impressões estão baseadas apenas na leitura de FEB, desconsiderando os outros aspectos da vida de CF. Todas as vezes em que parecer que há um julgamento a respeito de CF, este julgamento é sempre a respeito de CF como autor de FEB.

Como pontos positivos, pode-se destacar a seriedade, a concisão e a audácia do texto de CF: realmente, a mistura desenvolvida pelo autor entre a história e a economia, num movimento dicotômico e pendular, produz um texto de caráter inovador. Por isso mesmo é que se trata de um texto seminal.

Em relação ao conteúdo de sua obra, é relevante o capítulo sobre a economia mineira do século XVIII. Naquele momento, Minas Gerais passou a ser o centro do país, e pela primeira vez a economia se integrava internamente. O sul e o Nordeste forneciam gado e mão-de-obra para a atividade mineira. Muito embora esse entrelaçamento das partes tenha sido perdido à medida que a economia dos metais preciosos de Minas Gerais entrava em declínio, foi a primeira vez, de forma efetiva, que os fatores de produção se integravam regionalmente. Essa integração ocorreu novamente quando o centro dinâmico do país se modifica para o Vale do Paraíba e se concentra no Estado de São Paulo. É a São Paulo, e não mais a Minas Gerais, que passam a acorrer os fluxos de pessoas, de capitais e de mão-de-obra. Embora CF não lance mão dessa hipótese de forma marcada em seu ensaio, creio que um dos fatores que tenha tido importância para a consolidação do território brasileiro em um único país (e não em vários, como foi o caso da América Espanhola) foi justamente a criação de um centro dinâmico de economia regional dentro do próprio território: não o de São Paulo, pois ao final do século XIX já tínhamos um país independente, mas o de Minas Gerais, no século XVIII. Ainda que as bandeiras dos séculos XVI e XVII tenham sido importantes para que o Brasil tenha deixado de ser apenas uma união de portos marítimos em comunicação direta com Portugal, foi somente no século seguinte que se pôde operar uma verdadeira união econômica entre os territórios do norte e do sul do país através de um centro dinâmico na região central do Brasil.

O momento em que CF aponta como se deu o processo de triangulação comercial entre os EUA e as Antilhas é também muito didático e esclarecedor. Ficou claro como os EUA puderam se constituir numa espécie de colônia especial e fazer de suas colônias vizinhas suas próprias colônias, sob vista grossa da Inglaterra.

Os elogios acabam por aqui. Começarão as críticas.

CF escreve de um jeito esquisito. O uso excessivo de expressões como ‘Sem embargo’, ‘inversões’ (no sentido de investimentos) e ‘inversionistas’ (no sentido de investidores) dá a ideia de que estamos lendo uma tradução mal feita de um texto em espanhol. Com o tempo, evidentemente, acabamos nos acostumando.

Uma das coisas mais ditas sobre FEB é que se trata de um livro que apresenta uma visão equilibrada entre história e economia (eu mesmo disse isso nos primeiros parágrafos). Ocorre que se trata de equilíbrio apenas se considerarmos uma média aritmética de todo o conteúdo do livro. FEB começa numa pegada mais histórica, e portanto, de leitura mais agradável (para o meu gosto). Aos poucos, vão entrando uma visão e um jargão mais econômicos, de forma que lá pelo meio do livro temos, de fato, esse suposto equilíbrio. Do meio para o final, entretanto, CF escancara seu economês para os leitores. Dessa forma, um livro que se propõe a ser para iniciantes, engana de forma deliberada aqueles que se propõem a lê-lo, pois começa simulando uma facilidade de leitura e termina numa prosa árida, difícil, fastidiosa. Um texto para iniciados disfarçado de texto para iniciantes: um engodo.

