segunda-feira, 13 de junho de 2016

Nada de poder, um pouquinho de saber; e o máximo possível de sabor




Nesta rodada de leituras o Grupo de Estudos de Botafogo realiza a leitura e o debate do livro "Morte e Vida dos Bandeirantes", de Alcantara Machado. Confesso que não fiz uma avaliação muito positiva a princípio.... mas qual a minha surpresa quando me deparo com um livro de leitura muito prazerosa - mais do que isso: uma leitura saborosa. Pois como já ensinava o mestre Roland Barthes em seu clássico "A Aula", não há nenhum sentido em se realizar novas leituras sem seguir a fórmula da sabedoria: "Nada de poder, um pouquinho de saber; e o máximo possível de sabor (já que, em sua origem latina, sapare quer dizer tanto saber quanto ter sabor)".

Então comentarei um pouco sobre esta saborosa leitura, nas partes que me pareceram mais interessantes e - porque não dizer: - degustáveis.

Na descrição do grande guisado que constitui a formação da São Paulo colonial, logo de início me chamou  atenção a informação de que a terra não valia nada até o século XVII. Para um país que hoje vive um boom especulativo com o valor dos imóveis, é curioso perceber que em sua formação o atual Estado mais rico do país demonstrava pouca vali para a terra. Como nos conta Alcantara Machado:



"Mas em rigor não há motivo para espanto. Que vale a terra sem gente que a povoe e a aproveite? O que falta aos paulistas não é o chão, que aí está, baldio e imenso, à espera de quem o fecunde. Faltam-lhes, sim, a ferramenta, o vestuário, tudo quanto a colônia não produz ainda e tem de vir, através de obstáculos sem conta, da metrópole distante." (Pagina 19, capitulo 2)


Mesmo com o baixo valor da terra, naquela época o poder político e a respeitabilidade social gravitam em torno daquele que é proprietário de terras - tal qual a Europa medieval de alguns séculos atrás:

"Repete-se no Brasil o mesmo fenômeno observado na idade média européia. A propriedade territorial é então a base da relação entre os homens. Fonte de todos os direitos políticos, assume, por assim dizer, as feições de soberania. É privilégio dos homens livres. Nem as mulheres, a princípio, são admitidas a exercê-lo." (página 21, capitulo 2)

(E não é assim até hoje?)

Em contraste com os tempos modernos, porém, Machado nos conta da supremacia da vida rural em contraste com a vida urbana. A vila que forma a São Paulo colonial é um miserável e triste ajuntamento de casas durante todo o período colonial em razão da supremacia da vida rural sobre a urbana:

"A pobreza da vila é de explicação facílima. Resulta da supremacia inconteste do meio rural sobre o meio urbano, supremacia que não entra a declinar senso mais tarde, com o advento do Império." (capítulo 4, página 31)

E lá vai Machado anos contar como um dos principais ingredientes do nosso "guisado à paulista" era o grande domínio rural dos primeiros séculos, que constituiu em verdade um mundo em miniatura:

"Dentro de seu domínio tem o fazendeiro a carne, o pão, o vinho, os cereais que o alimentam; o couro, a lã, o algodão que vestem; o azeite de amendoim e a cera que à noite lhe dão claridade; a madeira e a telha que o protegem contra as intempéries; os arcos que lhe servem de broquel. Nada lhe falta. Pode desafiar o mundo." (capítulo 4, página 37)

Mas o que é um belo guisado sem um pouco de tempero, bem à moda brasileira? O Texto belamente escrito por Machado nos presenteia com cheiros verdes, pimentas-rosas e pequis a todo tempo. Vejam por exemplo este belo relato feito pelo jurista sobre a vida familiar paulistana durante a colõnia (ainda mais se comparada à leitura anterior do Grupo: o texto pobre, tão sorumbático quanto o mobiliário dos colonos paulistanos, do Jessé de Souza):

- ver início do capítulo 5, página 38. Ver final capítulo 7, página 68

Ainda na descrição da vida paulistana, o autor nos indaga com a seguinte reflexão: "Haverá coisa mais relativa do que o luxo?" É que Alcantara Machado nos descreve, com riqueza de detalhes, como é a casa e a vida do colono paulistano. Mas, em casas com tão pobremente adornadas, há uma aparente abundância de louças e, no século seguinte, móveis com detalhes em ouro e prata. Por que? 

