segunda-feira, 11 de julho de 2016

Caros, segue o texto solto. Apenas com partes que gostaria de discutir no GEB.


Confesso que minha única referência de Joaquim Nabuco era a rua de Ipanema, fundos do colégio que estudei quase toda minha vida. Início, mais uma vez, relatando como me surpreende a idade dessas personalidades (lembrei do Castro Alves) comparado a nossa juventude de hoje. O fato de Joaquim Nabuco ter sido criado, pela madrinha, em um engenho, na convivência natural com escravos, só tendo conhecido seu pai aos 8 anos, me diz muito sobre o que ele se tornou. Acredito que se não fosse por isso não tivéssemos nele um dos defensores das ideias abolicionistas. No início me causou estranheza a defesa dele pela monarquia, mas, ao logo da biografia, passo a entender e, pelo contexto, quase concordar com ele.  Nada melhor do livro do que a narrativa das viagens dele, sua adoração por Londres, a comparação com Paris e Nova Iorque. Não deixei de me sentir incomodada quando ele escreve sobre como era obvio que um brasileiro tenha pela Europa um deslumbramento, mas penso que em 1870 a diferença entre esses dois “mundos” era incomparável. A paixão dele pelas artes. A citação e reconhecimento de um por um (principalmente André Rebouças), dos colegas durante o processo da abolição. A maneira como ele enxergou que após 15 de maio de 1888, os movimentos abolicionistas se dissipam (me lembrou Florestan Fernandes). Na página 131:  a grande questão da democracia brasileira não é a monarquia, é a escravidão. Nas páginas 80 e 81 ele assume a preferência pelo estrangeiro e assume que o que o impediu de ser republicano na mocidade foi provavelmente “o de ter sido sensível à impressão aristocrática da vida”.  A verdade é que ele enxergava na monarquia algo que está diretamente ligado aos ingleses e sua formação político social. Não há como reproduzir Londres em qualquer lugar do mundo. Preocupação da república a troca de governo ser de 4 em 4 anos e os cargos ficarem à disposição do presidente. Página 101: Política de governo e Política de Oposição. Página 112: Na câmara dos Comuns não se imagina o processo de lobbying. Pág. 120 “Conciliação como coalizão”.  

Um artista perdido na política


Minha expectativa ao ler o livro “Minha formação”, de Joaquim Nabuco era ler um livro sobre escravidão e sobre as ideias que levaram o autor a se tornar um abolicionista. Imaginava encontrar um autor apaixonado pela questão da igualdade racial e revoltado com a brutalidade humana. Não foi o que encontrei, fiquei surpresa por não ser a escravidão o principal tema do livro, mas não me decepcionei. Achei que várias outras questões interessantes também foram abordadas.
 
Logo no início percebi estar lendo um grande escritor. A prosa de Nabuco foi bastante agradável e, como ele mesmo se definiu, é uma prosa rítmica, com um pouco de sentimento, pensamento e poesia. A dimensão poética aparece de forma mais proeminente em alguns pontos do texto, e algumas passagens são de uma beleza intensa.

Além de seu talento literário, o autor mostra ser idealista e otimista. Acredita que a natureza humana é boa, elogia fortemente a cultura inglesa, mostra gratidão a seu pai e a homens que o inspiraram, compadece-se do sofrimento dos escravos e revela que se engajou na luta pela abolição por acreditar estar fazendo um grande bem para a humanidade. Tudo isso me inspirou simpatia e admiração pelo autor. Joaquim Nabuco foi um membro da elite e teve contato com as pessoas das mais altas posições sociais. Ele chega a se desculpar por descrever suas histórias em meio a aristocratas. Ele fala que foi atraído pelo magnetismo da realeza, mas foi da mesma forma impactado pelo sofrimento dos escravos. Em um capítulo final do livro ele cita sua infância em um engenho e sua convivência com os escravos.

Foram tantas questões suscitadas, que eu seria capaz de escrever vários textões, mas, o tempo me obriga a tentar ser breve, então vou citar apenas algumas. Primeiro, a questão é política. O autor, que foi diplomata e deputado, afirma que seu interesse na política é mais intelectual que prático e critica o ambiente dos partidos, que ele acredita ser limitador de opiniões individuais. Muito interessante para mim foi a defesa que o autor faz da monarquia constitucional inglesa, aquela em que “o rei reina e o parlamento governa”. Afora o excesso de idealização da cultura inglesa, que muitas vezes beira a ingenuidade, fiquei surpresa em encontrar bons argumentos em defesa da monarquia. Na verdade, diante de meu escasso, para não dizer nulo, conhecimento de ciência política, eu já tinha refletido nas desvantagens de um sistema democrático presidencialista como o nosso e o americano e achei interessante observar num livro de mais de cem anos atrás algumas das mesmas críticas que eu já havia feito mentalmente.  

Ele se mostra um conservador.  Fala umas coisas interessantes, como o fato de a democracia inglesa não ter surgido a partir de uma revolução que derrubou a nobreza e de como na verdade foi conveniente à monarquia que tenha havido reformas republicanas que deram maiores direitos ao povo. Isso me fez pensar em como reformas podem ser meios interessantes de manter certas instituições ainda no seu lugar de poder. É mais ou menos como a fofice do papa Francisco salvando a Igreja de perder ovelhas no grande pasto global.
Inclusive há uma parte do livro em que o autor descreve uma espécie de fórmula para que o jeitinho conservador mude as coisas. Ele diz que são regras do espírito inglês: conservar tudo que não seja obstáculo ao melhoramento, só demolir o que for prejudicial, fazer mudanças inicialmente provisórias -como prevenção para o caso de não dar certo- e reformar o que se tem de antigo.

Na verdade eu concordo que são regras bastante sensatas e tendo a achar que, vivendo numa sociedade que eu considerasse boa e justa, acharia desejável seguir essa fórmula. Mas eu particularmente não consigo ver certas injustiças sociais e recalcar meu sentimento revolucionário. Antes de ser contra a destruição de tradições que não fazem mal algum, sou a favor do direito legítimo que as classes oprimidas têm de romper o pacto social por meio de todas as formas possíveis, inclusive pela via da violência, que pode ser um ato de legítima defesa.

