sexta-feira, 3 de junho de 2016

Paragens Melancólicas e Peças do Gentio

Falando do livro como obra, cabe cumprimentar a iniciativa do governo paulista de publicar a Paulística, tanto o de Washington Luís (que na época do lançamento não sei se era governador ou presidente) e a Cláudio Lembo (que assumiu o governo por poucos meses, então talvez tenha sido outro governador a comandar o relançamento).

Em algum momento Alcântara Machado compara a riqueza de detalhes dos inventários da época com a aridez dos testamentos lavrados desde então. Quem sabe um Alcântara Machado do século XXV não lança uma versão da Paulística sobre o século XXI analisando perfis de Facebook e publicações no Twitter. Imagino descrições líricas sobre coxinha e mortadela.

Riquíssima a fonte a ser pesquisada, extrema a perícia exigida ao pesquisador. E Alcântara Machado organizou com maestria os achados, em uma adequada divisão em capítulos por assunto. Dá para ter uma bela imagem de como era a vida do bandeirante dos séculos XVI e XVII em Piratininga. Comparado com Minas e Bahia, é tipo comparar neandertais a Homo sapiens. Apesar de serem espécies muito parecidas, o conteúdo cultural dos achados nas cavernas dos neandertais é bem mais pobre, praticamente inexistente. A tal fortuna do bandeirante só vai aparecer mesmo quando vem o ouro. Nesse meio tempo, ele se vira no cultivo e na pecuária de subsistência (e sub-existência dos escravos índios) e da pilhagem da floresta e das tribos, que parece uma espécie de supermercado a que se recorre quando necessário. Exceto Clemente Álvares, o ferreiro diferentão (já mencionado por Jorge Caldeira no livro discutido neste grupo).

A riqueza relativa da fazenda em relação à vila, já colocadas, se não me engano, em Casa Grande & Senzala, aparece reforçada em São Paulo, onde a vila é ainda mais pobre. Faz mais sentido chamar uma fazenda do sertão de feudaloide do que um engenho, pois este tem sua estrutura — e a própria existência — integrada a um mercado transatlântico, ao passo que aquela é bem mais fechada, onde o cúmulo do comércio é a troca de índios por porrada. O engenho de açúcar de Pernambuco pode ser considerado a ponta da tecnologia da manufatura e do comércio dos séculos XVI e XVII, ao passo que no sertão mal havia moeda. O que havia mesmo era terra. Um terreno custava mais ou menos o preço de um vestido importado. Ou, havia tão pouca roupa que um vestido chegava a custar quase o preço de uma casa.

Quando fala da justiça, o autor comenta que um cargo de juiz de órfãos é mencionado no inventário como herança para um genro. Hoje podemos achar isso absurdo, mas há alguns poucos anos o ministro Luiz Fux, do STF, fez intensa campanha para que sua filha, Marianna, fosse eleita desembargadora do TJ do Rio, apesar da pouca experiência parcamente comprovada. Digo campanha porque a reportagem em que me baseio, da revista Piauí 115 http://piaui.folha.uol.com.br/materia/excelentissima-fux/ , informa que o ministro telefonou intensa e frequentemente para os envolvidos no processo, desde o início. Um dos argumentos que ele usava para convencer seus colegas a facilitar o caminho para seu rebento era “eu não tenho nada para deixar para ela.” Acredito que um cargo de juiz de órfãos estar em um testamento do século XVII no sertão de São Paulo não seja algo tão extraordinário, pois o pensamento aristocrático hereditário era mais bem aceito. Mas isto sequer ser proposto hoje, no TJ do Rio, é de escandalizar qualquer um. Parece que não escandalizou os desembargadores, que admitiram Marianna como uma dos seus. Machado menciona em outros trechos que os próprios juízes davam exemplos de desrespeito às leis. Sempre tive a impressão, um tanto orwelliana, de que boa parte dos que se engajam em atividades de proteção ou execução de leis o fazem, na verdade, com o objetivo de obterem facilidades para burlar as leis, ao invés de reforçá-las. 

Longe de ser uma exaltação ufanista ao personagem do bandeirante, Alcântara Machado deixa sempre claras suas contradições e mazelas. Exalta a — provável — confiança predominante na sociedade então, onde mesmo testamentos com vícios de forma eram aceitos com pouca impugnação. Ultimamente essa questão da confiança tem ganhado importância no meu pensamento. Será que a escassez de impugnações de inventários, analisados trezentos ou quatrocentos anos depois, formam corpo suficiente para se deduzir que uma sociedade tem mais confiança? Fica subjacente uma mensagem de prescindibilidade do elemento controle do Estado. O agente estatal torna-se desnecessário ao funcionamento da sociedade, que praticamente não se contesta, um cidadão confiando no outro. Por outro lado, o excesso de controle, para prevenção de fraudes, por exemplo, gera custos e retrabalhos absurdos, como vivemos hoje em todas as redundâncias burocráticas, selos, carimbos e autenticações. A mera existência da roleta de ônibus já é um índice de confiança, ou de desconfiança. Fico curioso com o funcionamento do novo bonde do Rio, o VLT, que, alega-se, não terá roleta. Vamos acompanhar.

A honra e a respeitabilidade dos nossos cavaleiros, os bandeirantes, convivia com as atrocidades cometidas contra as “peças do gentio” ou “da terra” ou “da Guiné”. Com o tempo, o livre mercado e a livre iniciativa da sociedade autorregulada dos piratiningos vai unificando serviço e escravidão, ignorando cada vez mais a proibição de comercializar índios. Quem sabe um dia o nosso capitalismo não retoma este nível de coerência. Já progrediu muito na questão dos juros, hoje se cobra muito mais, e legalmente, do que os 8% dos órfãos d’antanho. Pensei também no modelo protocapitalista das entradas, em que o armador,“capitalista” que encomendava a entrada, fornecendo meios para o empreendimento, ficava apenas com ametade dos ganhos, em drogas e peças do gentio e demais ganhos. Hoje o armador pagaria um salário aos bandeirantes e ficaria com a totalidade do pote. Uma flechada seria considerada acidente de serviço, mas se o bandeirante fosse PJ, perderia o contrato. Passando o PL da terceirização ou a flexibilização da CLT, talvez o melhor mesmo seja ficar lá perto dos índios, desde que não fosse em área de mineração, de soja, de pecuária ou de barragem de hidrelétrica.

Para finalizar, vale a pena ressaltar a influência que este volume tem sobre a tese da tristeza do Paulo Prado, ou talvez possa se pensar mesmo em influência mútua, dada a proximidade temporal e geográfica dos autores e suas obras. Alcântara menciona em um trecho que “de homens dessa fragilidade não há esperar uma reação contra a cobiça e a luxúria, pecados específicos [grifo meu] das terras novas”. Mais adiante ele diz “as paragens algo melancólicas de Santa Cruz”. Já discutimos um pouco sobre essa questão dos vícios específicos, mas que sempre voltam, tamanha a presença das teses do “erro inato” da patologia intrínseca do povo desta terra. O pêndulo natureza-cultura não cessa de aparecer quando se aborda tudo o que é humano.


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