quinta-feira, 9 de junho de 2016

Ode a São Paulo



O livro “Vida e morte do bandeirante”, publicado em 1929 por Alcântara Machado, nos ajuda a compreender melhor algumas coisas sobre a cidade de São Paulo e sobre o Brasil.

A construção textual de Alcântara Machado, que parece fazer um esforço para não provocar enfado nas suas descrições, é baseada em uma série de documentos históricos, especialmente os testamentos das pessoas comuns, num momento primitivo da cidade de São Paulo. Pinçadas as informações mais relevantes do acervo documental e, buscando estruturá-las com algum encadeamento, é possível reconstruir de maneira bastante fidedigna as relações humanas, econômicas e territoriais que caracterizavam a Pauliceia comportadinha nos períodos quinhentista e seiscentista.

Qualquer livro didático de ensino fundamental ou médio (ao menos aqueles de dez anos pra cá, hoje em dia já não sei mais como estão essas coisas) ensina aos alunos (pobrezinhos!) o que foi o fenômeno das entradas e bandeiras. No Rio de Janeiro, nunca estudamos essas coisas direito, mas o que nos informam, de maneira muito básica, é que os bandeirantes iam se embrenhando sertões adentro: desbravando as matas, caçando índios e abrindo caminhos. Eles são pintados como heróis. Nomes como Raposo Tavares, Borba Gato e Fernão Dias são alguns dos que nos fizeram memorizar, na intenção de que isso fizesse alguma diferença na nossa formação.

O que não nos contaram é que eles eram mamelucos. E que andavam rotos e maltrapilhos. E que amarravam os índios em coleiras para trazê-los à cidade e às plantações periurbanas. E, especialmente, que os escravizavam.

Nós, brasileiros, somos sempre muito lenientes com a escravidão indígena. Talvez por não ter sido algo tão institucionalizado como a escravidão negra, talvez por não envolver redes de tráfico de escravos internacionais, ou talvez por termos sido tão brutalmente assassinos de suas identidades (seja pela morte física, seja pela miscigenação seguida de aculturamento), sempre passamos batido por esse ponto. Não demos a eles, como aos negros, a possibilidade de se pensarem retrospectivamente. O fato é que nós brasileiros gostamos de nos pensar como um modelo brando de colonização espanhola em relação ao fenômeno da destruição indígena. Mas se lá, as armas contra o gentio foram a espada e o arcabuz, do lado de cá foram a coleira e o jesuíta. Ah, e a gripe, claro.

Mas se o mito da fundação da cidade de São Paulo necessitou desses heróis à medida que a cidade dava certo, foi necessário deixar muito bem escondida a vida dessa São Paulo inicial nada heroica, muito pelo contrário. Cabe ressaltar que muitos podem pensar o oposto do heroísmo como vileza, mas não é o caso. À parte os tristes episódios de dominação dos índios nos sertões paulistas, não é o caso de pensarmos o protopaulista como anti-herói ou como vilão. O oposto do herói é o medíocre.

Nesse sentido, a cidade de São Paulo nasce completamente apequenada, amesquinhada e desinteressante. Seus habitantes levavam uma vida modorrenta numa cidade absolutamente tacanha. É só pelo fato de São Paulo ter sido o que veio a se tornar que passaram a ser interessantes os testamentos dos seus cidadãos.

O que havia era uma cidade de praça e paróquia. São Paulo, uma das primeiras cidades nascidas no interior do Brasil, nasce, portanto, como a capital de todas as cidades do interior.

Ainda hoje, é à velha cidade de São Paulo que aludem todas aquelas cidades de pequeno porte que calharam de não estar situadas à beira-mar. É à velha cidade de São Paulo que remetem todos os municípios de pequeno porte com seus ladrões de galinha, suas pessoas esbanjando pobreza pelas ruas, sua moças donzelinhas e casadoiras, suas festividades e féretros que movimentam as ruas, suas missas na hora sempre marcada, suas fofocas sobre as travessuras sexuais desse ou daquele outro, suas vidas de pouca cultura, pouco estudo e pouco letramento onde a única possibilidade de pensamento é o conservadorismo vinculado a uma tradição do patriarcado e da religião, indissociáveis e indissolúveis, e onde o único e constante propósito de quem é capaz de se pensar e de se querer um pouco além é uma fuga desmedida em direção a outras paragens, seja aos sertões adentro, seja a algum porto, com seus fluxos de gente e de coisas novas, e seu cosmopolitismo.

Mas é claro que foi preciso inventar um passado bonito para São Paulo. Criaram-se os heróis bandeirantes. Procuraram outras coisas, claro. Jorge Caldeira, autor de “Nem céu, nem inferno” até encontrou um ferreiro diferentão nos registros da cidade, rapidamente colocado como ‘um dos primeiros empreendedores paulistas’. Lembrando: é só um ferreiro. Qualquer outra cidadezinha de maneiras igualmente feudais vai ter lá o seu ferreiro, o seu chaveiro, o seu curandeiro. Um doutorzinho da cidade sem grandes atributos poderia rapidamente ser alçado à nobilíssima categoria de ‘um dos primeiros médicos da cidade, patrono da sociedade paulista de medicina sei lá das quantas’.

Mas como São Paulo deu certo, é evidente que seu passado será glamourizado. Todo restaurante com 42 filiais e presente em mais de sete países gosta de contar a história de que tudo nasceu quando a tia Noca abriu uma pequena pensão em Pirituba.