Já o autor se posiciona contrariamente a atitudes revolucionárias e diz que no republicanismo, no comunismo, no socialismo e no anarquismo, a revolução parte de inveja. Ele se diz a favor de revoluções “da língua e da pena”. Curiosa essa opinião ter vindo de alguém que afirma ser a favor das liberdades individuais e da igualdade perante a lei. O autor diz admirar a monarquia constitucional pelo fato de a Câmara dos Comuns ser sensível à vontade popular e por crer que exista liberdade e igualdade de direitos na Inglaterra. Mas deixa de levar em consideração que a Inglaterra era uma nação colonialista.

Interessante também a comparação entre EUA e Inglaterra, que seriam protótipos de república e monarquia mais avançadas. Joaquim Nabuco critica bastante os EUA, que descreve como país corrupto, cheio de politicagem e com justiça parcial. Parece até o Fabio Boechat falando do Brasil de hoje. O que eu, claro, adorei.  Muito interessante também a concepção que ele tem do “estado mínimo” americano. Em nenhum momento ele cita essa expressão e nem flerta com as ideias dos teóricos do liberalismo. Mas ele não deixa de citar essa questão do Estado “fraco” americano. Para ele, o povo americano não se interessa por política e não se importa em ter um governo ruim, pois a maior preocupação dos americanos é com questões materiais. Vale notar também que ele crê que o sistema político americano tende a atrair para seus quadros homens de moral inferior, pois já é percebido por todos como um local de corrupção. Exatamente o que se tem dito do Brasil hoje. Ele também pontua que a questão da igualdade nos EUA não é absoluta, pois não contempla outras raças além da ariana.

Algumas opiniões do autor me impactaram, por serem muito diferentes do que eu penso. Ele acredita que a razão é superior à emoção e que a humanidade está num processo de evolução, caminhando para um estado mais racional. Ele usa esse argumento quando diz que a calma do espírito nacional, necessário segundo ele para um governo efetivo, é fortalecida na monarquia pelo fato de a realeza servir como uma instituição cerimonial e diz que “enquanto a humanidade tiver mais razão que emoção, a monarquia será um governo forte”. Não creio que devemos opor razão e emoção, ainda mais considerando a razão como algo superior.
Além disso, o autor acredita que as diferenças entre as nações podem ser explicadas por motivos biológicos, por diferenças raciais. Não pude deixar de perceber essa ideia e julgá-la a partir do meu prisma. Ou seja, não me agradou esse pensamento. Mas, ao mesmo tempo, o autor não vai fundo no tema, portanto, seus preconceitos me afetaram menos que o ódio racial que encontrei no texto do Alcântara Machado.

Queria ter mais tempo para pensar e escrever sobre como Joaquim encarou a questão da escravidão e da abolição. Mas vou apenas citar o que achei mais marcante. Uma coisa é a tentativa que ele faz de aliviar a culpa do lado dos senhores. Ele cita que os escravos eram gratos a seus senhores e diz que, foi criado num engenho e tinha carinho pelos escravos que pertenciam a sua família. Ele procura até mesmo colocar a escravidão no Nordeste como menos desumana que a do sul. Segundo ele, os escravos pro senhor de engenho do Nordeste naquele tempo eram apenas questão de prestígio e era no sul que eles eram obrigados a trabalhar pesado. Achei interessante, porque vemos com isso como o tema da escravidão ao ser apropriado pelos “brancos”, os fez ser ao mesmo tempo os acusadores e os réus num mesmo juri.

Por fim, quero citar apenas que Nabuco lamenta que a abolição tenha se dado sem a devida indenização aos ex-escravos. Não vou me delongar mais, mas acredito que essa questão da indenização é fundamental e nunca foi discutida no nosso país o quanto mereceria ser. Hoje podemos ver o resultado da escravidão e da falta de indenização por toda parte, e ás vezes fico me perguntando até quando.

Quem não tem sangue negro nas veias, tem nas mãos.

Durante boa parte do tempo que gastei lendo livro, fiquei pendular, ora odiando, ora gostando de Joaquim. Ele escreve muito bem, e isso faz diferença. Saí do pêndulo quando entendi que é um livro extremamente pessoal, que não deixa dúvida quanto a sua intenção desde o título. Acho que foi o primeiro livro que li escrito por um político de verdade, embora a carreira política de JN tenha ocupado uma pequena parte de sua vida, apenas.

Este ponto já gerou algum mal-estar, pois ele se coloca como um político ocasional, ou monocausal, que entrou na política apenas pela abolição. Como texto ou subtexto em várias partes do livro vejo uma desvalorização da política real, com um viés moralista e algo que talvez hoje chamaríamos de apartidarismo. Deu também vontade de vomitar a pagação de pau dele para a Europa. Depois tento compreender o contexto e tudo, mas também compreendo o contexto em que eu leio, não só aquele em que JN vivia. O livro é retrato de um tempo e de uma cultura, a partir do ponto de vista de um aristocrata do Império. Se ele começa falando bem do alto, aos poucos vai se colocando mais humano, com falhas e ressentimentos, mas não o ressentimento do aristocrata ferido pelo progresso do tempo, mas de alguém que percebe que não acertou sempre na vida. Ele poderia ter feito do livro um grande lamento e crítica à República, do modo como ela chegou e se estabeleceu no Brasil, mas prefere não morar na queixa e segue em frente.

Em vários momentos ele se refere ao inconsciente. O livro é de 1900, mesmo ano da formulação clássica freudiana que veio com “A Interpretação dos Sonhos”. Esse dado reforça a tese de que o conceito de inconsciente não foi inventado por Freud, mas sim capturado e depurado por ele a partir do Zeitgeist. Na literatura há outros exemplos disso, com Machado e Eça.

No começo, citando Bagehot, ele faz uma espécie de elogio ao parlamentarismo (monarquista). Fala que o poder que faz as leis deve também se ocupar de executá-las. No Brasil hoje isso não ocorre, e é frequente a falta de acordo entre os interesses legislativos e executivos. O legislativo da oposição quer aumentar os gastos que o governo quer cortar ou conter. Acho que essa frase resume bem certos momentos da política. Mesmo com a exigência de que, ao apresentar um projeto que implique gasto, o parlamentar tenha de indicar a origem do financiamento, o que se vê são projetos de leis que não podem ser cumpridas, regras sem previsão de sanção ou punição para quem as descumprir, ou simplesmente leis que não “pegam”, ou seja, não são cumpridas de todo, e não se espera que sejam cumpridas.