Outro aspecto completamente irritante em FEB é a quantidade de elucubrações acerca de algo que não ocorreu. O recurso do ‘E se...’, ou do futuro do pretérito, é um exercício interessante em textos históricos, mas deve ser utilizado com muita cautela, muita parcimônia. Qualquer pessoa que tenha noções mínimas de historiografia sabe que esse é um recurso ardiloso, uma vez que se as coisas tivessem tomado outro rumo na história, os fatos subsequentes se dariam de uma outra forma que é, por definição, imprevisível, insondável. Novamente, trata-se de um recurso interessante para explicar alguns fenômenos, mas CF se utiliza deles não apenas de forma exaustiva, mas de maneira completamente irresponsável, ao encadear mais e mais elementos a fatos que não ocorreram. ‘Se tivesse ocorrido A em vez de B, então teríamos tido C, e portanto, D, e, portanto, E, o que nos levaria inevitavelmente a F.’ Nao há como levar a sério esse tipo de construção. Vejam como é ruim no texto do próprio, no capítulo 2, ‘Fatores do êxito da empresa agrícola’: “Não fora o retrocesso da economia espanhola – particularmente acentuado no século XVII – e a exportação de manufaturas de produção metropolitana para as colônias teria necessariamente evoluído, dando lugar a vínculos econômicos de natureza mais complexa que a simples transferência periódica de um excedente de produção sob a forma de metais preciosos. O consumo de manufaturas europeias pelas densas populações da meseta mexicana e do altiplano andino teria criado a necessidade de uma contrapartida de exportações de produtos locais, seja para consumo na Espanha, seja para reexportação. Um intercâmbio desse tipo provocaria necessariamente transformações nas estruturas arcaicas das economias indígenas e possibilitaria maior penetração de capitais e técnica europeus. Houvesse a colonização espanhola evoluído nesse sentido, e muito maiores teriam sido as dificuldades da empresa portuguesa para vencer.”

Existem ainda outros elementos ruins no texto de Celso Furtado. O conceito que ele tem acerca do desenvolvimento sustentável é particularmente destrutivo. No capítulo 28, ‘A defesa do nível de emprego e a concentração de renda’, CF postula: “A situação pode ser perfeitamente assimilada à de uma indústria extrativa, pois o esgotamento de uma reserva mineral representa a alienação de um patrimônio cuja ausência poderá ser lamentada pelas gerações futuras. Mas, se o aproveitamento da reserva esgotável se faz para dar ‘início’ a um processo de desenvolvimento econômico, não somente a geração presente mas também as futuras - que receberão a reserva transformada em capital reprodutível - serão beneficiadas.” É razoável supor que, uma vez que o texto foi escrito na década de 1950, ainda prevalecia uma visão desenvolvimentista que suplantava uma visão mais holística a respeito dos recursos naturais. Mas é importante ressaltar que CF veio a falecer em 2004 e que, durante o período do lançamento do livro até sua morte, efetuou pequenas modificações no texto. Donde podemos concluir que se CF optou por não rever seus conceitos acerca do desenvolvimento com base na extração dos recursos naturais sem contrapartidas, certamente o fez porque não encontrou relevância na questão.

Na esteira dos problemas do texto de FEB podemos citar também o ponto de vista. CF parece se propor sempre a defender o ponto de vista dos donos dos meios de produção, que tomaram, muitas das vezes, decisões estapafúrdias ao longo da história do Brasil. Dessa forma, CF consegue articular uma visão que defende a política de defesa da produção do café, na qual os fazendeiros destroem boa parte da produção com vistas à manutenção do lucro. Igualmente, consegue defender também a politica dos mesmos fazendeiros que não transformam os lucros obtidos nas suas propriedades em aumento de salários, provocando concentração de renda. O argumento é interessante: não repassando os aumentos de lucro dos sucessos, o fazendeiro também não repassa aos salários de seus empregados os prejuízos decorrentes do fracasso na produção/venda de café, o que garante o nível de empregos. Dessa forma, CF consegue nos fazer crer que uma postura concentradora de renda é, na verdade, uma política de proteção à economia do Brasil.

