segunda-feira, 13 de junho de 2016

Nada de poder, um pouquinho de saber; e o máximo possível de sabor




Nesta rodada de leituras o Grupo de Estudos de Botafogo realiza a leitura e o debate do livro "Morte e Vida dos Bandeirantes", de Alcantara Machado. Confesso que não fiz uma avaliação muito positiva a princípio.... mas qual a minha surpresa quando me deparo com um livro de leitura muito prazerosa - mais do que isso: uma leitura saborosa. Pois como já ensinava o mestre Roland Barthes em seu clássico "A Aula", não há nenhum sentido em se realizar novas leituras sem seguir a fórmula da sabedoria: "Nada de poder, um pouquinho de saber; e o máximo possível de sabor (já que, em sua origem latina, sapare quer dizer tanto saber quanto ter sabor)".

Então comentarei um pouco sobre esta saborosa leitura, nas partes que me pareceram mais interessantes e - porque não dizer: - degustáveis.

Na descrição do grande guisado que constitui a formação da São Paulo colonial, logo de início me chamou  atenção a informação de que a terra não valia nada até o século XVII. Para um país que hoje vive um boom especulativo com o valor dos imóveis, é curioso perceber que em sua formação o atual Estado mais rico do país demonstrava pouca vali para a terra. Como nos conta Alcantara Machado:



"Mas em rigor não há motivo para espanto. Que vale a terra sem gente que a povoe e a aproveite? O que falta aos paulistas não é o chão, que aí está, baldio e imenso, à espera de quem o fecunde. Faltam-lhes, sim, a ferramenta, o vestuário, tudo quanto a colônia não produz ainda e tem de vir, através de obstáculos sem conta, da metrópole distante." (Pagina 19, capitulo 2)


Mesmo com o baixo valor da terra, naquela época o poder político e a respeitabilidade social gravitam em torno daquele que é proprietário de terras - tal qual a Europa medieval de alguns séculos atrás:

"Repete-se no Brasil o mesmo fenômeno observado na idade média européia. A propriedade territorial é então a base da relação entre os homens. Fonte de todos os direitos políticos, assume, por assim dizer, as feições de soberania. É privilégio dos homens livres. Nem as mulheres, a princípio, são admitidas a exercê-lo." (página 21, capitulo 2)

(E não é assim até hoje?)

Em contraste com os tempos modernos, porém, Machado nos conta da supremacia da vida rural em contraste com a vida urbana. A vila que forma a São Paulo colonial é um miserável e triste ajuntamento de casas durante todo o período colonial em razão da supremacia da vida rural sobre a urbana:

"A pobreza da vila é de explicação facílima. Resulta da supremacia inconteste do meio rural sobre o meio urbano, supremacia que não entra a declinar senso mais tarde, com o advento do Império." (capítulo 4, página 31)

E lá vai Machado anos contar como um dos principais ingredientes do nosso "guisado à paulista" era o grande domínio rural dos primeiros séculos, que constituiu em verdade um mundo em miniatura:

"Dentro de seu domínio tem o fazendeiro a carne, o pão, o vinho, os cereais que o alimentam; o couro, a lã, o algodão que vestem; o azeite de amendoim e a cera que à noite lhe dão claridade; a madeira e a telha que o protegem contra as intempéries; os arcos que lhe servem de broquel. Nada lhe falta. Pode desafiar o mundo." (capítulo 4, página 37)

Mas o que é um belo guisado sem um pouco de tempero, bem à moda brasileira? O Texto belamente escrito por Machado nos presenteia com cheiros verdes, pimentas-rosas e pequis a todo tempo. Vejam por exemplo este belo relato feito pelo jurista sobre a vida familiar paulistana durante a colõnia (ainda mais se comparada à leitura anterior do Grupo: o texto pobre, tão sorumbático quanto o mobiliário dos colonos paulistanos, do Jessé de Souza):

- ver início do capítulo 5, página 38. Ver final capítulo 7, página 68

Ainda na descrição da vida paulistana, o autor nos indaga com a seguinte reflexão: "Haverá coisa mais relativa do que o luxo?" É que Alcantara Machado nos descreve, com riqueza de detalhes, como é a casa e a vida do colono paulistano. Mas, em casas com tão pobremente adornadas, há uma aparente abundância de louças e, no século seguinte, móveis com detalhes em ouro e prata. Por que? 

Eis a explicação que nos é oferecida:

"Vaidade, luxo, ostentação? Em parte. Esse não é, porém, o único motivo por que os homens de então convertem em trabalhos de metal  precioso quintal tamanho de seus haveres. Mais de um terço de quanto possuem. Reduzindo a joias, prata lavrada e barretas de ouro uma parte considerável da sua fortuna, os paulistas antigos, como os romanos do Império e a nobreza medieval, tem em vista a constituição de uma reserva ou tesouro de fácil transporte e realização imediata. Não há crédito organizado, nem segurança efetiva. O que hoje parece explosão de vaidade é naquele tempo intimação das condições econômicas e da situação precária da ordem pública." (capítulo 6, página 48)

Passamos, na nossa receita de "guisado à paulista", pelos ingredientes, pelos temperos, pelas carnes, pelas receitas. Alcantara Machados nos narra o modo de vida, entra às casas da paulistéia (ainda nao desvairada), desnuda os móveis, as roupas, as crenças, a religião. Nos descreve a pobreza da presença do Estado lusitano - que está a se preocupar mais com coisas tais como o valor máximo cobrado pelos alfaiates das peças produzidas (capítulo 7, página 53) e com o tipo de vestimenta das escravas (página 58-59 - uma vez q há um regramento municipal proibindo as céticas de usarem vestido de seda) do que com a segurança dos colonos. Mas vá lá: sabem as almas lusitanas que com vestuário e com os santos não se brinca. 

(Afinal, quem há de se importar com coisas tão mundanas e pequenas como o cumprimento das leis e a segurança pública?)

No cozido cheio de sabor que á o texto de Machado, não poderia faltar um toque picante de páprica, um pouco do humor mordaz do jurista de escol: "Em meio de tantas coisas deslumbrantes avulta a ausência de certas coisas pequeninas. Os lenços por exemplo. Não passam, os arrolados, de vinte, distribuídos entre 11 pessoas. É que naquele tempo só a gente educada limpava o nariz.... Na manga do vestido. E, quando se vulgarizou o uso do lenço, mandava o bom-tom que ele não entrasse em atividade, senão depois de terem o indicador e o polegar desempenhado a parte mais considerável da tarefa." (Capítulo 6, página 63)

(Aparentemente, limpeza e asseio estão na categoria da segurança pública e do cumprimento das leis: coisas mundanas e pequenas.)