Ainda sobre a questão da decisão versus responsabilidade na execução, pensei no Judiciário. O Judiciário é o poder que manda fazer tudo, mas não se responsabiliza pelas consequências de suas ordens. Isso por um lado faz sentido, pois garante alguma isenção. Por outro leva a um poder desconectado da realidade. Será que os juízes lançariam mão tão frequentemente de ordens de prisão, penas de reclusão etc., se fossem eles a arcar com os custos das prisões, por exemplo? A mobilização do Judiciário para resolver — ou ao menos discutir e trabalhar — a questão carcerária no país é insuficiente. Mesmo a lei facultando a aplicação de penas alternativas à reclusão, os juízes, de forma geral, continuam privilegiando mandar os condenados (ou às vezes nem condenados) à prisão, que não é eficaz nem eficiente.  O que tem determinado a decisão por esta ou aquela pena são, nesta ordem, a cor da pele e a classe social do acusado. Um ponto de perpetuação da organicidade da escravidão no Brasil.

Assistindo a debates e sessões na TV Câmara, embora naqueles algumas questões importantes sejam discutidas, nestas o que entra de fato em deliberação são geralmente projetos fúteis e de baixo impacto na resolução dos grandes problemas nacionais. O processo democrático é muito pouco denso e muito lento.

JN percebe que no Reino Unido o parlamentarismo é “orgânico”, isto é, é uma instituição nascida e crescida de maneira natural e espontânea do seio da sociedade. Na verdade, acho que não é bem assim, mas não tenho muitos elementos além do meu achismo para contra argumentar. Mas no Brasil, orgânico mesmo é a escravidão, contrariamente ao que JN coloca mais adiante no livro. A organicidade acaba sendo feita de cima para baixo, tanto em sentido progressista — como na não aceitação popular do desmonte do SUS — como em sentido reacionário, como no caso do medo do comunismo e da meritocracia, e da própria escravidão. Isso mostra que é possível gerar organicidade. Ou ainda desfazê-la como o que acho que deve ser feito com o pensamento senhor/escravo.

Ele critica a criação de instituições sem institucionalidade no Brasil, como cópias do que há em outros países. Concordo com isso, mas não sei como dar solução. Os modelos de fortalecimento de poder local são bem interessantes em teoria, mas não me parece haver no cidadão brasileiro da grande cidade, de forma geral, disponibilidade para participar de processos decisórios, por exemplo em audiências públicas ou conselhos locais de administração (de saúde e educação, por exemplo). Esses dispositivos, cuja criação objetiva gerar formas de capilarização das tomadas de decisão, não raramente são cooptados por xerifes locais que nem sempre agem para o bem comum, ou representam os anseios da comunidade.

O parlamentarismo gera também instabilidade, em que pese a imagem estável de um chefe de Estado estável e inócuo, pois não se sabe nunca até quando um determinado governo vai continuar governo. A periodicidade das eleições presidencialistas cria o problema de se paralisar tudo a cada 2 ou quatro anos por causa das campanhas de eleição, então não há alternativa perfeita one size fits all. A própria Inglaterra já passou leis para dar mais previsibilidade às eleições. Nos últimos 3 anos, a Austrália teve uns 4 primeiros-ministros, mas só uma eleição popular.

De fato, em havendo grandes diferenças entre legislativo e executivo, por conseguinte haveria um bloqueio das ações do governo enquanto durar o impasse, que pode levar anos para se resolver. O parlamentarismo não evita isso por completo; é cada vez mais comum vermos governos “trancados” por incapacidade do partido com mais cadeiras de fazer maioria no parlamento. Bélgica, Espanha e Portugal são exemplos recentes em que isto aconteceu.

Ainda no tocante ao seu preferido objeto de pagação de pau, a Inglaterra, ele menciona que Londres é a metrópole do mundo e é uma cidade inglesa, não uma cidade cosmopolita. À época a circulação de pessoas era mais difícil, mas o capital já circulava muito bem, obrigado. Hoje Londres não é mais uma cidade inglesa, sinal de que em 150 anos a circulação de pessoas cresceu ao menos um pouco.


A maior contribuição do livro, mais do que um olhar, ainda que superficial, interno do processo legislativo que conduziu à abolição, é reforçar que a escravidão por muito tempo permanecerá no modo brasileiro de pensar e agir. Penso que devemos dar a maior profundidade possível a este assunto nas discussões e leituras do grupo e vou insistir nisso. É a escravidão que está por trás do cisma dos brasileiros em ricos e pobres. Os pobres que querem ser senhores. O oprimido que quer ser opressor. O policial que bate, atira, confunde pipoca com droga, mas não confunde preto com branco. Qualquer coisa que se tente chamar de “espírito nacional” traz consigo essa marca. 

quinta-feira, 7 de julho de 2016

O Belo, o Espírito Inglês e o Abolicionista


Confesso, ao iniciar a leitura do livro “Minha Formação”, de Joaquim Nabuco, que eu tinha uma imagem um tanto quanto idealizada do autor, que foi um dos maiores defensores da pauta abolicionista no Brasil. Segundo consta na enciclopédia virtual mais badalada da atualidade, Joaquim é definido como diplomata, poeta, orador, jurista, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, doutor em Letras pela Universidade de Yale, patrono da profissão de historiador (na data de seu nascimento, 19 de agosto, é comemorado o Dia Nacional do Historiador). Nos livros de história, sempre é retratado de maneira imponente, de terno Tweed, com seu farto bigode e olhar firme, imagem que, em geral, é conjugada a alguma cena de libertação dos escravos. Talvez em razão da construção da sua imagem, sempre o associei a um libertário, revolucionário e transformador. Foi com esta visão idílica que inicie a leitura do livro... e aos poucos percebi que – como qualquer outra idealização – esta também estava equivocada.

Em “Minha Formação”, Joaquim (de agora em diante JN) explica os seus posicionamentos políticos, religiosos e morais. Aos 21 anos era republicano; depois se tornou monarquista parlamentar; não apenas por influência do Bagehot (autor que eu desconhecia, mas que parece ser de leitura importante para juristas e cientistas sociais contemporâneos), mas também, aparentemente, por ter ficado chocado com o que viu no republicanismo da Revolução Francesa. JN aponta, no capítulo 5, que “antes de tudo, o republicanismo francês, que era e é o nosso, tem um fermento de ódio, uma predisposição igualitária que logicamente leve à demagogia, ao passo que o liberalismo, mesmo radical, não é só compatível com a monarquia, mas até parece aliar-se com o temperamento aristocrático.".