Eis a explicação que nos é oferecida:

"Vaidade, luxo, ostentação? Em parte. Esse não é, porém, o único motivo por que os homens de então convertem em trabalhos de metal  precioso quintal tamanho de seus haveres. Mais de um terço de quanto possuem. Reduzindo a joias, prata lavrada e barretas de ouro uma parte considerável da sua fortuna, os paulistas antigos, como os romanos do Império e a nobreza medieval, tem em vista a constituição de uma reserva ou tesouro de fácil transporte e realização imediata. Não há crédito organizado, nem segurança efetiva. O que hoje parece explosão de vaidade é naquele tempo intimação das condições econômicas e da situação precária da ordem pública." (capítulo 6, página 48)

Passamos, na nossa receita de "guisado à paulista", pelos ingredientes, pelos temperos, pelas carnes, pelas receitas. Alcantara Machados nos narra o modo de vida, entra às casas da paulistéia (ainda nao desvairada), desnuda os móveis, as roupas, as crenças, a religião. Nos descreve a pobreza da presença do Estado lusitano - que está a se preocupar mais com coisas tais como o valor máximo cobrado pelos alfaiates das peças produzidas (capítulo 7, página 53) e com o tipo de vestimenta das escravas (página 58-59 - uma vez q há um regramento municipal proibindo as céticas de usarem vestido de seda) do que com a segurança dos colonos. Mas vá lá: sabem as almas lusitanas que com vestuário e com os santos não se brinca. 

(Afinal, quem há de se importar com coisas tão mundanas e pequenas como o cumprimento das leis e a segurança pública?)

No cozido cheio de sabor que á o texto de Machado, não poderia faltar um toque picante de páprica, um pouco do humor mordaz do jurista de escol: "Em meio de tantas coisas deslumbrantes avulta a ausência de certas coisas pequeninas. Os lenços por exemplo. Não passam, os arrolados, de vinte, distribuídos entre 11 pessoas. É que naquele tempo só a gente educada limpava o nariz.... Na manga do vestido. E, quando se vulgarizou o uso do lenço, mandava o bom-tom que ele não entrasse em atividade, senão depois de terem o indicador e o polegar desempenhado a parte mais considerável da tarefa." (Capítulo 6, página 63)

(Aparentemente, limpeza e asseio estão na categoria da segurança pública e do cumprimento das leis: coisas mundanas e pequenas.)

Talvez justamente por ser o nosso autor/chef um jurista de peso é que apareçam diversas referências sobre o funcionamento da justiça, das leis e do aparato judicial. Longe de fazer longas narrativas procedimentais sobre estes aspectos (como é típico nas faculdades de Direito), nosso autor/chef parece se deliciar com as especificidades do funcionamento da justiça na época da colônia. Uma das coisas que mais me chamou a atenção era o personalismo com o que a justiça era exercida - e como seus nominados eram escolhidos:

"Sabem a maioria por que Salvador Cardoso de Almeida ontem a investidura? Desposando uma das filhas de seu antecessor. A vara de juiz figurava no enxoval da noiva. É o que se vê do testamento do sogro, Antonio Raposo da Silveira: 'sou juiz dos órgãos com provisão que tenho do Senhor Marques de Cascais, o qual me concedeu com cláusula e mercê de poder nomear em uma filha para ajuda de seu dote; e assim nomeio minha filha ao qual trespasso a nomeação e faço na forma de direito'. Sinceridade e franqueza de que não usam, em igualdade de circunstâncias, os sogros de hoje em dia." (Página 77, capitulo 8)

(Novamente: e não é assim até os dias de hoje? Vejam a escolha da filha de um certo ministro o STF para ser desembargadora do Tribunal de Justiça sem concurso público nem prova de títulos....)

Acrescidos os ingredientes, hora de mexer o guisado para dar ponto. E na colônia de São Paulo o que mexe na vida dos colonos é o dinheiro (como em qualquer outra sociedade colonial do Brasil). Mas na São Paulo colonial em particular, o que se destaca é a falta de moeda circulante, e o papel das heranças na vida econômica da vila. Marx já dizia (foi mesmo ele?) que a herança era a principal responsável pela manutenção do sistema capitalista. Nosso amigo Alcantara Machado parece ter sido influenciado pelo filósofo prusso. O autor cita o problema da falta de pecúnia na São Paulo colonial e aponta a importância dos órfãos na oferta de crédito para a vila naquele período:

"A moeda que existe se encontra nas mãos de alguns ricaços e nos cofres dos órgãos. O papel desempenhado por estes últimos na vida econômica do burgo paulistano pode ser comparado sem embargo ao dos estabelecimentos bancários da atualidade." (página 100, capítulo 10)

Ainda sobre este tema, achei curioso o registro sobre a honestidade dos devedores na paulisteia colonial. Diz nosso jurista:

"Aí temos uma ilustração convincente de quanto é vigoroso, na sociedade fazendeira da colônia, o sentimento de similitude social a que alude Oliveira Viana. Incapaz de faltar à palavra, seguro da honestidade própria, o testador confia cegamente na honestidade e na palavra de Deus pares." (Página 103, capitulo 11)

(Que bom seria se os banqueiros e políticos paulistas contemporâneos mantivessem o mesmo grau de zelo e confiança na honestidade dos outros - e na sua própria....)

Por vezes alguns comentários mais ácidos parecem amargar a receita do guisado. Por exemplo, achei um pouco dúbia, por vezes, a posição dele sobre a escravidão? Alcântara Machado descreve os modos daqueles tempos de modo prazeroso e leve, quase como quem se diverte enquanto nos apresenta sua receita. Mas por vezes o estilo ameniza temas que são por demais sensíveis para serem adocicados. O tom que usa é quase condescendente quando fala da escravidão. Reparem só:

"A dissolução dos costumes pela escravidão se faz sentir assim na colônia como na metrópole. Em toda a Espanha, para onde afluem manadas de africanos, a corrupção triunfa. Aqui a incontinência tem a força irresistível de uma necessidade histórica. Sem ela, a fusão das raças não seria possível ou se retardaria indefinidamente. É ela que precipita e enobrece a mestiçagem, fazendo prevalecer nos cruzamentos o sangue europeu." (Página 112, capitulo 12) E ainda, um pouco adiante: "Tudo isso depor em favor daquelas almas tão simples e direitas. Ainda quando contestam a paternidade, fazem-no de modo que os nobilita." (Página 114, capitulo 12)

E também sobre a Santa Inquisição e os judeus.  Ao descrever as devoções dos Bandeirantes, Machado inicia afirmando que o judaísmo não subverte apenas a unidade da fé no território lusitano, mas também a unidade nacional. Mais adiante, afirma que o Santo Ofício seria um "progresso" diante do que se fazia "sem forma nem figura de juízo, por decreto sumarissimo das multidoes, no pretorio anárquico das ruas." (Página 141, capitulo 13). 

De qualquer forma, atesta que o protestantismo calvinista não sobrevive em terras tropicais e que o Brasil não recebeu nenhuma Sucursal do Santo Ofício (aqui caracterizada como "calamidade" pelo autor - página 143), mas recebeu um comissário, cuja única atribuição é preparar os autos para envio para Portugal, que realizará o julgamento. Aparentemente, as atuações dos comissários do Santo Ofício no Brasil são brandas na colônia até o século XVIII. São Paulo tem poucos atingidos pelos julgamentos, que foram mais cruéis com os nativos do Rio de Janeiro. 

(Mas um julgamento cruel por influencia da religião não é danoso sempre, não importando a sua extensão?)

Alcantara Machado por vezes compartilha um pouco de sua visão crítica em relação à religião: "Mais danosa à religião do que as doutrinas heréticas é a vida escandalosa em que chafurdam os sacerdotes exportados da metrópole para a América Portuguesa. Dignidades se cônegos passam a existência em pecado público, pregando com o exemplo e com a palavra o direito dos senhores ao corpo das escravas. Não há violência ou fraude contra os indígenas que lhes mereça condenação: chamam cães aos ameríndios e tratam-nos como tais." (Página 149) "É admirável a segurança com que afirma ao doador: 'e porque, por via destes meio tostão, fica livre das penas do Purgatório a Alma, pela qual foi vossa tentação dar a dita esmola'. Que poder tem naquele tempo meio tostão!" (Página 152)

Mais uma pitada de um aparente pré-conceito do autor em seu saboroso texto.... Tal qual outros comentaristas do Brasil já lidos pelo Grupo, Alcantara coloca bastante de sua opinião pessoal em suas conclusões.... E por vezes a opinião pessoal macula o saboroso texto que nos entrega, como nesta passagem sobre o mestiço: "com leves diferenças de substância é de forma, a erronia e abusão do século XVII continua a ser a religião do caboclo do século XX. (....) Em suas crenças o sertanejo é tão mestiço como em sua constituição física. Reflete as concepções das três raças de que provem: o misticismo, o fetichismo, o animismo. Imagine-se um santuário em que Jesus é a Virgem se acotovelam e acompadram com sacis e orixás.... Nada mais lógico, afinal, do que esse disparate. Só as criaturas de mentalidade superior se contentam com as abstrações." (Página 161)