Talvez justamente por ser o nosso autor/chef um jurista de peso é que apareçam diversas referências sobre o funcionamento da justiça, das leis e do aparato judicial. Longe de fazer longas narrativas procedimentais sobre estes aspectos (como é típico nas faculdades de Direito), nosso autor/chef parece se deliciar com as especificidades do funcionamento da justiça na época da colônia. Uma das coisas que mais me chamou a atenção era o personalismo com o que a justiça era exercida - e como seus nominados eram escolhidos:

"Sabem a maioria por que Salvador Cardoso de Almeida ontem a investidura? Desposando uma das filhas de seu antecessor. A vara de juiz figurava no enxoval da noiva. É o que se vê do testamento do sogro, Antonio Raposo da Silveira: 'sou juiz dos órgãos com provisão que tenho do Senhor Marques de Cascais, o qual me concedeu com cláusula e mercê de poder nomear em uma filha para ajuda de seu dote; e assim nomeio minha filha ao qual trespasso a nomeação e faço na forma de direito'. Sinceridade e franqueza de que não usam, em igualdade de circunstâncias, os sogros de hoje em dia." (Página 77, capitulo 8)

(Novamente: e não é assim até os dias de hoje? Vejam a escolha da filha de um certo ministro o STF para ser desembargadora do Tribunal de Justiça sem concurso público nem prova de títulos....)

Acrescidos os ingredientes, hora de mexer o guisado para dar ponto. E na colônia de São Paulo o que mexe na vida dos colonos é o dinheiro (como em qualquer outra sociedade colonial do Brasil). Mas na São Paulo colonial em particular, o que se destaca é a falta de moeda circulante, e o papel das heranças na vida econômica da vila. Marx já dizia (foi mesmo ele?) que a herança era a principal responsável pela manutenção do sistema capitalista. Nosso amigo Alcantara Machado parece ter sido influenciado pelo filósofo prusso. O autor cita o problema da falta de pecúnia na São Paulo colonial e aponta a importância dos órfãos na oferta de crédito para a vila naquele período:

"A moeda que existe se encontra nas mãos de alguns ricaços e nos cofres dos órgãos. O papel desempenhado por estes últimos na vida econômica do burgo paulistano pode ser comparado sem embargo ao dos estabelecimentos bancários da atualidade." (página 100, capítulo 10)

Ainda sobre este tema, achei curioso o registro sobre a honestidade dos devedores na paulisteia colonial. Diz nosso jurista:

"Aí temos uma ilustração convincente de quanto é vigoroso, na sociedade fazendeira da colônia, o sentimento de similitude social a que alude Oliveira Viana. Incapaz de faltar à palavra, seguro da honestidade própria, o testador confia cegamente na honestidade e na palavra de Deus pares." (Página 103, capitulo 11)

(Que bom seria se os banqueiros e políticos paulistas contemporâneos mantivessem o mesmo grau de zelo e confiança na honestidade dos outros - e na sua própria....)

Por vezes alguns comentários mais ácidos parecem amargar a receita do guisado. Por exemplo, achei um pouco dúbia, por vezes, a posição dele sobre a escravidão? Alcântara Machado descreve os modos daqueles tempos de modo prazeroso e leve, quase como quem se diverte enquanto nos apresenta sua receita. Mas por vezes o estilo ameniza temas que são por demais sensíveis para serem adocicados. O tom que usa é quase condescendente quando fala da escravidão. Reparem só:

"A dissolução dos costumes pela escravidão se faz sentir assim na colônia como na metrópole. Em toda a Espanha, para onde afluem manadas de africanos, a corrupção triunfa. Aqui a incontinência tem a força irresistível de uma necessidade histórica. Sem ela, a fusão das raças não seria possível ou se retardaria indefinidamente. É ela que precipita e enobrece a mestiçagem, fazendo prevalecer nos cruzamentos o sangue europeu." (Página 112, capitulo 12) E ainda, um pouco adiante: "Tudo isso depor em favor daquelas almas tão simples e direitas. Ainda quando contestam a paternidade, fazem-no de modo que os nobilita." (Página 114, capitulo 12)

E também sobre a Santa Inquisição e os judeus.  Ao descrever as devoções dos Bandeirantes, Machado inicia afirmando que o judaísmo não subverte apenas a unidade da fé no território lusitano, mas também a unidade nacional. Mais adiante, afirma que o Santo Ofício seria um "progresso" diante do que se fazia "sem forma nem figura de juízo, por decreto sumarissimo das multidoes, no pretorio anárquico das ruas." (Página 141, capitulo 13). 

De qualquer forma, atesta que o protestantismo calvinista não sobrevive em terras tropicais e que o Brasil não recebeu nenhuma Sucursal do Santo Ofício (aqui caracterizada como "calamidade" pelo autor - página 143), mas recebeu um comissário, cuja única atribuição é preparar os autos para envio para Portugal, que realizará o julgamento. Aparentemente, as atuações dos comissários do Santo Ofício no Brasil são brandas na colônia até o século XVIII. São Paulo tem poucos atingidos pelos julgamentos, que foram mais cruéis com os nativos do Rio de Janeiro. 

(Mas um julgamento cruel por influencia da religião não é danoso sempre, não importando a sua extensão?)

Alcantara Machado por vezes compartilha um pouco de sua visão crítica em relação à religião: "Mais danosa à religião do que as doutrinas heréticas é a vida escandalosa em que chafurdam os sacerdotes exportados da metrópole para a América Portuguesa. Dignidades se cônegos passam a existência em pecado público, pregando com o exemplo e com a palavra o direito dos senhores ao corpo das escravas. Não há violência ou fraude contra os indígenas que lhes mereça condenação: chamam cães aos ameríndios e tratam-nos como tais." (Página 149) "É admirável a segurança com que afirma ao doador: 'e porque, por via destes meio tostão, fica livre das penas do Purgatório a Alma, pela qual foi vossa tentação dar a dita esmola'. Que poder tem naquele tempo meio tostão!" (Página 152)

Mais uma pitada de um aparente pré-conceito do autor em seu saboroso texto.... Tal qual outros comentaristas do Brasil já lidos pelo Grupo, Alcantara coloca bastante de sua opinião pessoal em suas conclusões.... E por vezes a opinião pessoal macula o saboroso texto que nos entrega, como nesta passagem sobre o mestiço: "com leves diferenças de substância é de forma, a erronia e abusão do século XVII continua a ser a religião do caboclo do século XX. (....) Em suas crenças o sertanejo é tão mestiço como em sua constituição física. Reflete as concepções das três raças de que provem: o misticismo, o fetichismo, o animismo. Imagine-se um santuário em que Jesus é a Virgem se acotovelam e acompadram com sacis e orixás.... Nada mais lógico, afinal, do que esse disparate. Só as criaturas de mentalidade superior se contentam com as abstrações." (Página 161)

Contudo, a despeito dos vieses em relação a judeus, à escravidão e às crenças dos mulatos, me pareceu bastante avant guarde no trato com a questão dos indígenas. Como bom jurista que é, Alcântara Machado nos mostra os "jeitinhos" que os colonos dão para burlar os regramentos advindos da Coroa que proibiam a escravização dos indígenas - e como tais "jeitinhos" são odiosos. Pois, como bem aponta o autor: "Ninguém havia com força bastante para executar os mandamentos de Roma ou Lisboa." (Página 120). 