Eis aí meu primeiro espanto: o abolicionista, libertário e defensor dos negros era um aristocrata convicto. Vejam só nesta passagem, ainda no capítulo 10: "o que me impediu de ser republicano na mocidade foi muito provavelmente o ter sido sensível à impressão aristocrática da vida."

Um aristocrata que, a despeito de ter flertado com o republicanismo em sua juventude, tornou-se um ferrenho defensor da Monarquia e da família Real no Brasil. Talvez porque o movimento republicano dava-lhe uma impressão de inveja que JN não poderia tolerar, como ele mesmo destaca no capítulo 12:"no republicanismo, falo do sincero, do verdadeiro, há um ideal, mas há também um ressentimento das posições alheias, como no socialismo, no comunismo, no anarquismo há ideal, mas há também inveja, e desta é que parte, quase sempre, o impulso revolucionário."

Talvez por influência do seu pai, que foi um homem que JN admirou muito e que exerceu profunda influência em suas convicções políticas e religiosas, conforme ele aponta no capítulo 5:"é provável que em mim também existisse o embrião republicano; não duvido que, nascido em outra condição, não tivesse meu pai na mais alta hierarquia da política, se não descobrisse, como tantos outros que se revoltaram, modo de vencer o terrível multi sunt vocati, pauci vero electi [muitos são chamados, mas poucos escolhidos] da antiga oligarquia, eu também tivesse acompanhado o movimento republicano de 1870, do qual faziam parte alguns dos espíritos que me fascinavam. Se assim fosse, porém, estou certo que o movimento abolicionista me teria, mais tarde, destacado dele, e que o 13 de maio me identificaria com a sorte da monarquia libertadora. Se, apesar de tudo, eu me tivesse conservado republicano até 15 de novembro –nascesse eu em que condição nascesse, uma vez que fosse o mesmo que sou, isto é, que tivesse recebido no berço os mesmos rudimentos d’alma –, não tenho a menor dúvida de que o abalo, o choque do desterro do imperador teria posto fim à minha fantasia republicana e restabelecido a sinceridade e a lucidez dos meus sentidos políticos."

Ou talvez porque o espírito inglês predominou sobre as influências francesas e norte-americanas com que teve contato durante suas viagens. O próprio Joaquim nos explica: “talvez eu pudesse resumir o processo da minha solidificação política, dizendo somente que a monarquia faz parte da atmosfera moral da Inglaterra e que a influência inglesa foi a mais forte e mais duradoura que recebi." (Capítulo 9)

Mas o que seria estre tal “espírito inglês”? Um bocado de coisas, na verdade. Nosso amigo nos explica:

"A Monarquia constitucional ficava sendo para mim a mais elevada das formas de governo: a ausência de unidade, de unidade, de permanência, de continuidade no governo, que é a superioridade para muitos da forma republicana, convertia-se em sinal de inferioridade. Esse ideal republicano, de um Estado em que todos pudessem competir desde o colégio para a primeira dignidade, passava a ser a meus olhos uma utopia sem atrativo, o paraíso dos ambiciosos, espécie de hospício em que só se conhecesse a loucura das grandezas. Não era este, de certo, o termo da evolução humana, pela qual rezamos todos os dias (...)" (Cap 12) "Os Estados Unidos são um grande país, mas há nele, sem falar da sua justiça, da lei de Lynch, que lhe está no sangue, das abstenções em massa da melhor gente, do desconceito em que caiu a política, uma população de 7 milhões, toda a raça de cor, para a qual a igualdade civil, a proteção da lei, os direitos constitucionais são contínuas e perigosas ciladas." (Capítulo 12) ."É, porém, na sua feição política somente que considero neste momento o espírito inglês, e, ainda mais restritamente, o modo por que ele se manifesta nos movimentos reformistas, a influência que tem sobre os espíritos inovadores. Politicamente, o espírito inglês pode decompor-se em espírito de tradição, em espírito de realidade, em espírito de força e generosidade de progresso e melhoramento, em espírito de ideal: supremacia anglo-saxônia e supremacia cristã no mundo." (Cap. 13) "A esse espírito [de progresso e melhoramento] corresponde, na ordem política, a ideia de crescimento: as instituições tem o seu habitat como as plantas, as suas latitudes e terrenos próprios, condições especiais de aclimação, obstáculos e perigos de transplantação. Não basta que a reforma seja indicada pela experiência, baseada em uma forte verossimilhança; é preciso que tenha afinidade com as outras instituições. Esse espírito prático, positivo, é a experiência do utilitarismo, do espírito de criar e acumular riqueza, característico da raça. O utilitarismo manifesta-se em que as reformas devem ter uma vantagem econômica, pelo menos indireta, e justificar-se por algarismos. Ao lado, porém, da corrente utilitária, há a corrente imaginativa ou de ideal, moral, nacional, religiosa. (...) Só quando o orgulho britânico e a consciência cristã estremecem juntos e se unem em uma mesma causa, é que o sentimento inglês desenvolve a sua energia máxima. A inspiração da vida pública na Inglaterra vem em grande parte da Bíblia. A política e a religião sentem que terão sempre muito que fazer em comum, que uma e outra têm o mesmo objetivo prático – elevar a condição moral do homem, e o efeito desse último e, talvez principal elemento do espírito inglês, em relação às reformas, é fazer o argumento moral prevalecer sobre o argumento utilitário." (capítulo 13). "Em relação à Monarquia do Brasil aquele toque do espírito inglês bastou para traçar-me uma linha de que eu não poderia afastar-me, mesmo querendo." (Capítulo 13)

Curioso como que, para JN, o espírito inglês significa a tradição, a conexão indelével com a religião, o utilitarismo, o pragmatismo e a aristocracia. Para alguém que buscava subverter uma prática tão tradicional, aristocrata e pragmática como a escravidão (quer algo mais pragmático do que utilizar a violência para obrigar alguém a fazer algum trabalho de que você não gosta?), me espanta que o “espírito inglês” seja apontado como uma das razões a justificar sua defesa da causa abolicionista:

"Desse espírito inglês eu disse que tive apenas um toque. Na questão da abolição, entretanto, não me desviei dele. A abolição era uma reforma que o espírito inglês anteporia a todas as outras por toda ordem de sentimento. Se a abolição se fez entre nós sem indenização, a responsabilidade não cabe aos abolicionistas, mas ao partido da resistência. O meu projeto primitivo, em 1880, era a abolição para 1890 com indenização. (...) Com relação à lei de 13 de maio devo dizer que em 1888 era tarde para se pleitear a equidade da desapropriação diante de um movimento triunfante, quando já a maior parte dos escravos tinha sido liberalmente alforriado pelos senhores e o resto da escravatura estava em fuga, depois, sobretudo, de estar por lei consagrado o princípio de que a escravidão era uma propriedade anômala, a que o legislador marcava sem ônus para o Estado o prazo de duração que queria." (Capítulo 13)