A verdade é que CF é muito hábil na construção de um halo de respeito em torno de si. Num texto de poucos adjetivos, transmite a ideia de sobriedade e, sobretudo de imparcialidade em torno de suas ideias, como se o processo histórico-econômico estivesse completamente desacoplado de uma visão ideológica, isto é, como se fosse possível contar a história sem tomar partido. Essa neutralidade cai por terra ao analisarmos o uso da adjetivação que CF realiza em FEB, que é pouca, mas suficiente para que consigamos entender o seu viés. Isto fica particularmente evidente no tratamento dado por CF à questão dos negros.

Esta não é uma questão central no trabalho de CF. Isso se justifica pelo recorte dado ao seu trabalho: uma abordagem histórica e econômica, que passa ao largo das questões sociológicas. Mas a adjetivação e o julgamento realizado por CF em FEB mostra que essa discussão não passa tão ao largo assim.

Logo no capítulo 6, ‘Consequências da penetração do açúcar nas Antilhas’, CF coloca uma frase que soa no mínimo esquisita: “A pessoa interessada assinava um contrato na Inglaterra, pelo qual se comprometia a trabalhar para outra por um prazo de cinco a sete anos, recebendo em compensação o pagamento da passagem, manutenção e, ao final do contrato, um pedaço de terra ou uma indenização em dinheiro. Tudo indica que esta gente recebia um tratamento igual ou pior ao dado aos escravos africanos”. A primeira pergunta que se faz é: Ora, como é possível dizer, sem incorrer em uma afirmação temerária, que os brancos ingleses que emigraram para os EUA possuíam uma condição de vida pior do que a dos negros brasileiros? Como é possível afirmar que alguém que trabalha num regime de servidão tendo em vista a sua liberdade e o seu direito à propriedade em, no máximo, sete anos tem uma condição pior do que aquele que trabalha sabendo que permanecerá como escravo até o fim dos seus dias, sem direito à liberdade, à propriedade, e tendo como certo que sua condição de escravo será transmitida aos seus descendentes?

No capítulo 7, ‘Encerramento da etapa colonial’, CF faz uma das afirmações mais abjetas de todo o seu texto: “A escravidão demonstrou  ser, desde o primeiro momento, uma condição de sobrevivência para o colono europeu na nova terra.” É completamente INADMISSÍVEL que um texto escrito em 1950 ainda se aferroe à inevitabilidade do regime escravocrata. A escravidão da população negra na colonização das Américas é um crime hediondo contra a Humanidade e, como tal, deve ser tratado. Fico imaginando que julgamento teria um texto que propusesse também como inevitável o lançamento da bomba atômica norte-americana sobre Hiroshima ou o holocausto contra o povo judeu provocado pelo regime nazista alemão no final da primeira metade do século XX, ou ainda, a tortura praticada pelo Estado brasileiro contra os manifestantes políticos dissidentes na década de 1970. São todos igualmente crimes contra a Humanidade e, por definição, indefensáveis, injustificáveis, e que devem ser punidos quando possível no tempo histórico, e indenizados a qualquer tempo. Nesse sentido, não deveria ser mais possível que um texto com uma declaração desse tipo, que presta um desserviço aos direitos humanos e, em especial, à dos negros escravizados e de seus descendentes prejudicados pela escravidão, estivesse ainda em circulação sem qualquer tipo de nota explicativa / justificativa / pedido de desculpas / etc. FEB, do jeito que está, com essa frase colocada sem conflitos no sétimo capítulo, é aplaudido e referenciado por estudantes de economia, que assimilam essa ideologia travestida de neutralidade.

A partir do sétimo capítulo, CF avança numa discussão supostamente neutra, mas que atua em um forte sentido da desumanização negra, isto é, de não encarar a população negra como população, como gente, como seres humanos com os quais se deve preocupar na condição de humanos e não na condição de máquina ou mercadoria.