Aqui, uma pitada de açafrão, ao se apontar a influência - e posterior deturpação - da legislação castelhana relativa aos cativos da terra. Deturpação esta feita às franjas da lei, como são sempre muito bons os brasileiros de todas as gerações em fazê-lo: "Mais eficaz e mais elegante que resistir às leis é sofisma-las. Assim pensavam e faziam os vicentistas. Por muito elásticos que fossem os casos em que a legislação metropolitana permitirá redução dos selvagens ao cativeiro, os colonos se viam frequentemente embaraçados quando procuravam legitimar com o registro na provedoria a sua posse sobre as vítimas dos descimentos. Como remover esses embaraços? Criando um estado intermediário entre a liberdade e a escravidão que tivesse desta a substância e daquela as aparências." (Página 122) 

Ali, um pouco mais de manjericão, ao se apontar o costume como ferramenta para justificar os maus-tratos dados aos gentios da terra: "Na ausência de um texto legal que lhes autorizasse a violência, os paulistas invocavam o foro e o costume, ou o estilo da terra, com a declaração de que se deviam do gentio na conformidade que os mais moradores desta vila o faziam, e consoante a permissão da justiça ordinária. (...) Aqui, como em toda a parte, a malícia dos homens brancos transformou em escravidão, disfarçada a princípio e ai depois desabusada e franca, o regime tutelar idealizado pelos criadores do instituto." (Página 124). Em seguida, a burla se dá com a restrição à venda dos cativos. Segue a narrativa de Machado: "Com o muito que se permitem não se contentam os paulistas. O proprietário, como o enamorado, tem a fome do absoluto. E a inalienabilidade é uma restrição. (...) Começa o trabalho de nivelamento pelo repudio da praxe antiga que impedia a avaliação judicial das peças da terra. (....) Em geral, a justiça e as partes não se atrevem a feira de frente a lei e empregam um estratagema de impressionante ingenuidade. Não mandavam avaliar os índios que continuam a ser inestimáveis. O que se avalia é a atividade que representam, o serviço que são capazes de prestar, o rendimento que produzem." (Página 127) 

À medida que o tempo passa, mais e mais os nativos da terra são confundidos com os negros escravos, com os quais compartilham o triste destino da escravidão. Certificando esta realidade, Machado arremata, tristemente: "confundidos no rebanho, perdem os brasis o último vestígio de sua personalidade." (Página 135)

(e que saboroso chamar os nativos de "brasis".... imaginem o arrepio que isso não daria a um Roberto DaMatta ou mesmo a um Paulo Prado...)

Há por fim os dois capítulos finais sobre o medo da morte e o papel do sertão, que são prazerosíssimos de serem lidos, razão pela qual abdicarei de transcrever trechos e deixarei a cada leitor o prazer da leitura. Digo que este foi um dos livros mais saborosos que já li no Grupo de Estudos. E que Alcantara Machado conseguiu, ao apresentar o caldo de cultura que formou o guisado à paulista da sociedade colonial vicentina, nos dar um panorama delicioso de como viviam aquelas pessoas, das limitações do seu tempo, dos sonhos, crenças e perspectivas daquelas pessoas. 

Se todos os juristas escrevessem dessa forma, teríamos bacharéis de Direito muito mais sábios - e com uma compreensão muito mais saborosa do que é o Brasil, seu povo e sua formação -, detentores de uma visão e missão do seu papel na sociedade muito mais saborosa do que vemos nos juristas dos dias de hoje.  

(E Deus sabe como falta sabedoria - e sabor - aos formados em Direito da atualidade...)