Para um homem branco, rico e bonito como Nabuco, impressiona que a defesa da causa dos negros tenha consumido tanto de suas energias. Ele mesmo, no capítulo 11, diz que os encantos da aristocracia e da beleza o tentaram... “não posso negar que sofri o magnetismo da realeza, da aristocracia, da fortuna, da beleza, como senti o da inteligência e o da glória; felizmente, porém, nunca os senti sem a reação correspondente; não os senti mesmo, perdendo de todo a consciência de alguma coisa superior, o sofrimento humano, e foi graças a isso que não fiz mais do que passar pela sociedade que me fascinava e troquei a vida diplomática pela advocacia dos escravos."

Contudo, a beleza foi um tema bastante presente em sua vida. Afinal, como Joaquim precisamente aponta no capítulo 4: “cada um de nós é só o raio estético que há no interior do seu pensamento, e, enquanto não se conhece a natureza desse raio, não se tem ideia do que o homem realmente é.”.

Durante sua primeira viagem à Europa, Joaquim dedica-se à arte e à poesia. Publica um livro de poemas em francês que ele mesmo considera fraco. Ao final, decide que não tem talento literário o suficiente para se dedicar exclusivamente à literatura. JN comenta no capítulo 8: "Quanto à grande poesia, à poesia de imaginação e criação, poema, romance, balada que fosse, para essa eu seria incapaz, além da insuficiência do talento, pela falta de coragem para habitar a região solitária dos espíritos criadores, os quais vivem naturalmente entre figuras tiradas de si mesmos, sem vida própria, autômatos da sua inteligência e da sua vontade, como em um sonho acordado. (...) Quando mesmo, porém, eu tivesse recebido o dom do verso, teria naufragado, porque não nasci artista. Acredito ter recebido como escritor, tudo é relativo, um pouco de sentimento, um pouco de pensamento, um pouco de poesia, o que tudo junto pode dar, em quem não teve o verso, uma certa medida de prosa rítmica; mas da arte não recebi senão a aspiração por ela, a sensação do órgão incompleto e não formado, o pesar de que a natureza me esquecesse no seu coro, o vácuo da inspiração que me falta... Ustedes me entienden."

Eis um aspecto interessante deste personagem complexo e polifacetado da nossa História: a beleza, o eterno e o transcendental despertam o mesmo interesse que a dor, o destino (a fugacidade?) e as misérias dos escravos. Pergunto-me se a empatia ao destino do Outro tem alguma conexão com a sensibilidade ao Belo. Talvez para se captar a beleza seja necessário ter a mente aberta, disposta a ver, ouvir, sentir e amar de maneira intensa – e esta amplitude de si ao universo, de alguma forma, permita captar o que acontece ao Outro, também de maneira intensa, razão pela qual o sofrimento e a injustiça tornam-se impossíveis de não serem notadas e sentidas. Um espírito de profunda sensibilidade. Por sorte da nossa sociedade, decidiu dedicar-se à política; ou não se tratou de mera coincidência, pois o dedicar-se à política decorra naturalmente do dedicar-se ás Artes, como o próprio Joaquim defendeu no capítulo 26: "dizendo as letras, quero apenas dizer o que elas podem ser para mim: o lado belo, sensível, humano das coisas que está ao meu alcance, a ressonância, a admiração, o estado d’alma que elas me deixam... Foi a necessidade de cultivar interiormente a benevolência o que, talvez, me dispôs a trocar definitivamente a política pelas letras, a dar a minha vida ativa por encerrada, reservando, como vocação intelectual –a política não fora outra coisa para mim –o saldo de dias que me restasse para polir imagens, sentimentos, lembranças que eu quisera levar na alma..."

Pois é o Joaquim abolicionista quem construirá a poesia mais bela que o Joaquim poeta sentiu-se incapaz de realizar: "no entanto, depois do primeiro ensaio, a feição política tornar-se-á secundária, subalterna, será substituída pela identificação humana com os escravos e esta é que ficará sendo a característica pessoal, tudo se fundirá nela e por ela. Nesse sentido é a emancipação a verdadeira ação formadora para mim" (capítulo 11). Assim, o Belo será, para sempre, o traço mais marcante deixado por Nabuco em nossa História.

E porque, entre tantas causas nobres no mundo, JN escolheu o Abolicionismo? Nabuco nos narra a dor que sentiu quando um escravo que era maltratado pelo vizinho correu à casa de sua madrinha para pedir socorro: "Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me, pelo amor de Deus, que o fizesse comprar por minha madrinha, para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava." (Capítulo 20)

A partir deste encontro, o jovem Nabuco encontrará uma empatia profunda pelos cativos. Contudo, apesar da bela ideia de que a causa lhe surgiu por simpatia à dor do outro, em seguida aparece essa estranha ideia da saudade do escravo: "é que tanto a parte do senhor era inscientemente egoísta, tanto a do escravo era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ele povoou-o, como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte." (Capítulo 20).Não soa estranho que nosso maior abolicionista considere a escravidão como um "jugo suave"? De novo esta ideia aparece aqui: "Nessa escravidão da infância não posso pensar sem um pesar involuntário... Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo, alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nela." (Capítulo 20)

Essa ideia da “suavidade” e da “bondade” dos escravos perpassa bastante do pensamento de JN, que possui uma visão um tanto idealizada - talvez paternal em excesso? – dos escravos... E que estes teriam uma espécie de “senso de lealdade” aos seus senhores e à Monarquia... "Tenho convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de novembro, lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio. Não se poderia estar em contato com tanta generosidade e dedicação sem lhe ter um pouco adquirido a marca." (Cap. 22).