No capítulo 8, ‘Capitalização e nível de renda na economia açucareira’, CF coloca: “É quando a rentabilidade do negócio está assegurada que entram em cena, na escala necessária, os escravos africanos: base de um sistema de produção mais eficiente e mais densamente capitalizado.”. A pergunta que fica é: qual é a escala necessária? Necessária para quem? Para que tipo de economia? Vale lembrar que é a população negra que é comercializada e traficada na condição de escravos. ‘Entra em cena’ é o tipo de construção linguística que retira a culpa daqueles que sujaram as mãos.

Ainda no capítulo 8, CF avança na construção de sua desumanização negra, ao encará-los sob diversas perspectivas. Primeiro, apenas como capital, como requisito para produção: “Os gastos monetários de reposição, que cabe deduzir para obter o montante da renda líquida, podem ser estimados grosso modo em 110 mil libras: 50 mil libras para reposição dos escravos – admitindo-se uma vida útil média de oito anos, 15 mil escravos a 25 libras por cabeça – e 60 mil libras para a parte de equipamento importado – admitindo-se que a terça parte do capital fixo (inclusive escravos) estivesse constituída por equipamentos importados e que estes tivessem uma vida útil média de dez anos.”. Mais à frente, CF compara os negros aos animais: “Estima-se que o número total de bois existentes nos engenhos era da mesma ordem do número de escravos. Por outro lado, admite-se que um boi valia cerca da quinta parte do valor de um escravo e que sua vida de trabalho era de apenas três anos.”. Em um momento seguinte do mesmo capítulo, CF compara os negros às instalações de uma fábrica: “A mão-de-obra escrava pode ser comparada às instalações de uma fábrica: a inversão consiste na compra do escravo e sua manutenção representa custos fixos. Esteja a fábrica ou o escravo trabalhando ou não, os gastos de manutenção terão de ser despendidos. Demais, uma hora de trabalho do escravo perdida não é recuperável, como ocorreria no caso de uma máquina que tivesse de ser impreterivelmente abandonada ao final de um dado número de anos. É natural que, não podendo utilizá-la continuamente em atividades produtivas ligadas diretamente à exportação, o empresário procurasse ocupar a força de trabalho escravo em tarefas de outra ordem, nos interregnos forçados da atividade principal.”.

O processo de desumanização negra brasileira é colocado durante o texto de maneira paulatina. Até aqui, ainda se pode argumentar em favor de CF que ele, pessoalmente, não encara o negro como um fator de capital, mas que se refere às condições históricas de um negro escravizado, e que não faz nada mais que retomar a maneira pela qual este negro era encarado à época. Uma frase do próprio capítulo 8 é capaz de desmentir esta hipótese. CF, que raramente se utiliza de adjetivos na construção de seu discurso, escreve, como uma nota de rodapé: “Já o jesuíta Antonil, nos seus sábios conselhos aos senhores de engenho, no começo do século XVIII, recomendava que ‘aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar coice principalmente na barriga das mulheres, que andam pejadas, nem dar com pau nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes , e podem ferir na cabeça a um escravo de préstimo que vale muito dinheiro e perdê-lo’”. Nesta frase, CF cita o jesuíta Antonil, mas o julgamento de que este é um ‘sábio’ conselho é uma construção do próprio autor. Esta noção de que existe alguma sabedoria em não espancar um negro escravizado até à morte reforça a posição pessoal do autor de que o negro não deve ser encarado como uma pessoa, como um ser humano, mas sim como um elemento absolutamente desumanizado, como um fator de capital, um boi ou as instalações de uma fábrica.

O processo de desumanização conduzido por CF em FEB piora ao longo do texto. Após essa parte inicial do livro, CF insiste em utilizar o termo ‘estoque de escravos’. Em uma das passagens em que isso fica mais evidente, temos o trecho do capítulo 21, ‘O problema da mão-de-obra – oferta interna potencial’: “É interessante observar a evolução diversa que teve o estoque de escravos nos dois principais países escravistas do continente: os EUA e o Brasil. Ambos os países começaram o século XIX com um estoque de aproximadamente 1 milhão de escravos.”