domingo, 12 de junho de 2016

A história além da história contada


O livro “Vida e morte do bandeirante” é interessante porque se propõe a contar história a partir de inventários, ou testamentos, escritos por homens comuns. Trata-se de uma descrição detalhada, de fonte fidedigna, sobre a vida dos primeiros descendentes de europeus a  habitarem a região que viria a ser São Paulo.
O autor viveu entre 1875 e 1941, e publicou o livro pela primeira vez em 1929, utilizando como fonte inventários escritos entre 1578 e 1700. Esses inventários eram escritos rotineiramente por todos os homens brancos antes de morrer, dos mais abastados aos mais humildes, sendo redigidos por monges ou clérigos. Os testamentos eram considerados uma forma de demonstração de fé e sempre se deixava uma parte dos bens pra Igreja. Além disso, as pessoas também deixavam doações aos pobres e a mosteiros, citavam detalhadamente onde e como desejavam que ocorressem seus funerais e, algumas vezes, também aproveitavam para fazer confissões, pedir perdão ou mesmo reparar possíveis danos cometidos durante a vida. Assim, percebe-se logo a influência da fé católica na vida dessa população. Os últimos momentos de vida eram decisivos, pois eles eram a última chance de cumprir uma vida virtuosa o suficiente para merecer um bom destino após a morte.
Conta o autor que os inventários pesquisados, que totalizaram 27 volumes e consistiram em 450 processos, antes eram fonte de estudo apenas dos que se propunham a escrever árvores genealógicas.  Nesse ponto o autor faz uma crítica à forma tradicional de contar história, que teria geralmente como foco a vida de pessoas ilustres. Ele afirma acreditar na importância dos humildes e dos anônimos no que ele chama poeticamente de “trama nacional”. Mas se engana quem pensa que o autor é um humanista crítico de seu tempo. Em meio a muitas descrições dos inventários que não passam de simples e (verdade seja dita) interessantes citações, o autor também deixa  evidentes suas opiniões sobre alguns aspectos da sociedade.  E com isso se percebem importantes preconceitos. 
Sobre a linguagem, o autor utiliza um vocabulário próprio de seu tempo, o que soa naturalmente poético pros leitores atuais. Além disso, em algumas passagens breves o autor parece de fato escrever uma prosa poética, com algumas imagens que fogem ao que habitualmente se encontra em livros de história mais formais. É freqüente a descrição literal dos inventários, o que nos faz perceber certo lirismo também na forma de escrever dos monges e chama atenção a quantidade de termos e palavras hoje pouco usados.
Entre as informações interessantes, a leitura dos inventários permite perceber o pequeno valor financeiro associado à propriedade imobiliária até por volta de 1650, quando os imóveis começam a se valorizar. Um palacete custa 70 mil no mesmo momento em que um conjunto de cortinas de cama custa 32 mil. O livro também permite conhecer aspectos interessantes sobre a vida cotidiana da população, como o fato de comerem com os dedos,  de haver poucas escolas e de serem raros os colonos letrados. Curiosas também as descrições sobre as doenças do período: sarampo, varíola, enfermidade de ar, paralisia, gota coral, mulas e ofidismo, além de haver os “doentes d’alma”, que estariam ”impedidos de seus sentidos naturais”. Também é descrita a morosidade da justiça, que vem desde então, e eram também poucos os juristas formados.
 O aspecto do livro que mais chama atenção, porém, é a naturalidade com que é tratada a escravidão e a noção  de superioridade dos colonos em relação aos outros povos. Nos primeiros capítulos, já é bastante incômodo ler os termos utilizados para se referir  às pessoas escravizadas.  Sendo um livro que se propõe a tratar do cotidiano da vida colonial a partir do ponto de vista dos humildes e anônimos, surpreende que não haja nenhuma menção à vida cotidiana dos escravos. Fica evidente com isso que o autor, em 1929, não considera os negros e índios como seres humanos. Além disso, a questão da falta de liberdade das mulheres é apenas citada,  sem que de fato haja alguma crítica.
Isso começa a ficar mais evidente quando o livro começa a tratar da família paulista. É citada a atmosfera de respeito com que é tratado o patriarca e o tratamento cerimonioso com que se tratam os membros da família. Às mulheres são reservadas exclusivamente tarefas domésticas e a alfabetização, rara até então, é privilégio de homens. Além disso, eram os pais quem escolhiam os maridos das filhas. O autor cita que os divórcios são raros e que os paulistas se orgulham da “limpeza de seu sangue”. Eles entendiam por isso a ausência de “raça de mouro, ou judeu, ou cristão novo, ou mulato ou outra má casta”. Destaca-se que o termo “má casta” não vem de uma transcrição literal de inventários e nem vem entre aspas, fazendo parecer ser um juízo do próprio autor.  O livro continua citando que, devido a essa exigência toda em relação à “pureza do sangue”, não eram muito raros os casamentos consangüíneos. Obviamente, além da família legítima, também havia os filhos de negras e índias. Curioso que, na mestiçagem, ”prevalecia” o sangue europeu. Isso se refere ao status que o indivíduo adquiria na sociedade, o que significa que o mestiço se “enobrece” ante os “negros” e os “negros de cabelo corredio” , como chegam a ser chamados os índios. Os mestiços ocupavam lugar de agregados da família, como o capanga, considerado elemento inferior, porém fiel e necessário.
Ao falar sobre a escravidão, o autor não faz nenhuma crítica ou juízo de valor importante. Ele cita de forma mais extensa a questão da escravidão do índio. Conta que houve no período várias normas contraditórias por parte da coroa sobre sua permissão. Com isso, os paulistas transformaram os índios em “servos da administração” e criaram um estado intermediário entre a liberdade e a escravidão propriamente. Na prática, os índios eram forçados a trabalhar e a seguir as normas sociais e a religião dos brancos, tendo como única saída a fuga pro sertão, o que fez surgir uma indústria de “tomada de índios fugidios”. 
A questão da escravidão do povo negro merece apenas breve citação. O autor cita que eles eram mercadoria cara e rara devido ao fato de apresentarem “maior resistência física e mais passividade”. O  autor não faz nenhuma crítica a esses juízos. A brevidade e frieza com que ele trata do assunto podem parecer inicialmente condizentes com o tom descritivo do livro, mas no capítulo seguinte logo se percebe que não é disso que se trata.
O próximo capítulo é sobre religião. O autor cita um clero imoral, com exceção dos jesuítas, e poucas sucursais do Santo Ofício, que passa a ter mais importância a partir de 1700. Também fala da figura interessante do caraíba, espécie de feiticeiro ou vidente que causava certo furor ao visitar as aldeias,  vindo de longe. O caraíba ficava por dias a meses na aldeia, e com sua presença eram celebradas festas. Nesse momento, o livro chega a lembrar um pouco o realismo fantástico de Garcia Marques, com a ironia de se tratar de “realismo real”.
Nesse capítulo algumas coisas chamam atenção. O autor, que até então mantinha um tom mais descritivo, passa a divagar sobre fatos distantes de São Paulo e a fazer juízo de valor sobre raças e religiões, deixando evidentes sua posição antissemita, racista e culturalista, ou seja, considerando a cultura de alguns povos como inferiores.
Ao citar a aversão aos judeus em Portugal no século XV, o autor cita que a perseguição não se deu  apenas por motivos religiosos, já que os mouros, “também infiéis” e “de sangue aborrido” , gozavam de relativa segurança no reino. Segundo o autor, a perseguição ao judeus ocorreu devido à ligação desse povo com o comércio e a riqueza e ao fato de os judeus não terem assimilado a cultura local.
O autor tem um discurso antissemita forte e marcante. Ele afirma que a presença de grande população de judeus em Portugal criou uma “situação grave” e que eles desempenhavam “odioso papel” na vida econômica do país. Entre outros adjetivos, o autor descreve os judeus como arrogantes, de ”avidez proverbial” e diz que eles “coverjam sobre a miséria alheia”.  Diz ainda que o judaísmo é responsável por subverter a unidade da fé e quebrantar  a unidade nacional.  Além disso, usa a expressão vulgar  “marranos” para se referir aos judeus. Por fim, ao dizer  que o Santo Ofício em Portugal legalizou e sistematizou a perseguição aos judeus pela execução e pelo confisco, o autor afirma, sem constrangimento, que se tratou de um progresso.
Ao falar do sincretismo entre religiões indígenas, africanas e o catolicismo, o autor fala em “deformação progressiva”. Cita caso de um índio educado por jesuítas que criara uma seita no interior da Bahia, misturando a fé católica com a fé tradicional indígena e diz que a seita chegou a “contaminar” os colonos, já que alguns teriam se convertido. O autor, fugindo um pouco do tema do livro, nesse momento resolve citar Antonio Conselheiro:

“É a mesma mania epidêmica de fundo religioso, a atacar a mes­ma gente, com os mesmos sintomas. Frei Manuel, Antônio Conselheiro e todos os messias tragicô­micos do sertão brasileiro não passam de avatares daquele índio boçal, que fanatizava a escravaria vermelha e abalava a cons­ciência dos próprios colonos setecentistas. (...) Os três séculos decorridos não modificaram sequer a fórmula ou conteúdo do delírio coletivo. Na vaza das superstições e das crendices fermentam aspirações de ordem social.(...)
Com leves diferenças de substância e de forma, a erronia e abu­são do século XVII continua a ser a religião do caboclo do século XX. Parece fabricada de acordo com uma daquelas receitas alu­cinantes da feitiçaria medieval, em que entravam os elementos mais nobres e as coisas mais imundas, o ouro e o excremento, a hóstia consagrada e a carniça dos enforcados.
Em suas crenças o sertanejo é tão mestiço como em sua constituição física. Reflete as concepções das três raças de que provém: o misticismo, o feti­chismo, o animismo. Imagine-se um santuário em que Jesus e a Virgem se acotovelam e acompadram com sacis e orixás... Nada mais lógico, afinal, do que esse disparate. Só as criaturas de men­talidade superior se contentam com abstrações. A grande maioria dos homens sente a necessidade instintiva de materializar o obje­to de seu culto: não concebe divindades que não sejam tangíveis e concretas. No sertanejo essa tendência universal e eterna se agra­va em razão do atavismo e da ignorância.”  (grifo meu)


Com isso, fica claro que o autor considera que a religião cristã é nobre e as religiões indígenas e africanas são o que há de mais imundo. Além disso, propaga a idéia de que existem povos superiores a outros. Mais à frente, ao falar das batalhas dos bandeirantes contra os indígenas, o autor cita que os índios são superiores em número e desprezo da vida.
Digno notar também que, no capítulo final, o autor procura exaltar a figura do bandeirante, inclusive fazendo uma bela comparação com a figura idealizada do marinheiro. Faz sentido, já que desde a dedicatória o autor deixa claro sua admiração por seus antepassados, dedicando a obra a Antonio de Oliveira, “chegado a São Vicente em 1532”. Deve se destacar que o autor era professor de Direito e militante político, tornando ainda mais evidente que seus preconceitos não eram apenas simples defeitos de um homem comum e sim se tratavam do pensamento então vigente.
 É interessante pensar nesse livro como uma lição de história não só por atingir de forma adequada seu objetivo de descrever o cotidiano da vida dos colonos paulistas, mas também por mostrar o quanto o racismo e o culturalismo estavam presentes de forma natural nos discursos dos intelectuais brasileiros do início do século XX. Esse discurso, em 1929, não nos deveria surpreender em princípio, visto que a elite brasileira sempre foi receptora das ideologias vindas dos países do norte. O que surpreende é que até hoje esses textos sejam estudados na academia e lidos sem que se faça uma crítica mais contundente a eles. Devemos entender os autores como sujeitos inseridos em seu contexto histórico, mas também é importante que sejam apontados claramente os aspectos negativos de seus discursos. Sabemos o resultado do discurso antissemita da época em que viveu o autor. Sabemos também que a perseguição aos judeus foi amplamente apresentada aos brasileiros como algo terrível e odioso. Mas, ao contrário, o racismo contra o negro e a idéia de superioridade da cultura européia, em relação a todas as outras culturas, permanecem sendo naturalizados nos discursos de hoje.

Primeiramente, fora Temer.


Por conta da dificuldade que tive no ultimo livro em escrever meu textão, desta vez fiz diferente: à medida que lia, escrevia um mapa mental com minhas impressões sobre cada capítulo. Este método me ajudou bastante em relação à escrita, mas levei muito mais tempo na leitura. 

No livro Vida e Morte do Bandeirante, de Alcântara Machado, alguns modelos de pensamento já eram esperados. O papel da mulher, do patriarca, do negro e do índio na sociedade daquele tempo. Espera encontrar, além disso, pistas de como o bandeirante de outrora se transformou no paulista de hoje.

Uma passagem logo no início me chama atenção, que transcrevo a seguir: “pouco nos interessam as pousadas onde pousa a gente somenos: não varia no tempo e no espaço o espetáculo da miséria humana”. Algumas questões me vêm à mente: numa sociedade de brancos miseráveis e negros escravizados e, por isso, também miseráveis, havia sim uma variação nas misérias. A qual delas o autor se refere? Será que ele considera miséria somente a falta de que sofre o homem branco? Mesmo ciente de que o livro não se propõe a discorrer sobre a miséria nos tempos dos bandeirantes, a frase me soa um tanto arrogante. Pode ser uma interpretação equivocada minha, causada pela minha dificuldade em compreender o português do ano de 1929. Por isso, gostaria de saber a impressão causada nos outros integrantes do grupo. Outra ideia que surge da afirmação é que o autor pode ter feito uma critica à imutabilidade da situação de miséria que havia no Brasil. Bem, a ver a impressão dos meus colegas.

Algumas curiosidades sobre o cotidiano do paulista no capítulo “A baixela”. Entre elas, o compartilhamento de copos, vasilhas de água e pratos. Prato cheio – se me permitem o infame trocadilho – para doenças transmissíveis pela saliva. Ao menos, segundo Alcântara, quem fosse compartilhar o mesmo prato preocupava-se em lavar as mãos. Ainda sobre os costumes, no capítulo “Fatos de vestir, joias e limpeza da casa” aparece a figura de um grande manto, que esconde também o rosto da mulher, ademais do corpo, do qual não havia ouvido falar. Além disso, o fato de se vestirem “pobremente” é uma novidade para mim, pois tinha como imagem de um bandeirante um homem que se vestia com fidalguia (foto abaixo), o que não é real, segundo o autor.


Representação da vestimenta dos bandeirantes
Podemos trocar pelo Pixuleco, se quiser

No quesito vestimenta pode-se observar que, ainda hoje, os paulistas não evoluíram muito. Basta verificar que em alguns domingos do ano escolhem usar uma camisa verde e amarela de uma instituição corrupta, clamando pelo fim da corrupção (???) e de "isso tudo que tá aí, meu", conhecida como as “vestes do coxinhismo”. Repare só:



Em “O dinheiro e os sucedâneos” Machado discorre sobre o fato de o paulistano considerar-se incorruptível, tal qual seus maiores lusitanos, “no que se refere à questão” do dinheiro. Mas a ética não se mostra tão rígida quando, em “Índios e tapanhunos”, o autor começa a desvendar os subterfúgios dos bandeirantes para mascarar a posse de escravos, proibida na época. Chegam à grandeza de colocarem em seus testamentos que seus órfãos não deveriam maltratar seus escravos. Ora, o fato de ter de explicitar tal pedido em testamento, na minha opinião, revela que os flagelos eram regra e que dependiam da súplica do defunto ou de leis para contê-los. E, ainda assim, não creio que bastasse para que não ocorressem. Mesmo sob castigos físicos, quando os escravos se rebelavam contra quem os capturava, como ocorreu em 1652, eram considerados naturalmente daninhos, uma estupidez sem fim. Decoro e ética parecem também não ser atributos dos sacerdotes metropolitanos. Distantes muitos quilômetros do Vaticano, o voto de castidade é esquecido e de(lei)tam-se com as índias e negras da nova terra. Uma dúvida que me surge é se estes casos eram consensuais ou estupros.