Mesmo que o interesse de Joaquim pelo constitucionalismo, pela poesia e pelo destino dos cativos o torne um homem singular, causa algum... estranhamento, para dizer o mínimo, a sua defesa da aristocracia, a bizarra ideia de que os negros abdicariam de sua liberdade para salvar a Monarquia, de que os escravos guardariam uma espécie de “senso de lealdade” perante os seus senhores e da importância da religião neste processo – mais como força moral do que como força política. Joaquim chegou a viajar a Roma e se encontrar pessoalmente com Leão XIII, para lhe pedir uma atuação mais incisiva sobre a questão da escravidão. A encíclica papal acabou saindo posteriormente ao ato da Princesa Isabel, o que levou JN a dizer que "o movimento contra a escravidão no Brasil foi um movimento de caráter humanitário e social antes que religioso" (cap. 22I). Contudo, a religião possui uma força política enorme, e Joaquim parece não enxerga-la desta maneira. A fé tem um papel importantíssimo na vida dele, mas não se vê em seu relato muitas referências ao poder temporal da Igreja. O catolicismo parece ser um fim em si mesmo para Joaquim, o que não despertou nem uma reflexão mais profunda sobre os efeitos materiais da Igreja na política, nem uma visão mais crítica sobre a omissão do papado, por décadas, acerca dos absurdos da escravidão.

Porém, mesmo que JN pareça um pouco cego a certas consequências da religião sobre a sociedade, o espírito abolicionista de Nabuco é aguçado – e por vezes surpreendente para o seu tempo. Joaquim menciona que em sua proposta original havia a ideia de que fosse paga uma indenização aos escravos libertos (capítulo 13); e é com tristeza que ele pondera acerca do refluxo do movimento abolicionista no dia seguinte à promulgação da Lei Aurea: "a realização da sua obra parava assim naturalmente na supressão do cativeiro; seu triunfo podia ser seguido, e o foi, de acidentes políticos, até de revoluções, mas não de medidas sociais complementares em benefício dos libertados, nem de um grande impulso interior, de renovação da consciência pública, da expansão dos nobres instintos sopitados. (...) A verdade, porém, é que a corrente abolicionista parou no dia mesmo da abolição e no dia seguinte refluía." (capítulo 22)

Arguto, perspicaz, determinado, sensível às injustiças, um tanto cego pela religião, Joaquim foi um abolicionista tenaz. No entanto, as características apontadas acima que causam estranhamento não podem ser dissociadas da sua personalidade. Em verdade, nenhum homem possui uma agenda completamente libertária – nem completamente conservadora. Ainda, é importante colocar o filtro do período histórico em que cada personagem se situa – os prismas de leitura e aprendizado sobre a trajetória das personalidades históricas precisam ser ajustados. Por isso, o significado de “abolicionista” para Joaquim Nabuco deve ir além da visão idílica que os livros escolares nos apresentam. Ser abolicionista significou, para ele, uma luta política, filosófica, religiosa e estética que durou quase dez anos. Mas também significou uma visão dos negros, da Monarquia e da religião que parecem bastante equivocadas nos dias de hoje. Aprender essas nuances nos torna leitores da nossa própria sociedade mais sagazes e sensíveis à trajetória política e histórica do nosso país.


Talvez as descrições de Joaquim nos livros de escola e enciclopédias virtuais devessem se referir a Joaquim Nabuco não como “político, diplomata, historiador, jurista, orador e jornalista brasileiro”, mas sim como o Belo, o Abolicionista e o Espírito Inglês. Estas adjetivações, por mais generalizantes que pareçam ser, fazem mais justiça ao dinâmico, polivalente, empático homem que derrotou a escravidão no Brasil, a despeito de todas as dificuldades que enfrentou.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Utopias e contemporaneidades



Estou agora com essa mania de comprar as primeiras edições dos livros que decido ler. Isso me levou à edição impressa, de 1900, do livro “Minha formação”, de Joaquim Nabuco. Parece uma boa ideia, mas a capa não era original (o livro foi reencadernado), e as páginas de vez em quando descolavam do livro. Mas acho que vale a pena entrar em contato com a escrita original, especialmente quando se paga módicos 50 reais na Estante Virtual para um livro impresso no apagar das luzes do século dezenove.

A impressão que tive, nas primeiras páginas, era a de que este seria um livro bem chato. O cerne do livro, que é o de mostrar como Joaquim Nabuco tomou partido e, em certa medida, liderança no movimento abolicionista, só aparece do meio para final. Talvez o livro pudesse ser mais curto, mais direto ao ponto. Mas, a despeito do que procuram aqueles que geralmente o leem, este livro não se chama “Como e porquê me tornei um abolicionista”, mas, justamente “Minha formação”. É a história de alguém que conta como foi a sua formação (dãããã) intelectual, estética, política, humana e espiritual.

A discussão sobre a escravidão coloca Joaquim Nabuco na vanguarda não apenas da ação política de seu tempo, mas também da apreciação histórica de como este fenômeno, o da escravidão, seria interpretado retrospectivamente. A célere frase de Joaquim Nabuco, e talvez a mais famosa de seu livro, ainda é plena de sentido em 2016: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.” (p. 216)

Entendo que essa é uma questão que deve ainda ser muito discutida, mas justamente por talvez ser esse o aspecto mais óbvio e de maior apelo na obra do autor, optarei por colocar o meu olhar naquilo que aparece de maneira mais marginal ao longo do texto.

Em primeiro lugar, e justamente por falar em olhar, vamos começar pelo ponto de vista do autor. É incômodo perceber uma certa arrogância no discurso de Nabuco. Parece que estamos a ver a história de alguém pouco humilde, que tudo viu, e tudo soube, e tudo fez. Mas Joaquim consegue transformar essa mesma arrogância em humildade (ou quase), quando demonstra total consciência disso. Destaco duas frases do autor: “O que me impediu de ser republicano na mocidade, foi muito provavelmente o ter sido sensível á impressão aristocratica da vida.” (p. 115) e “De certo, foi a mais nobre, a mais augusta das causas; mas o facto é que eu era alli o representante della, que em grande parte a dedicação, o sacrificio era por mim, como era meu o triumpho, minha a carreira, meu o futuro politico...” Nelas, o que se vê, para usar uma expressão contemporânea, é que Joaquim conhece precisamente o seu lugar de fala. Ele sabe que, naquele momento, é dele a voz de muitos que não conseguem se fazer ouvir e que, mesmo nessa condição, devido aos seus privilégios, ele é quem colherá os louros de qualquer sucesso.