Vez por outra, CF ameaça fazer um mea culpa. No capítulo 19, ‘Declínio a longo prazo do nível de renda: primeira metade do século XIX’ temos o trecho: “Admitamos que a população em 1850 seria de 7 milhões, inclusive 2 milhões de escravos, os quais não se têm em conta na formação da renda per capita.”. Nesse trecho, CF concede às pessoas negras o direito de serem computadas na população brasileira. É uma pena que essa concessão não dure mais do que uma linha porque, logo na sequência, o autor não os considera para o cálculo da renda per capita.

A população negra brasileira, aliás, toda a população negra americana que estava submetida ao regime escravista não se conformava ao papel desumanizado que a população europeia a submetia. Vez por outra eclodiam algumas revoluções que tinham como mote a liberdade do povo negro americano. No Brasil, podemos citar o Quilombo dos Palmares e a Revolta dos Malês como exemplos desses movimentos. Um dos mais intensos relacionados a essa temática e, possivelmente uma das revoltas populares de maior ousadia na história das Américas seja a da revolução haitiana, ocorrida em fins do século XVIII. Os negros escravizados do Haiti se rebelaram contra o regime escravocrata e não apenas proclamaram a sua liberdade, como também proclamaram a república do Haiti, a primeira colônia a se tornar independente nas Américas. No capítulo 16 de FEB, ‘O Maranhão e a falsa euforia do fim da época colonial’, CF cita a revolução haitiana: “Em 1789 entrou em colapso a grande colônia açucareira francesa que era o Haiti. Nesse pequeno território estavam concentrados quase meio milhão de escravos que se revoltaram e destruíram grande parte da riqueza ali acumulada.” CF utiliza o termo ‘entrou em colapso’, que é dotado de uma certa frieza e de uma distância higiênica em relação aos movimentos populares. A única coisa que CF é capaz de enxergar é que, neste período, os escravos ‘destruíram grande parte da riqueza’. Ora, destruíram uma riqueza que era concentrada nas mãos de poucos homens brancos e que, de nenhuma forma se convertia em melhores condições de vida para a população negra haitiana, que compunha a vasta maioria dos habitantes da ilha. É interessante notar como CF está sempre predisposto a assumir o lado daqueles que são proprietários, dos mais ricos. Os oprimidos quando se rebelam ‘destroem riqueza’. Os proprietários de café, por outro lado, quando, literalmente, destroem boa parte da sua produção com vistas à proteção do mercado estão ‘mantendo o nível dos empregos’. Dois pesos e duas medidas, como pode ser visto ao longo de todo o livro.

No capítulo 21, ‘O problema da mão-de-obra – oferta interna potencial’, CF mostra que seu problema não apenas com os negros. Aqui ele faz uma afirmação sobre os ‘caboclos’, completamente sem eira nem beira: “Tem-se repetido comumente no Brasil que a causa dessa agricultura rudimentar está no ‘caboclo’, quando o caboclo é simplesmente uma criação da economia de subsistência. Mesmo que dispusesse de técnicas agrícolas muito mais avançadas, o homem da economia de subsistência teria que abandoná-las, pois o produto de seu trabalho não teria valor econômico. A involução-das técnicas de produção e da forma de organização do trabalho com o tempo transformariam esse homem em ‘caboclo’”. Não fica claro ao que ele se refere quando utiliza a palavra ‘caboclo’. CF parece argumentar que ninguém nasce caboclo, torna-se um, mas é realmente impossível entender o que ele quer dizer; Essa ausência de explicação sobre os caboclos parece ter mais a ver com as deficiências estruturais do livro, em especial a uma certa falta de coesão, do que com algum preconceito claramente direcionado. Se FEB fosse encarado como uma novela, essa parte na qual ele se refere aos caboclos certamente poderia ser encarada como uma ‘ponta solta’.