Durante a leitura do livro Vida e Morte do Bandeirante me peguei diversas vezes com a dúvida sobre o que eu buscava entre aquelas palavras. Porque por vezes o autor ficava tão preso a nomes de pessoas e de utensílios que eu acabava me perdendo. Em outras passagens, porém, o motivo da escolha do grupo por este livro voltava com força. Era quando Alcântara Machado se permitia adentrar na personalidade do bandeirante paulistano. Poucos foram estes momentos, mas diria que a escolha valeu a pena.

Por fim, no meio de tantos nomes e sobrenomes ainda hoje conhecidos, senti falta dos nomes dos índios e negros. O termo “peça”, utilizado para pessoas escravizadas é tão humilhante e representa o quão sem identidade um escravo era tratado. Algo como um vaso, um móvel, ao qual não se nomeia, não se distingue a não ser pela aparência, como por exemplo, ao chamar os índios de negros de cabelo corredio, como aparece em alguns testamentos. Nenhuma citação à individualidade. Nenhuma. Não sei se isso deve-se ao trabalho notarial, que ainda hoje tem problema em batizar nomes de outras etnias, como ocorreu recentemente*, ou se realmente os nomes de índios e escravos eram simplesmente desconsiderados. Quantas Makedas já teriam sido registradas se estes nomes tivessem feito parte dos alfarrábios históricos brasileiros, como estes aos quais Alcântara Machado recorreu para escrever seu livro?

Beijo procês!

*http://extra.globo.com/noticias/rio/casal-nao-consegue-registrar-filha-com-nome-africano-cre-em-racismo-18941185.html


quinta-feira, 9 de junho de 2016

Ode a São Paulo



O livro “Vida e morte do bandeirante”, publicado em 1929 por Alcântara Machado, nos ajuda a compreender melhor algumas coisas sobre a cidade de São Paulo e sobre o Brasil.

A construção textual de Alcântara Machado, que parece fazer um esforço para não provocar enfado nas suas descrições, é baseada em uma série de documentos históricos, especialmente os testamentos das pessoas comuns, num momento primitivo da cidade de São Paulo. Pinçadas as informações mais relevantes do acervo documental e, buscando estruturá-las com algum encadeamento, é possível reconstruir de maneira bastante fidedigna as relações humanas, econômicas e territoriais que caracterizavam a Pauliceia comportadinha nos períodos quinhentista e seiscentista.

Qualquer livro didático de ensino fundamental ou médio (ao menos aqueles de dez anos pra cá, hoje em dia já não sei mais como estão essas coisas) ensina aos alunos (pobrezinhos!) o que foi o fenômeno das entradas e bandeiras. No Rio de Janeiro, nunca estudamos essas coisas direito, mas o que nos informam, de maneira muito básica, é que os bandeirantes iam se embrenhando sertões adentro: desbravando as matas, caçando índios e abrindo caminhos. Eles são pintados como heróis. Nomes como Raposo Tavares, Borba Gato e Fernão Dias são alguns dos que nos fizeram memorizar, na intenção de que isso fizesse alguma diferença na nossa formação.

O que não nos contaram é que eles eram mamelucos. E que andavam rotos e maltrapilhos. E que amarravam os índios em coleiras para trazê-los à cidade e às plantações periurbanas. E, especialmente, que os escravizavam.

Nós, brasileiros, somos sempre muito lenientes com a escravidão indígena. Talvez por não ter sido algo tão institucionalizado como a escravidão negra, talvez por não envolver redes de tráfico de escravos internacionais, ou talvez por termos sido tão brutalmente assassinos de suas identidades (seja pela morte física, seja pela miscigenação seguida de aculturamento), sempre passamos batido por esse ponto. Não demos a eles, como aos negros, a possibilidade de se pensarem retrospectivamente. O fato é que nós brasileiros gostamos de nos pensar como um modelo brando de colonização espanhola em relação ao fenômeno da destruição indígena. Mas se lá, as armas contra o gentio foram a espada e o arcabuz, do lado de cá foram a coleira e o jesuíta. Ah, e a gripe, claro.

Mas se o mito da fundação da cidade de São Paulo necessitou desses heróis à medida que a cidade dava certo, foi necessário deixar muito bem escondida a vida dessa São Paulo inicial nada heroica, muito pelo contrário. Cabe ressaltar que muitos podem pensar o oposto do heroísmo como vileza, mas não é o caso. À parte os tristes episódios de dominação dos índios nos sertões paulistas, não é o caso de pensarmos o protopaulista como anti-herói ou como vilão. O oposto do herói é o medíocre.

Nesse sentido, a cidade de São Paulo nasce completamente apequenada, amesquinhada e desinteressante. Seus habitantes levavam uma vida modorrenta numa cidade absolutamente tacanha. É só pelo fato de São Paulo ter sido o que veio a se tornar que passaram a ser interessantes os testamentos dos seus cidadãos.

O que havia era uma cidade de praça e paróquia. São Paulo, uma das primeiras cidades nascidas no interior do Brasil, nasce, portanto, como a capital de todas as cidades do interior.

Ainda hoje, é à velha cidade de São Paulo que aludem todas aquelas cidades de pequeno porte que calharam de não estar situadas à beira-mar. É à velha cidade de São Paulo que remetem todos os municípios de pequeno porte com seus ladrões de galinha, suas pessoas esbanjando pobreza pelas ruas, sua moças donzelinhas e casadoiras, suas festividades e féretros que movimentam as ruas, suas missas na hora sempre marcada, suas fofocas sobre as travessuras sexuais desse ou daquele outro, suas vidas de pouca cultura, pouco estudo e pouco letramento onde a única possibilidade de pensamento é o conservadorismo vinculado a uma tradição do patriarcado e da religião, indissociáveis e indissolúveis, e onde o único e constante propósito de quem é capaz de se pensar e de se querer um pouco além é uma fuga desmedida em direção a outras paragens, seja aos sertões adentro, seja a algum porto, com seus fluxos de gente e de coisas novas, e seu cosmopolitismo.