Esse lugar de fala é importante não apenas para o objeto da ação política, mas também para a forma. Joaquim, que começa a vida com uma postura mais revolucionária, opta, ao longo de sua trajetória, por atuar de maneira mais institucional. É com uma certa tenacidade (p. 156-157) que a luta de Nabuco se constrói no parlamento e nas altas esferas (até ao Papa ele vai em prol da causa abolicionista), não nas ruas. Penso que é importante que haja esses dois espaços, que devem ser vistos como complementares. Uma coisa é a discussão acadêmica, a construção conceitual das ideias, outra coisa são as ruas, a forma como as pessoas se organizam para lutar por seus ideiais, etc. É claro que essas coisas se misturam, ainda mais na contemporaneidade onde tudo se mistura de forma tão intrínseca que quase não se consegue pensá-las isoladamente, mas é preciso garantir que cada um possa lutar pelo que acredita à sua maneira.

Ainda quanto às lutas, é interessante notar como Nabuco apresenta uma certa independência de pensamento. É fácil pensar que quem é contra a escravidão (um sistema que gera privilégios devido às características de cor/linhagem) seria também contra a monarquia (um sistema que gera privilégios devido às características de cor/linhagem). Mas ele não só não abraça a luta pela república, como defende de maneira enfática a sua opção pela monarquia. E também é católico. Essas opções parecem conservadoras, e talvez sejam, mas Nabuco parece operar numa certa dicotomia que se vale dessas estruturas e posições conservadoras para tomar o partido das causas liberais. Dessa maneira, segundo seu ponto de vista, é da monarquia que advém mais democracia, é da Igreja Católica que advém a liberdade para o corpo negro e é de uma vida aristocrática que advém um ideal progressista de liberdade.

Nesse sentido, é curioso perceber que Joaquim Nabuco é dos primeiros autores que parece prestar alguma atenção ao fato de que, além de negros, há também mulheres no Brasil. Em algum momento (não marquei a página), quando fala de Nova York, Joaquim coloca: “O menino americano, e quando se diz menino nos Estados Unidos entende-se a menina também (...)”. Já nas páginas 110-111, quando fala de sua opção monárquica, Joaquim afirma: “A monarchia moderna faria bem para sustentar-se em promulgar a lei salica em sentido contrario, isto é, em neutralisar ainda mais o poder neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das mulheres. Seria isso fazer politica experimental, que não se basearia sómente no esplendido e pacifico jubileu da rainha Victoria e na calma relativa em tempos crueis para a Hespanha da regencia de D. Maria Christina, mas no profundo interesse das massas pelos dramas de que a primeira figura é uma mulher.” É claro que essa postura do autor pode ter mais a ver com um certo marianismo, que entende a mulher como um grande colo sobre o qual os homens podem se aconchegar (ainda mais conhecendo as suas opções religiosas) do que com uma verdadeira opção pelo empoderamento feminino. Esse marianismo (não confundir com marinismo; Maria é a mãe dos católicos e, Marina, a dos evangélicos) também reverbera na figura da própria Princesa Isabel, cuja imagem também foi construída a partir de uma aura de bondade, misericórdia e redenção. Entretanto, mesmo apesar dessa santificação da mulher e, especialmente por causa da passagem sobre o menino americano “entende-se a menina também”, creio ser possível perceber algo como um proto-feminismo no discurso de Joaquim, especialmente se considerarmos a forma como as mulheres eram descritas nos ensaios do século dezenove e no início do século vinte: com exatos zero caracteres. Mas gostaria de ouvir a opinião das meninas sobre esse ponto.

Ainda sobre as mulheres, Nabuco dá grande importância ao curto reinado da Princesa Isabel, e nos apresenta uma tese bastante interessante (p. 248-249): a de que os três reinados no Brasil são avanços da democracia e da liberdade. No de Pedro I, a independência; no de Pedro II, a unidade nacional; no de Isabel, a abolição da escravatura. Eu ainda colocaria o zerésimo reinado: D. João VI, como aquele da fundação das bases institucionais para o avanço do Brasil. Penso que 1808 foi, possivelmente, mais importante do que 1821, mas isso já é outra discussão.

A admiração dos reinados por parte de Joaquim Nabuco acontece porque ele não entende a nobreza e a realeza apenas como entidades de privilégio. Ele chega, em alguns pontos, a discutir a sua defesa da monarquia com argumentos complexos e bem embasados, mas o ponto central da discussão é que ele percebe a forma de governo como algo de certa maneira distanciado das noções de democracia e de opressão. Isso faz bastante sentido. Ainda hoje, existem monarquias com estado de bem-estar social desenvolvido e regimes presidencialistas com altos índices de desigualdade. Acho que não é possível desenvolver uma relação biunívoca entre a forma de governo e as condições da população, no que diz respeito às liberdades e aos direitos de que gozam. É como diz o próprio autor, na página 205: “A grande questão para a democracia brasileira, não é a monarchia, é a escravidão.”.

Esta, no Brasil, funcionava por dois eixos básicos: a opressão pela cor e a opressão pelo trabalho. Isso ocorria de maneira unificada. Nos dias de hoje, essas coisas ocorrem de maneira dissociada uma da outra: existem os pretos, e existe o trabalho escravo, que está associado muitas vezes aos imigrantes e a uma certa xenofobia.  As formas de oprimir se multiplicaram.

A escravidão tinha a vantagem (do ponto de vista da organização das lutas) de concentrar boa parte da opressão da vida brasileira antes de 1888. Na página 246, Nabuco explica um pouco como funcionou o movimento abolicionista: “O movimento contra a escravidão no Brasil foi um movimento de caracter humanitario e social antes que religioso (...) Era um partido composto de elementos heterogeneos, capazes de destruir um estado social levantado sobre o privilegio e a injustiça, mas não de projectar sobre outras bases o futuro edificio. (...) A liberdade por si só é fecunda, e sobre os destroços da escravidão refar-se-ha com o tempo uma sociedade mais unida, de idéas mais largas. (...) A verdade porém é, que a corrente abolicionista parou no dia mesmo da abolição e no dia seguinte refluia.

A quem se pensava como progressista, aquela parecia a única luta a ser travada, ou ao menos a mais importante delas. Sobre esta luta, mais uma vez Joaquim: “Mas a lucta pela justiça é isso mesmo, é o sacrificio de gerações inteiras pelo direito ás vezes de um só, para resgatar a injustiça feita a um opprimido, talvez um estranho.