O problema, claro, é o discurso. Por que uma singela vila quinhentista se tornou a maior megalópole da América do Sul no século vinte e um? Essa é uma pergunta nada trivial, hiper complexa, e não irei cair na tentação de arrolar hipóteses para respondê-la: deixarei essa para os diversos programas de pós-graduação que estudam as filigranas da história paulista (vai-se até a cor da tintura do cabelo da mulher do xerife da cidade quando há dinheiro para financiar as pesquisas sobre um lugar que já deu certo. Já imaginaram a que profundidade de estudos e quantas teses de doutorado é capaz de gerar a história de um pequeno município brasileiro?).

Portanto, em vez de responder à pergunta, devolverei outra: por que outras pequenas cidades nascidas no interior do Brasil não se tornaram São Paulo?

Para quem acredita na meritocracia, e para quem acredita em heróis, qualquer cidade pode se tornar São Paulo, desde que seus cidadãos se esforcem muito e que tenham um prefeito com muita vontade de desenvolvê-la.

Ousando apontar um ponto de inflexão na história da cidade (e contrariando a mim mesmo quando disse que não apontaria hipóteses), receio que este ponto tenha sido a criação da Faculdade de Direito, a mais antiga do Brasil, criada por decreto imperial em 1827, juntamente com a Faculdade de Direito de Olinda. Esse fenômeno transformou São Paulo numa cidade universitária e permitiu um fluxo estudantil que garantiu a ela uma lufada de frescor, algo muito diferente da tradição que até então reinava. Esse decreto de 1827 colocou São Paulo na vanguarda do pensamento positivista e do bacharelado, que dominaram o século dezenove. Ele se situa mais ou menos cem antes da Semana de Arte Moderna de 1922, momento em que a Pauliceia realmente se desvairou. Mas está também uns cem anos à frente do alvará de 23 de maio de 1722, que proíbe que “dentro dos distritos das terras diamantinas possa residir bacharel algum formado, debaixo das penas a ser remetido à sua custa ao Rio de Janeiro e de seis meses de cadeia, debaixo de chaves na prisão daquela relação”, excluídos somente “os que forem naturais das referidas terras, contanto que nelas não exerçam a advocacia”. Nessa Pauliceia ainda em botão, o que se vê é uma recusa a qualquer perspectiva de evolução e crescimento, ou seja, o que se tem é uma cidade que refuta o que quer que fuja dos limites de sua vida feudalizante.

Portanto, existe uma cidade tradicional, que demora um século para se tornar uma cidade técnico-científica, que precisa de mais um século para se tornar uma cidade artístico-cultural, e mais outro século para... para... o que é que tem se tornado São Paulo na antemanhã da década de vinte do nosso século?

Talvez um pouco disso tudo, e ainda mais. Em São Paulo ainda habita uma elite quatrocentona tradicional, que só não caça os índios nos sertões próximos porque já não os há. Mas desfilam com a camisa da seleção brasileira batendo panelas e gritando contra a corrupção. O bairrismo dessa galera remete à velha cidade de São Paulo, de praça e paróquia. Nesta cidade, hoje, estão também os tecnocratas, aqueles que movem o mundo com as suas engrenagens, a sua soja e o seu mercado financeiro, alinhadíssimos em ternos e gravatas na Avenida Paulista ou em Pinheiros. Cabem também os artistas, os modernos de 1922 cujos filhos simbólicos estão tanto nas Bienais de arte e nos museus em profusão quanto nas ruas, em circos, lonas e teatros, no Anhangabaú, na Augusta, na praça Roosevelt, no largo da Batata.

São Paulo se tornou tão múltipla e tão plural que nela cabem Fernando Haddad e Fernando Henrique, Eduardo Suplicy e Marta, Guilherme Boulos e José Serra, Geraldo Alckmin e Luiza Erundina.

A cidade é feita de amálgamas, de camadas superpostas e densamente imbricadas, de forma a formar um bolo, um todo, cujo núcleo é absolutamente oco. Cada uma das camadas pensa que é seu o material do que é feito o cerne da cidade, mas a cidade de São Paulo, a boa cidade de São Paulo, que acolhe e repele a todos, remete sempre à cidade antiga: dos carros, das fábricas, da modernidade, dos bacharéis, dos bandeirantes. A cidade antiga são muitas cidades, não pode remeter a uma só coisa, e é por isso que o núcleo é oco. A cidade, pensamento de fundação antes da primeira trilha e da primeira estaca, já nos observava de longe.

As pitangueiras e as embaúbas, derrubadas a foice para a construção da igreja da Sé, já sabiam que ali haveria um grande projeto. De alguma forma, é como se o território sem homens brancos, a selva de matas tão cerradas onde o sol mal consegue tocar o chão também já remetesse ao futuro, aos vicentinos, aos universitários, à burguesia, aos viadutos, aos artistas e às bicicletas.

São Paulo, a boa cidade de São Paulo, é cidade demais. Que os novos anos vinte, sempre tão importantes para os paulistanos, sejam capazes de fazer a cidade olhar para o futuro e para o passado (que sempre nos observam), e que esse olhar possa ir tão longe, mas tão longe, que a ultra cidade possa ser capaz de olhar para a selva pré-colombiana, e de forma cortês e respeitosa, posto que ocupam o mesmo território, se reconheçam e se abracem.

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