Mas é claro que foi preciso inventar um passado bonito para São Paulo. Criaram-se os heróis bandeirantes. Procuraram outras coisas, claro. Jorge Caldeira, autor de “Nem céu, nem inferno” até encontrou um ferreiro diferentão nos registros da cidade, rapidamente colocado como ‘um dos primeiros empreendedores paulistas’. Lembrando: é só um ferreiro. Qualquer outra cidadezinha de maneiras igualmente feudais vai ter lá o seu ferreiro, o seu chaveiro, o seu curandeiro. Um doutorzinho da cidade sem grandes atributos poderia rapidamente ser alçado à nobilíssima categoria de ‘um dos primeiros médicos da cidade, patrono da sociedade paulista de medicina sei lá das quantas’.

Mas como São Paulo deu certo, é evidente que seu passado será glamourizado. Todo restaurante com 42 filiais e presente em mais de sete países gosta de contar a história de que tudo nasceu quando a tia Noca abriu uma pequena pensão em Pirituba.

O problema, claro, é o discurso. Por que uma singela vila quinhentista se tornou a maior megalópole da América do Sul no século vinte e um? Essa é uma pergunta nada trivial, hiper complexa, e não irei cair na tentação de arrolar hipóteses para respondê-la: deixarei essa para os diversos programas de pós-graduação que estudam as filigranas da história paulista (vai-se até a cor da tintura do cabelo da mulher do xerife da cidade quando há dinheiro para financiar as pesquisas sobre um lugar que já deu certo. Já imaginaram a que profundidade de estudos e quantas teses de doutorado é capaz de gerar a história de um pequeno município brasileiro?).

Portanto, em vez de responder à pergunta, devolverei outra: por que outras pequenas cidades nascidas no interior do Brasil não se tornaram São Paulo?

Para quem acredita na meritocracia, e para quem acredita em heróis, qualquer cidade pode se tornar São Paulo, desde que seus cidadãos se esforcem muito e que tenham um prefeito com muita vontade de desenvolvê-la.

Ousando apontar um ponto de inflexão na história da cidade (e contrariando a mim mesmo quando disse que não apontaria hipóteses), receio que este ponto tenha sido a criação da Faculdade de Direito, a mais antiga do Brasil, criada por decreto imperial em 1827, juntamente com a Faculdade de Direito de Olinda. Esse fenômeno transformou São Paulo numa cidade universitária e permitiu um fluxo estudantil que garantiu a ela uma lufada de frescor, algo muito diferente da tradição que até então reinava. Esse decreto de 1827 colocou São Paulo na vanguarda do pensamento positivista e do bacharelado, que dominaram o século dezenove. Ele se situa mais ou menos cem antes da Semana de Arte Moderna de 1922, momento em que a Pauliceia realmente se desvairou. Mas está também uns cem anos à frente do alvará de 23 de maio de 1722, que proíbe que “dentro dos distritos das terras diamantinas possa residir bacharel algum formado, debaixo das penas a ser remetido à sua custa ao Rio de Janeiro e de seis meses de cadeia, debaixo de chaves na prisão daquela relação”, excluídos somente “os que forem naturais das referidas terras, contanto que nelas não exerçam a advocacia”. Nessa Pauliceia ainda em botão, o que se vê é uma recusa a qualquer perspectiva de evolução e crescimento, ou seja, o que se tem é uma cidade que refuta o que quer que fuja dos limites de sua vida feudalizante.

Portanto, existe uma cidade tradicional, que demora um século para se tornar uma cidade técnico-científica, que precisa de mais um século para se tornar uma cidade artístico-cultural, e mais outro século para... para... o que é que tem se tornado São Paulo na antemanhã da década de vinte do nosso século?

Talvez um pouco disso tudo, e ainda mais. Em São Paulo ainda habita uma elite quatrocentona tradicional, que só não caça os índios nos sertões próximos porque já não os há. Mas desfilam com a camisa da seleção brasileira batendo panelas e gritando contra a corrupção. O bairrismo dessa galera remete à velha cidade de São Paulo, de praça e paróquia. Nesta cidade, hoje, estão também os tecnocratas, aqueles que movem o mundo com as suas engrenagens, a sua soja e o seu mercado financeiro, alinhadíssimos em ternos e gravatas na Avenida Paulista ou em Pinheiros. Cabem também os artistas, os modernos de 1922 cujos filhos simbólicos estão tanto nas Bienais de arte e nos museus em profusão quanto nas ruas, em circos, lonas e teatros, no Anhangabaú, na Augusta, na praça Roosevelt, no largo da Batata.

São Paulo se tornou tão múltipla e tão plural que nela cabem Fernando Haddad e Fernando Henrique, Eduardo Suplicy e Marta, Guilherme Boulos e José Serra, Geraldo Alckmin e Luiza Erundina.

A cidade é feita de amálgamas, de camadas superpostas e densamente imbricadas, de forma a formar um bolo, um todo, cujo núcleo é absolutamente oco. Cada uma das camadas pensa que é seu o material do que é feito o cerne da cidade, mas a cidade de São Paulo, a boa cidade de São Paulo, que acolhe e repele a todos, remete sempre à cidade antiga: dos carros, das fábricas, da modernidade, dos bacharéis, dos bandeirantes. A cidade antiga são muitas cidades, não pode remeter a uma só coisa, e é por isso que o núcleo é oco. A cidade, pensamento de fundação antes da primeira trilha e da primeira estaca, já nos observava de longe.

As pitangueiras e as embaúbas, derrubadas a foice para a construção da igreja da Sé, já sabiam que ali haveria um grande projeto. De alguma forma, é como se o território sem homens brancos, a selva de matas tão cerradas onde o sol mal consegue tocar o chão também já remetesse ao futuro, aos vicentinos, aos universitários, à burguesia, aos viadutos, aos artistas e às bicicletas.

São Paulo, a boa cidade de São Paulo, é cidade demais. Que os novos anos vinte, sempre tão importantes para os paulistanos, sejam capazes de fazer a cidade olhar para o futuro e para o passado (que sempre nos observam), e que esse olhar possa ir tão longe, mas tão longe, que a ultra cidade possa ser capaz de olhar para a selva pré-colombiana, e de forma cortês e respeitosa, posto que ocupam o mesmo território, se reconheçam e se abracem.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Paragens Melancólicas e Peças do Gentio

Falando do livro como obra, cabe cumprimentar a iniciativa do governo paulista de publicar a Paulística, tanto o de Washington Luís (que na época do lançamento não sei se era governador ou presidente) e a Cláudio Lembo (que assumiu o governo por poucos meses, então talvez tenha sido outro governador a comandar o relançamento).

