Falando do livro como obra, cabe
cumprimentar a iniciativa do governo paulista de publicar a Paulística, tanto o
de Washington Luís (que na época do lançamento não sei se era governador ou
presidente) e a Cláudio Lembo (que assumiu o governo por poucos meses, então
talvez tenha sido outro governador a comandar o relançamento).
Em algum momento Alcântara Machado
compara a riqueza de detalhes dos inventários da época com a aridez dos
testamentos lavrados desde então. Quem sabe um Alcântara Machado do século XXV
não lança uma versão da Paulística sobre o século XXI analisando perfis de
Facebook e publicações no Twitter. Imagino descrições líricas sobre coxinha e
mortadela.
Riquíssima a fonte a ser
pesquisada, extrema a perícia exigida ao pesquisador. E Alcântara Machado
organizou com maestria os achados, em uma adequada divisão em capítulos por
assunto. Dá para ter uma bela imagem de como era a vida do bandeirante dos
séculos XVI e XVII em Piratininga. Comparado com Minas e Bahia, é tipo comparar
neandertais a Homo sapiens. Apesar de serem espécies muito parecidas, o
conteúdo cultural dos achados nas cavernas dos neandertais é bem mais pobre,
praticamente inexistente. A tal fortuna do bandeirante só vai aparecer mesmo
quando vem o ouro. Nesse meio tempo, ele se vira no cultivo e na pecuária de
subsistência (e sub-existência dos escravos índios) e da pilhagem da floresta e
das tribos, que parece uma espécie de supermercado a que se recorre quando necessário.
Exceto Clemente Álvares, o ferreiro diferentão (já mencionado por Jorge
Caldeira no livro discutido neste grupo).
A riqueza relativa da fazenda em
relação à vila, já colocadas, se não me engano, em Casa Grande & Senzala,
aparece reforçada em São Paulo, onde a vila é ainda mais pobre. Faz mais
sentido chamar uma fazenda do sertão de feudaloide do que um engenho, pois este
tem sua estrutura — e a própria existência — integrada a um mercado
transatlântico, ao passo que aquela é bem mais fechada, onde o cúmulo do
comércio é a troca de índios por porrada. O engenho de açúcar de Pernambuco
pode ser considerado a ponta da tecnologia da manufatura e do comércio dos
séculos XVI e XVII, ao passo que no sertão mal havia moeda. O que havia mesmo
era terra. Um terreno custava mais ou menos o preço de um vestido importado.
Ou, havia tão pouca roupa que um vestido chegava a custar quase o preço de uma
casa.
Quando fala da justiça, o autor
comenta que um cargo de juiz de órfãos é mencionado no inventário como herança
para um genro. Hoje podemos achar isso absurdo, mas há alguns poucos anos o
ministro Luiz Fux, do STF, fez intensa campanha para que sua filha, Marianna,
fosse eleita desembargadora do TJ do Rio, apesar da pouca experiência
parcamente comprovada. Digo campanha porque a reportagem em que me baseio, da
revista Piauí 115 http://piaui.folha.uol.com.br/materia/excelentissima-fux/ ,
informa que o ministro telefonou intensa e frequentemente para os envolvidos no
processo, desde o início. Um dos argumentos que ele usava para convencer seus
colegas a facilitar o caminho para seu rebento era “eu não tenho nada para
deixar para ela.” Acredito que um cargo de juiz de órfãos estar em um
testamento do século XVII no sertão de São Paulo não seja algo tão extraordinário,
pois o pensamento aristocrático hereditário era mais bem aceito. Mas isto
sequer ser proposto hoje, no TJ do Rio, é de escandalizar qualquer um. Parece
que não escandalizou os desembargadores, que admitiram Marianna como uma dos
seus. Machado menciona em outros trechos que os próprios juízes davam exemplos
de desrespeito às leis. Sempre tive a impressão, um tanto orwelliana, de que
boa parte dos que se engajam em atividades de proteção ou execução de leis o
fazem, na verdade, com o objetivo de obterem facilidades para burlar as leis,
ao invés de reforçá-las.
Longe de ser uma exaltação ufanista
ao personagem do bandeirante, Alcântara Machado deixa sempre claras suas
contradições e mazelas. Exalta a — provável — confiança predominante na
sociedade então, onde mesmo testamentos com vícios de forma eram aceitos com
pouca impugnação. Ultimamente essa questão da confiança tem ganhado importância
no meu pensamento. Será que a escassez de impugnações de inventários,
analisados trezentos ou quatrocentos anos depois, formam corpo suficiente para
se deduzir que uma sociedade tem mais confiança? Fica subjacente uma mensagem
de prescindibilidade do elemento controle do Estado. O agente estatal torna-se
desnecessário ao funcionamento da sociedade, que praticamente não se contesta,
um cidadão confiando no outro. Por outro lado, o excesso de controle, para
prevenção de fraudes, por exemplo, gera custos e retrabalhos absurdos, como
vivemos hoje em todas as redundâncias burocráticas, selos, carimbos e
autenticações. A mera existência da roleta de ônibus já é um índice de
confiança, ou de desconfiança. Fico curioso com o funcionamento do novo bonde
do Rio, o VLT, que, alega-se, não terá roleta. Vamos acompanhar.
A honra e a respeitabilidade dos
nossos cavaleiros, os bandeirantes, convivia com as atrocidades cometidas
contra as “peças do gentio” ou “da terra” ou “da Guiné”. Com o tempo, o livre
mercado e a livre iniciativa da sociedade autorregulada dos piratiningos vai
unificando serviço e escravidão, ignorando cada vez mais a proibição de
comercializar índios. Quem sabe um dia o nosso capitalismo não retoma este
nível de coerência. Já progrediu muito na questão dos juros, hoje se cobra
muito mais, e legalmente, do que os 8% dos órfãos d’antanho. Pensei também no
modelo protocapitalista das entradas, em que o armador,“capitalista” que
encomendava a entrada, fornecendo meios para o empreendimento, ficava apenas
com ametade dos ganhos, em drogas e
peças do gentio e demais ganhos. Hoje o armador pagaria um salário aos
bandeirantes e ficaria com a totalidade do pote. Uma flechada seria considerada
acidente de serviço, mas se o bandeirante fosse PJ, perderia o contrato.
Passando o PL da terceirização ou a flexibilização da CLT, talvez o melhor
mesmo seja ficar lá perto dos índios, desde que não fosse em área de mineração,
de soja, de pecuária ou de barragem de hidrelétrica.
Para finalizar, vale a pena ressaltar
a influência que este volume tem sobre a tese da tristeza do Paulo Prado, ou
talvez possa se pensar mesmo em influência mútua, dada a proximidade temporal e
geográfica dos autores e suas obras. Alcântara menciona em um trecho que “de
homens dessa fragilidade não há esperar uma reação contra a cobiça e a luxúria,
pecados específicos [grifo meu] das
terras novas”. Mais adiante ele diz “as paragens algo melancólicas de Santa
Cruz”. Já discutimos um pouco sobre essa questão dos vícios específicos, mas
que sempre voltam, tamanha a presença das teses do “erro inato” da patologia intrínseca
do povo desta terra. O pêndulo natureza-cultura não cessa de aparecer quando se
aborda tudo o que é humano.
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