Voltando à questão central de nossa discussão, o capítulo 22, ‘O problema da mão-de-obra – a imigração europeia’, é particularmente importante para entender que FEB desenvolve o processo de desumanização negra em oposição a uma valorização da população branca. Vejam o trecho a seguir: “As colônias criadas em distintas partes do Brasil pelo governo imperial careciam totalmente de fundamento econômico; tinham como razão de ser a crença na superioridade inata do trabalhador europeu, particularmente daqueles cuja ‘raça’ era distinta da dos europeus que haviam colonizado o país. Era essa uma colonização amplamente subsidiada. Pagavam-se transporte e gastos de instalação e promoviam-se obras públicas artificiais para dar trabalho aos colonos, obras que se prolongavam algumas vezes de forma absurda. E, quase sempre, quando, após os vultosos gastos, se deixava a colônia entregue a suas próprias forças, ela tendia a definhar, involuindo em simples economia de subsistência. Caso ilustrativo é o da colonização alemã do Rio Grande do Sul. O governo imperial instalou aí a primeira colônia em 1824, em São Leopoldo, e, depois da guerra civil, o governo da província realizou fortes inversões para retomar e intensificar a imigração dessa origem. Contudo, a vida econômica das colônias era extremamente precária, pois, não havendo mercado para os excedentes de produção, o setor monetário logo se atrofiava, o sistema de divisão do trabalho involuía e a colônia regredia a um sistema econômico rudimentar de subsistência. Viajantes europeus que passavam por essas regiões se surpreendiam com a forma primitiva de vida dos colonos e atribuíam os seus males às leis inadequadas do país ou a outras razões dessa ordem. A conseqüência prática de tudo isso foi, entretanto, que se formou na Europa um movimento de opinião contra a emigração para o império escravista da América e já em 1859 se proibia a emigração alemã para o Brasil.” Este é um trecho em que CF se esforça para se manter neutro. É possível pensar que esse trecho alude a uma certa compaixão pelos colonos, mas é tudo feito de maneira bastante difusa. Alguns parágrafos depois, CF explicita que, sim, trata-se mesmo de uma relação fortemente empática pelos colonos, recheada de pena, dó e comiseração: “Com efeito, o custo real da imigração corria totalmente por conta do imigrante, que era a parte financeiramente mais fraca. O Estado financiava a operação, o colono hipotecava o seu futuro e o de sua família, e o fazendeiro ficava com todas as vantagens. O colono devia firmar um contrato pelo qual se obrigava a não abandonar a fazenda antes de pagar a dívida em sua totalidade. É fácil perceber até onde poderiam chegar os abusos de um sistema desse tipo nas condições de isolamento em que viviam os colonos, sendo o fazendeiro praticamente a única fonte do poder político.”. É impressionante perceber como CF se compadece dos colonos europeus no sul do país, falando em ‘abusos’ do sistema. Em suas pouco mais de 300 páginas, FEB em nenhum momento se refere ao sistema escravista como um sistema de abusos, em nenhum momento se refere ao negro brasileiro como um ser humano que foi sistematicamente abusado ao longo de mais de três séculos de escravidão.

