Acabo de ler
“Os Sertões”, de Euclides da Cunha. É uma leitura longa, difícil, fastidiosa.
Mas, como já dizia Fernando Pessoa: ‘quem quer passar além do Bojador, tem que
passar além da dor’. Ou, alternativamente, como já vi escrito em camisetas do pessoal lá da academia:
‘No pain, no gain’. Ninguém disse que
seria fácil.
Neste livro
belo e tão árido quanto o próprio sertão que descreve, Euclides da Cunha se
propõe a narrar a campanha militar de Canudos nos últimos anos do século XIX.
Acaba fazendo um retrato, tão fiel quanto possível, daquele homem e daquele
espaço que ficaram esquecidos ao longo dos séculos. Não civilizados como os
homens do litoral ou os paulistas do interior (que à essa época já despontavam
como cafeicultores e pré-industriais), mas também não privados de todo contato
com a ‘civilização’, como os índios amazônicos, o sertanejo nordestino, o
‘jagunço’, no descrever de Euclides, emerge como algo entre o civilizado e o
selvagem. Nem tão selvagem que merecesse a proteção dos jesuítas (ou da FUNAI,
nos dias de hoje), nem tão civilizado que merecesse a comoção da classe média
após algum ataque. Sem proteção nem de um lado nem de outro, sem ser morador
dos Jardins e sem ser índio do Alto Xingu, os jagunços foram a Geni da primeira
república.
A primeira
coisa que me ocorreu quando acabei de ler o livro foi um trecho sobre o Velho
do Restelo, que está no livro ‘Os Lusíadas’, de Luís de Camões. Esse trecho,
que fala sobre a época das grandes navegações portuguesas, narra o momento no
qual os portugueses estão à beira da praia partindo para lugares ignotos, em
que chega um velho para lhes falar. Eis o que o velho diz:
"Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C'uma aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
- "Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
- "A que novos desastres determinas
De levar estes reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos, e de minas
D'ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
A conexão
d’Os Sertões com esse trecho do Velho do Restelo são várias. A primeira delas é
que se trata de uma saída para um lugar completamente desconhecido. Canudos era
um lugar longínquo e distante, tanto quanto o Novo Mundo e as Índias, que os
portugueses tão agudamente buscavam. Outra semelhança é a travessia. Se o
sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão, a gente não sabe. O que a gente
sabe é que tão tumultuada, perigosa e cheia de privações quanto a travessia
marítima dos portugueses foi a travessia dos sertões pelos soldados, no caminho
que vai do litoral baiano até Canudos. E, por fim, o último ponto de conexão é
a causa. Enquanto os portugueses se lançaram ao mar sob os auspícios da
Majestade portuguesa, os soldados se embrenharam caatinga adentro para defender
a República. Essas causas são válidas, na medida em que são encaradas como
nobres pelos tripulantes/soldados. Mas que famas lhes prometerá? que histórias?
Que triunfos, que palmas, que vitórias?
Fico pensando
no soldado que saiu de sua boa, velha e mansa vida nos quartéis das cidades
brasileiras para ir para Canudos. Ele saiu dizendo às suas mães, noivas, irmãs
e esposas que iria a Canudos defender a república. Mas depois de uma
longuíssima jornada em que passou fome e sede, chegou a Canudos já roto,
esfarrapado, fraco, vacilante. Chegada a hora do combate, o soldado já não era
diferente do jagunço contra o qual atirava.
Tratava-se
portanto de uma guerra de iguais. Aqueles que defendiam a república e aqueles
que tinham Antonio Conselheiro como enviado de Deus à Terra eram iguais: constituíam-se
da mesma paleta de cores desuniformes, eram pobres, mal sabiam porque lutavam
uns contra os outros. Mas eram movidos pela República, que os veio salvar das
agruras do Império; eram movidos pelo enviado de Deus, que os veio salvar dos
pecados da Terra. Eram iguais até na esperança em suas entidades abstratas.
Pode-se dizer
que existe algo em curso hoje, que muito se parece com essa situação: o
genocídio da juventude negra do país. Jovens pretos da periferia são mortos por
jovens pretos policiais. O genocídio da juventude negra no Brasil é, de certa
forma, um fratricídio. Irmãos matando irmãos, iguais matando iguais.
Fico pensando
no policial que sai de sua não tão boa, não tão velha e não tão mansa vida dos
quartéis das cidades brasileiras para ir para a periferia. Ele sai dizendo às
suas mães, noivas, irmãs e esposas que vai para favela ‘matar vagabundo’,
‘acabar com a raça dessa bandidagem’. Esse policial se considera um homem de
bem, e sai de casa imbuído da certeza de que sai para fazer a coisa certa. São
dotados de um forte sentimento de maniqueísmo (como os soldados, como os
jagunços), de que estão lá para fazer o bem: mas só o que fazem é matar os seus
semelhantes, numa sangrenta e diuturna luta fratricida.
Canudos
acabou, mas não acabou esse tipo de relação que fica tão bem marcada nesse
episódio. Antes existindo em relação aos soldados, e hoje nas mais diversas
operações policiais pelo país, o que existe hoje é essa estranha relação de
cumplicidade. Embora, dentro dos paradigmas que escolhemos, seja difícil
aceitar que alguém escolha ser policial, agindo como um policial típico e
fazendo os achaques que os policiais fazem, é importante não culpá-los, ao
menos pela escolha inicial da profissão. Numa sociedade em que aquele que é
preto e pobre já nasce num front de combate, é razoavelmente inteligente
escolher o lado que tem legalmente as armas, e que recebe um tapinha nas costas
dos poderes instituídos. Ser policial hoje no Brasil é aceitar essa
cumplicidade com os donos do poder. Às vezes, essa relação chega a parecer uma
relação de vassalagem, uma vassalagem negra, em que a escolha de ser policial é
como um pagamento de tributo às diversas instâncias brancas do poder
instituído, aos suseranos das empreiteiras e dos bancos, alheios a toda essa
guerra. É como se fosse uma vassalagem porque escolher ser policial é uma
opção, embora nem sempre verdadeira, por comprar um pouco mais de proteção, porque
no front de combate, dentro das duas únicas opções fornecidas, matar é a única
chance de não ser morto.
Foi à memória
desses que mataram morrendo e que morreram matando que Euclides da Cunha
escreveu ‘Os Sertões’. Aliás, tal como ‘Eu não sou cachorro, não’, do Paulo
César de Araújo, Euclides da Cunha resgata uma história que por pouco não caiu
no esquecimento. Não fosse Euclides e essa história ficaria marcada pelas
impressões sensacionalistas e pouco profundas dos jornais da época. Nesse
trabalho investigativo, Euclides da Cunha, que esteve em Canudos, confere a
todas aquelas pessoas que viveram aquele episódio o direito à memória. É
importante lembrar, registrar, não esquecer.
Mas às vezes
parece que todo esse blablablá de direito à memória não passa de utopia dos
esquerdinhas que somos. Afinal de contas, enquanto jagunços e soldados se
matavam no interior do Brasil, a elite brasileira da capital federal discutia
os livros de Machado de Assis e acompanhava as modas da Rua do Ouvidor. De qual
direito à memória exatamente estamos falando quando a chacina de Osasco/Barueri
foi apenas mais um assunto corriqueiro, quando muito, daqueles que discutiam o
novo filme do Godard e planejavam mais uma viagem para a Europa sentados
confortavelmente num dos bares da Vila Madalena?