Em algum momento Alcântara Machado compara a riqueza de detalhes dos inventários da época com a aridez dos testamentos lavrados desde então. Quem sabe um Alcântara Machado do século XXV não lança uma versão da Paulística sobre o século XXI analisando perfis de Facebook e publicações no Twitter. Imagino descrições líricas sobre coxinha e mortadela.

Riquíssima a fonte a ser pesquisada, extrema a perícia exigida ao pesquisador. E Alcântara Machado organizou com maestria os achados, em uma adequada divisão em capítulos por assunto. Dá para ter uma bela imagem de como era a vida do bandeirante dos séculos XVI e XVII em Piratininga. Comparado com Minas e Bahia, é tipo comparar neandertais a Homo sapiens. Apesar de serem espécies muito parecidas, o conteúdo cultural dos achados nas cavernas dos neandertais é bem mais pobre, praticamente inexistente. A tal fortuna do bandeirante só vai aparecer mesmo quando vem o ouro. Nesse meio tempo, ele se vira no cultivo e na pecuária de subsistência (e sub-existência dos escravos índios) e da pilhagem da floresta e das tribos, que parece uma espécie de supermercado a que se recorre quando necessário. Exceto Clemente Álvares, o ferreiro diferentão (já mencionado por Jorge Caldeira no livro discutido neste grupo).

A riqueza relativa da fazenda em relação à vila, já colocadas, se não me engano, em Casa Grande & Senzala, aparece reforçada em São Paulo, onde a vila é ainda mais pobre. Faz mais sentido chamar uma fazenda do sertão de feudaloide do que um engenho, pois este tem sua estrutura — e a própria existência — integrada a um mercado transatlântico, ao passo que aquela é bem mais fechada, onde o cúmulo do comércio é a troca de índios por porrada. O engenho de açúcar de Pernambuco pode ser considerado a ponta da tecnologia da manufatura e do comércio dos séculos XVI e XVII, ao passo que no sertão mal havia moeda. O que havia mesmo era terra. Um terreno custava mais ou menos o preço de um vestido importado. Ou, havia tão pouca roupa que um vestido chegava a custar quase o preço de uma casa.

Quando fala da justiça, o autor comenta que um cargo de juiz de órfãos é mencionado no inventário como herança para um genro. Hoje podemos achar isso absurdo, mas há alguns poucos anos o ministro Luiz Fux, do STF, fez intensa campanha para que sua filha, Marianna, fosse eleita desembargadora do TJ do Rio, apesar da pouca experiência parcamente comprovada. Digo campanha porque a reportagem em que me baseio, da revista Piauí 115 http://piaui.folha.uol.com.br/materia/excelentissima-fux/ , informa que o ministro telefonou intensa e frequentemente para os envolvidos no processo, desde o início. Um dos argumentos que ele usava para convencer seus colegas a facilitar o caminho para seu rebento era “eu não tenho nada para deixar para ela.” Acredito que um cargo de juiz de órfãos estar em um testamento do século XVII no sertão de São Paulo não seja algo tão extraordinário, pois o pensamento aristocrático hereditário era mais bem aceito. Mas isto sequer ser proposto hoje, no TJ do Rio, é de escandalizar qualquer um. Parece que não escandalizou os desembargadores, que admitiram Marianna como uma dos seus. Machado menciona em outros trechos que os próprios juízes davam exemplos de desrespeito às leis. Sempre tive a impressão, um tanto orwelliana, de que boa parte dos que se engajam em atividades de proteção ou execução de leis o fazem, na verdade, com o objetivo de obterem facilidades para burlar as leis, ao invés de reforçá-las. 

Longe de ser uma exaltação ufanista ao personagem do bandeirante, Alcântara Machado deixa sempre claras suas contradições e mazelas. Exalta a — provável — confiança predominante na sociedade então, onde mesmo testamentos com vícios de forma eram aceitos com pouca impugnação. Ultimamente essa questão da confiança tem ganhado importância no meu pensamento. Será que a escassez de impugnações de inventários, analisados trezentos ou quatrocentos anos depois, formam corpo suficiente para se deduzir que uma sociedade tem mais confiança? Fica subjacente uma mensagem de prescindibilidade do elemento controle do Estado. O agente estatal torna-se desnecessário ao funcionamento da sociedade, que praticamente não se contesta, um cidadão confiando no outro. Por outro lado, o excesso de controle, para prevenção de fraudes, por exemplo, gera custos e retrabalhos absurdos, como vivemos hoje em todas as redundâncias burocráticas, selos, carimbos e autenticações. A mera existência da roleta de ônibus já é um índice de confiança, ou de desconfiança. Fico curioso com o funcionamento do novo bonde do Rio, o VLT, que, alega-se, não terá roleta. Vamos acompanhar.

A honra e a respeitabilidade dos nossos cavaleiros, os bandeirantes, convivia com as atrocidades cometidas contra as “peças do gentio” ou “da terra” ou “da Guiné”. Com o tempo, o livre mercado e a livre iniciativa da sociedade autorregulada dos piratiningos vai unificando serviço e escravidão, ignorando cada vez mais a proibição de comercializar índios. Quem sabe um dia o nosso capitalismo não retoma este nível de coerência. Já progrediu muito na questão dos juros, hoje se cobra muito mais, e legalmente, do que os 8% dos órfãos d’antanho. Pensei também no modelo protocapitalista das entradas, em que o armador,“capitalista” que encomendava a entrada, fornecendo meios para o empreendimento, ficava apenas com ametade dos ganhos, em drogas e peças do gentio e demais ganhos. Hoje o armador pagaria um salário aos bandeirantes e ficaria com a totalidade do pote. Uma flechada seria considerada acidente de serviço, mas se o bandeirante fosse PJ, perderia o contrato. Passando o PL da terceirização ou a flexibilização da CLT, talvez o melhor mesmo seja ficar lá perto dos índios, desde que não fosse em área de mineração, de soja, de pecuária ou de barragem de hidrelétrica.

Para finalizar, vale a pena ressaltar a influência que este volume tem sobre a tese da tristeza do Paulo Prado, ou talvez possa se pensar mesmo em influência mútua, dada a proximidade temporal e geográfica dos autores e suas obras. Alcântara menciona em um trecho que “de homens dessa fragilidade não há esperar uma reação contra a cobiça e a luxúria, pecados específicos [grifo meu] das terras novas”. Mais adiante ele diz “as paragens algo melancólicas de Santa Cruz”. Já discutimos um pouco sobre essa questão dos vícios específicos, mas que sempre voltam, tamanha a presença das teses do “erro inato” da patologia intrínseca do povo desta terra. O pêndulo natureza-cultura não cessa de aparecer quando se aborda tudo o que é humano.