Contudo, a despeito dos vieses em relação a judeus, à escravidão e às crenças dos mulatos, me pareceu bastante avant guarde no trato com a questão dos indígenas. Como bom jurista que é, Alcântara Machado nos mostra os "jeitinhos" que os colonos dão para burlar os regramentos advindos da Coroa que proibiam a escravização dos indígenas - e como tais "jeitinhos" são odiosos. Pois, como bem aponta o autor: "Ninguém havia com força bastante para executar os mandamentos de Roma ou Lisboa." (Página 120). 

Aqui, uma pitada de açafrão, ao se apontar a influência - e posterior deturpação - da legislação castelhana relativa aos cativos da terra. Deturpação esta feita às franjas da lei, como são sempre muito bons os brasileiros de todas as gerações em fazê-lo: "Mais eficaz e mais elegante que resistir às leis é sofisma-las. Assim pensavam e faziam os vicentistas. Por muito elásticos que fossem os casos em que a legislação metropolitana permitirá redução dos selvagens ao cativeiro, os colonos se viam frequentemente embaraçados quando procuravam legitimar com o registro na provedoria a sua posse sobre as vítimas dos descimentos. Como remover esses embaraços? Criando um estado intermediário entre a liberdade e a escravidão que tivesse desta a substância e daquela as aparências." (Página 122) 

Ali, um pouco mais de manjericão, ao se apontar o costume como ferramenta para justificar os maus-tratos dados aos gentios da terra: "Na ausência de um texto legal que lhes autorizasse a violência, os paulistas invocavam o foro e o costume, ou o estilo da terra, com a declaração de que se deviam do gentio na conformidade que os mais moradores desta vila o faziam, e consoante a permissão da justiça ordinária. (...) Aqui, como em toda a parte, a malícia dos homens brancos transformou em escravidão, disfarçada a princípio e ai depois desabusada e franca, o regime tutelar idealizado pelos criadores do instituto." (Página 124). Em seguida, a burla se dá com a restrição à venda dos cativos. Segue a narrativa de Machado: "Com o muito que se permitem não se contentam os paulistas. O proprietário, como o enamorado, tem a fome do absoluto. E a inalienabilidade é uma restrição. (...) Começa o trabalho de nivelamento pelo repudio da praxe antiga que impedia a avaliação judicial das peças da terra. (....) Em geral, a justiça e as partes não se atrevem a feira de frente a lei e empregam um estratagema de impressionante ingenuidade. Não mandavam avaliar os índios que continuam a ser inestimáveis. O que se avalia é a atividade que representam, o serviço que são capazes de prestar, o rendimento que produzem." (Página 127) 

À medida que o tempo passa, mais e mais os nativos da terra são confundidos com os negros escravos, com os quais compartilham o triste destino da escravidão. Certificando esta realidade, Machado arremata, tristemente: "confundidos no rebanho, perdem os brasis o último vestígio de sua personalidade." (Página 135)

(e que saboroso chamar os nativos de "brasis".... imaginem o arrepio que isso não daria a um Roberto DaMatta ou mesmo a um Paulo Prado...)

Há por fim os dois capítulos finais sobre o medo da morte e o papel do sertão, que são prazerosíssimos de serem lidos, razão pela qual abdicarei de transcrever trechos e deixarei a cada leitor o prazer da leitura. Digo que este foi um dos livros mais saborosos que já li no Grupo de Estudos. E que Alcantara Machado conseguiu, ao apresentar o caldo de cultura que formou o guisado à paulista da sociedade colonial vicentina, nos dar um panorama delicioso de como viviam aquelas pessoas, das limitações do seu tempo, dos sonhos, crenças e perspectivas daquelas pessoas. 

Se todos os juristas escrevessem dessa forma, teríamos bacharéis de Direito muito mais sábios - e com uma compreensão muito mais saborosa do que é o Brasil, seu povo e sua formação -, detentores de uma visão e missão do seu papel na sociedade muito mais saborosa do que vemos nos juristas dos dias de hoje.  

(E Deus sabe como falta sabedoria - e sabor - aos formados em Direito da atualidade...)

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