É curioso como Joaquim percebe o negro escravizado como um ser humano, o que, apesar de óbvio, não parece ser a tônica dos séculos dezoito e dezenove. Na verdade, como já vimos com Celso Furtado, esse pensamento permanece até o século vinte, embora de maneira cada vez mais sutil e sub-reptícia. É claro que Nabuco estava longe de fazer o elogio da mestiçagem que Gilberto Freyre faria nos anos 1930, mas já é possível perceber nele essa mistura de erudição, aristocracia e sensibilidade, de maneira que ao lermos o trecho da página 113-114, poderíamos perfeitamente pensar estar lendo Gilberto e não Joaquim: “Ha, entretanto, poesia real, verdadeira, no alimento são, natural, patrio; ha sentimento, tradição, culto de familia, religião, no prato domestico, na fructa ou no vinho do paiz. A nós, do norte do Brasil, creados em engenho de canna, o aroma que rescende das grandes caldeiras de mel nos embriaga toda a vida com a atmosphera da infancia.

É esta sensibilidade que faz com que Nabuco se aproxime de André Rebouças, o engenheiro negro. Penso que a sensibilidade carrega consigo uma dose de utopia, que é a verdadeira força motriz de quem pretende mudar alguma coisa no mundo, seja pela via parlamentar, pela revolucionária, ou até mesmo pela artístico-estética. Nesse tema, temos Nabuco falando sobre Rebouças: “(...) este itinerario, que elle traçára para a fuga de escravos de S. Paulo para o Norte, pura phantasia, mas tão cheio para todos nós de vestígios de sua originalidade, de toques da sua generosa sensibilidade, quase impessoal.” Este itinerário (que é a imagem que está no topo do texto) aponta um caminho para o Ceará Livre. Ele é mesmo bonito e se situa na fronteira exata e tênue entre o sonho e a possibilidade.

O estado do Ceará, no século dezenove, aparece como uma força progressista. É lá que está o município de Redenção, que primeiro aboliu a escravatura em 1883. Hoje, este pequeno município é sede da Universidade da Integração Luso-Afro Brasileira (UNILAB). Já em 1884, o movimento abolicionista se expande de tal maneira que é promulgado o decreto de libertação dos escravos de todo o estado do Ceará em 25 de março de 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. Ainda sobre esse estado, o jovem escritor cearense Adolfo Caminha (morto aos 29 anos de tuberculose) publicou em 1895 o seu romance “O bom-crioulo”, que é considerado o primeiro romance homossexual da literatura e trata de amor e sexo entre marinheiros dentro de um navio de guerra. Tenho a impressão de que acontece uma confluência de forças no Ceará neste final do século dezenove que dota o estado de uma potência progressista que não sei se voltará a se repetir ao longo do século vinte. Essa é uma parte da história brasileira que conheço pouco, e tenho interesse em conhecer mais.

Mas voltando ao Nabuco e às utopias, acabamos por ver nele algo de universal (ou quase) na história dos políticos progressistas, que é a sensação de estar do lado certo da História, independente do seu julgamento no presente. É a velha máxima do “A história me absolverá”, dita por Fidel Castro, mas com a erudição e a poesia que são garantidas pela personalidade de Nabuco e pelo apuro estético do final do século retrasado. Diz Nabuco, na página 291: “O juizo da multidão que hoje nos eleva ou nos deprime, esse representa apenas a poeira da estrada.

Por fim, se há esta universalidade associada à utopia, há quatro coisas ditas pelo autor que, longe de se pretenderem universais, são incrivelmente contemporâneas, fixadas mesmos no tempo de agora.

A primeira é o uso do vocábulo ‘lufa-lufa’ (p. 194). Certamente, outras pessoas também acharam que este termo era um nome próprio que só serviria como denominação de uma das casas do Harry Potter. Mas o vocábulo existe em português e, segundo minhas consultas, o significado do termo, um substantivo feminino, é: ‘agitação e pressa na maneira de proceder; afã, azáfama, corre-corre’. Interessante, não?

A segunda é uma frase da página 250, que poderia perfeitamente ter sido escrita no Twitter em 2016: “Gratidão infinita pelo 13 de maio.” Pois é, Joaquim assim o disse, desse jeito.

A terceira é quando ele se refere a um amigo que praticamente não publica livros, mas influencia os tomadores de decisão. Na página 298: “O horror da scena, hoje do mercado, não póde ser um signal de inferioridade intelectual.” Talvez nos dias de hoje, o horror de que ele fala deveria também ser estendido à Academia. Em uma época tão diversa e múltipla, apesar da lógica ‘publish or perish’ que o mundo acadêmico insiste em querer fazer valer, sabemos que o conhecimento circula de várias maneiras: formais, informais, em rede, etc... É bastante alentador notar que Joaquim já percebia que o conhecimento que não estava na cena ou no mercado, isto é, o conhecimento não sistematizado, também tinha o seu valor. Em 2016, há ainda muita gente que não é capaz de pensar as coisas dessa maneira.

A quarta e última coisa é uma frase, da página 249, que cai como uma luva nos dias de hoje. Acredito que todo mundo é capaz de entender o porquê: “De certo o exilio do imperador foi triste, mas também foi o que deu à sua figura a magestade que hoje a reveste.” Atualíssima, não?

Talvez eu devesse terminar este texto com essa citação ao exílio do imperador, mas há ainda uma última coisa a dizer. Sobre a estrutura do livro, como obra estética, percebo que ele é cercado por uma coisa etérea, religiosa, que o atravessa de cabo a rabo. E que o livro, apesar de começar interessante, falando sobre as lições políticas aprendidas com Bhageot, de repente vai ficando meio lento, quase chato e repetitivo. Depois, vão entrando os elementos mais políticos e mais quentes do livro. Nesse momento mais quente, é como se essa parte etérea quase não estivesse lá, mas ela está. Então, ela vai novamente dominando o livro, que se encerra sob esses auspícios divinos, mas com esse fundo também político; eles ficam como que mesclados, ao final, mas acenando sempre para o etéreo.

Toda essa explicação, na verdade, é para dizer que a estrutura do livro me lembrou muito a de uma música de pouco mais de sete minutos, que coloco ao final do texto, de uma banca sueca chamada Garmarna. O nome da música é ‘Unde Quocomque’, e, assim como ‘Minha formação’, também apresenta uma espécie de oscilação pendular entre o etéreo e o político, a erudição e a luta, e apresenta, ao final, um panorama onde essas esferas da vida, aparentemente díspares, conseguem conviver de maneira harmônica e sem muitos conflitos. Trata-se, ao fim e ao cabo, de duas obras que procuram a beleza, onde quer que ele esteja.