O capítulo 24, ‘O problema da mão-de-obra – eliminação do trabalho escravo’ serve àqueles que, até o presente momento, tinham alguma dúvida sobre  real posicionamento de CF em relação à questão dos negros em FEB. Neste capítulo, suas posições ficam ainda mais claras. É natural que, por se tratar de um assunto envolto em muitos tabus, CF começa por fazer o seu mea culpa prévio: “Mais que em qualquer outra matéria, nesta dificilmente se conseguem separar os aspectos exclusivamente econômicos de outros de caráter social mais amplo. Constituindo a escravidão no Brasil a base de um sistema de vida secularmente estabelecido, e caracterizando-se o sistema econômico escravista por uma grande estabilidade estrutural, explica-se facilmente que para o homem que integrava esse sistema a abolição do trabalho servil assumisse as proporções de uma ‘hecatombe social’. Mesmo os espíritos mais lúcidos e fundamentalmente antiescravistas, como Mauá, jamais chegaram a compreender a natureza real do problema e se enchiam de susto diante da proximidade dessa ‘hecatombe’ inevitável. Prevalecia então a idéia de que um escravo era uma ‘riqueza’ e que a abolição da escravatura acarretaria o empobrecimento do setor da população que era responsável pela criação de riqueza no país.”. Este mea culpa funciona de forma muitíssimo semelhante à construção frasal das pessoas racistas que começam suas falas por: ‘Não sou racista, mas’ e, uma vez feito esse preâmbulo, descascam toda sorte de impropriedades nos termos seguintes. CF opera da mesma forma. Dessa forma, após seu mea culpa prévio, ele coloca: “As vantagens que apresentava o trabalhador europeu com respeito ao ex-escravo são demasiado óbvias para insistir sobre elas.” Misturando seus preconceitos com os erros de coesão já mencionados, CF nos brinda com um período em que diz que não irá dizer alguma coisa. CF deixa seus leitores encalacrados em um sistema de obviedades que só faz sentido para o próprio autor. Alguns parágrafos depois, CF parece acenar com algumas pistas sobre o assunto: “O homem formado dentro desse sistema social está totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase não possuindo hábitos de vida familiar, a idéia de acumulação de riqueza é praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas ‘necessidades’. Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação de seu salário acima de suas necessidades - que estão definidas pelo nível de subsistência de um escravo - determina de imediato uma forte preferência pelo ócio.” Esta afirmação é de uma estreiteza intelectual que chega a surpreender. Será que CF, douto, economista respeitado, não sabia que os escravos mantinham seus vínculos afetivos e familiares dentro das senzalas? Será que ele não sabia que muitos escravos acumulavam riquezas ao longo de uma vida inteira no intuito de comprar suas alforrias? É muita ingenuidade para não considerarmos a forçosa hipótese que a cada linha se nos apresenta de maneira renovada: trata-se mesmo de má-fe. Esta má-fé pode ser observada em um dos últimos parágrafos do capítulo: “Cabe tão-somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição, retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país. Por toda a primeira metade do século XX, a grande massa dos descendentes da antiga população escrava continuará vivendo dentro de seu limitado sistema de ‘necessidades’, cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformações econômicas do país.” 

CF parece enxergar que o Brasil é um país feito por brancos e para brancos. Uma vez que a população negra é retirada da sua condição desumanizada a partir da abolição da escravatura, CF, que até então os vinha encarando como máquinas, bois e instalações fabris, não consegue alcançar a condição humana dos negros brasileiros a partir do século XX e opta, por fim, por desconsiderá-los de todo o processo econômico vindouro. CF, como um arauto do retrocesso, re-desumaniza os negros: não é capaz de encará-los como seres humanos e como cidadãos.

Mais para o final do livro, CF, que não é mais capaz de abordar a questão dos negros, por não conseguir humanizá-los, demonstra uma estranha e suspeita simpatia pela região sul do país. No capítulo 29, ‘A descentralização republicana e a formação de novos grupos de pressão’, CF afirma: “A organização social do sul transformou-se rapidamente, sob a influência do trabalho assalariado nas plantações de café e nos centros urbanos, e da pequena propriedade agrícola na região de colonização das províncias meridionais. As necessidades de ação administrativa no campo dos serviços públicos, da educação e da saúde, da formação profissional, da organização bancária, etc. no sul do país são cada vez maiores. O governo imperial, entretanto, em cuja política e administração pesam homens ligados aos velhos interesses escravistas, apresentava escassa sensibilidade com respeito a esses novos problemas.”. Para CF, existe uma necessidade grande de serviços públicos como educação e saúde no sul do país. Essa comiseração e essa empatia são exatamente as mesmas dedicadas à colônia de São Leopoldo e aos abusos sofridos por todos os imigrantes brancos que chegaram da Europa para se instalar no sul do país.

Existe um respeito muito grande ao sofrimento e às necessidades dessa parcela da população que vive no sul do Brasil. Argumentar que é porque se trata de pessoas brancas pode parecer uma simples coindicência, mas CF, astuto, não opera por coincidências. No último capítulo do livro, o capítulo 36, ‘Perspectiva dos próximos decênios’, CF diz: “Por uma feliz circunstância, a região riograndense - culturalmente a mais dessemelhante das demais zonas de povoamento - foi a primeira a beneficiar-se da expansão do mercado interno induzida pelo desenvolvimento cafeeiro.”. Neste trecho, a simpatia pela região sul fica mais explícita por se tratar de uma circunstância ‘feliz’, justamente em um texto que utiliza os adjetivos de forma muito parcimoniosa. Em uma frase mais adiante, CF mostra que a suspeita que se possa ter a respeito da sua simpatia pela região sul ter a ver com questões étnicas é uma suspeita verdadeira, isto é, uma constatação: “O Rio Grande do Sul praticamente nao conheceu economia escravista e na formação de sua população o contingente português foi menor que nas demais regiões do pais, até fins do século XIX.”

Através dessa desconstrução do discurso de CF em FEB, podemos perceber que se trata de um texto racista, e que explora esse racismo pelas vias explícitas e também pelas vias tácitas, pelos não-ditos, pelas entrelinhas.

É importante ressaltar, mais uma vez, que essa é uma análise de CF no papel de autor de FEB. Não é função deste texto julgar o papel de CF como Ministro, como professor ou como político. Portanto, no exercício deste papel, como autor de FEB, é sim, possível utilizar a expressão ‘arauto do retrocesso’ ao se referir a CF, como foi feito nesse texto, de maneira contextualizada.

Mais uma vez, é necessário reforçar que FEB tem muitas virtudes, o que deixam claro o imenso número de cópias vendidas e a adoção maciça deste livro nas escolas de economia.

Entretanto, colocar a desumanização negra no centro do debate, ou ainda, mais do que isto, colocar as questões referentes à abordagem que se faz do negro hoje, em textos considerados seminais para as ciências humanas, sociais e sociais aplicadas é não apenas necessário como um dever de todos aqueles que se propõem a aprender e a ensinar de forma crítica.

É de se supor que a maioria das pessoas que travam contato com FEB lê este livro procurando outras coisas e se atém puramente àquilo que procura: isto é, as questões econômicas propriamente ditas, o balanço de capitais, as contas públicas, o desenvolvimento industrial, etc.

Mas as questões ideológicas estão lá. Pode-se falar do racismo em especial, mas também estão lá a promoção do capitalismo, a defesa dos interesses de uma burguesia industrial nacional, etc. A despeito de toda ideologia contida no livro, a despeito do racismo destilado em FEB do início ao fim, contudo, a noção que se tem é a de um livro supostamente imparcial, como se supõem ser os livros ditos seminais. A ideologia nos é inculcada não nos materiais abertamente panfletários, mas naqueles que supostamente são ‘detentores da verdade’, isto é, materiais aos quais se devota um certo respeito e algum grau de veneração. É preciso descontrui-los para mostrar que, por detrás dessa suposta imparcialidade existem premissas, existe um discurso prévio e um discurso construído que são eivados de ideologia.

Nesse sentido, é muito importante que o debate acerca das questões étnico-raciais (e também as de gênero, de sexualidade, etc...) sejam abordadas não apenas de maneira direta, mas também de forma transversal. Seria interessante que essas questões pudessem ser abordadas não apenas em grupos que discutem as questões raciais, mas também entre aqueles que estão cursando seu primeiro ano da faculdade de economia, por exemplo.

Por fim, vale lembrar que o racismo é crime inafiançável, de acordo com o artigo 5º da Consitutição Federal de 1988. Portanto, para que nunca mais as pessoas se arroguem ao direito de encarar a escravidão como uma inevitabilidade histórica, em vez de a encararem como o crime hediondo contra a humanidade que realmente foi, gostaria de deixar como reflexão e como bandeira as seguintes palavras: Menos CF, mais CF88!