O livro “Vida e morte do bandeirante” é
interessante porque se propõe a contar história a partir de inventários, ou
testamentos, escritos por homens comuns. Trata-se de uma descrição detalhada,
de fonte fidedigna, sobre a vida dos primeiros descendentes de europeus a habitarem a região que viria a ser São Paulo.
O autor viveu entre 1875 e 1941, e publicou o
livro pela primeira vez em 1929, utilizando como fonte inventários escritos
entre 1578 e 1700. Esses inventários eram escritos rotineiramente por todos os
homens brancos antes de morrer, dos mais abastados aos mais humildes, sendo
redigidos por monges ou clérigos. Os testamentos eram considerados uma forma de
demonstração de fé e sempre se deixava uma parte dos bens pra Igreja. Além
disso, as pessoas também deixavam doações aos pobres e a mosteiros, citavam
detalhadamente onde e como desejavam que ocorressem seus funerais e, algumas
vezes, também aproveitavam para fazer confissões, pedir perdão ou mesmo reparar
possíveis danos cometidos durante a vida. Assim, percebe-se logo a influência
da fé católica na vida dessa população. Os últimos momentos de vida eram
decisivos, pois eles eram a última chance de cumprir uma vida virtuosa o
suficiente para merecer um bom destino após a morte.
Conta o autor que os inventários pesquisados,
que totalizaram 27 volumes e consistiram em 450 processos, antes eram fonte de
estudo apenas dos que se propunham a escrever árvores genealógicas. Nesse ponto o autor faz uma crítica à forma tradicional
de contar história, que teria geralmente como foco a vida de pessoas ilustres.
Ele afirma acreditar na importância dos humildes e dos anônimos no que ele
chama poeticamente de “trama nacional”. Mas se engana quem pensa que o autor é
um humanista crítico de seu tempo. Em meio a muitas descrições dos inventários
que não passam de simples e (verdade seja dita) interessantes citações, o autor
também deixa evidentes suas opiniões
sobre alguns aspectos da sociedade. E
com isso se percebem importantes preconceitos.
Sobre a linguagem, o autor utiliza um
vocabulário próprio de seu tempo, o que soa naturalmente poético pros leitores
atuais. Além disso, em algumas passagens breves o autor parece de fato escrever
uma prosa poética, com algumas imagens que fogem ao que habitualmente se encontra
em livros de história mais formais. É freqüente a descrição literal dos
inventários, o que nos faz perceber certo lirismo também na forma de escrever
dos monges e chama atenção a quantidade de termos e palavras hoje pouco usados.
Entre as informações interessantes, a leitura
dos inventários permite perceber o pequeno valor financeiro associado à
propriedade imobiliária até por volta de 1650, quando os imóveis começam a se
valorizar. Um palacete custa 70 mil no mesmo momento em que um conjunto de
cortinas de cama custa 32 mil. O livro também permite conhecer aspectos
interessantes sobre a vida cotidiana da população, como o fato de comerem com
os dedos, de haver poucas escolas e de
serem raros os colonos letrados. Curiosas também as descrições sobre as doenças
do período: sarampo, varíola, enfermidade de ar, paralisia, gota coral, mulas e
ofidismo, além de haver os “doentes d’alma”, que estariam ”impedidos de seus
sentidos naturais”. Também é descrita a morosidade da justiça, que vem desde
então, e eram também poucos os juristas formados.
O aspecto do livro que mais chama atenção,
porém, é a naturalidade com que é tratada a escravidão e a noção de superioridade dos colonos em relação aos
outros povos. Nos primeiros capítulos, já é bastante incômodo ler os termos
utilizados para se referir às pessoas
escravizadas. Sendo um livro que se
propõe a tratar do cotidiano da vida colonial a partir do ponto de vista dos
humildes e anônimos, surpreende que não haja nenhuma menção à vida cotidiana
dos escravos. Fica evidente com isso que o autor, em 1929, não considera os negros
e índios como seres humanos. Além disso, a questão da falta de liberdade das
mulheres é apenas citada, sem que de
fato haja alguma crítica.
Isso começa a ficar mais evidente quando o
livro começa a tratar da família paulista. É citada a atmosfera de respeito com
que é tratado o patriarca e o tratamento cerimonioso com que se tratam os
membros da família. Às mulheres são reservadas exclusivamente tarefas domésticas
e a alfabetização, rara até então, é privilégio de homens. Além disso, eram os
pais quem escolhiam os maridos das filhas. O autor cita que os divórcios são
raros e que os paulistas se orgulham da “limpeza de seu sangue”. Eles entendiam
por isso a ausência de “raça de mouro, ou judeu, ou cristão novo, ou mulato ou
outra má casta”. Destaca-se que o termo “má casta” não vem de uma transcrição
literal de inventários e nem vem entre aspas, fazendo parecer ser um juízo do
próprio autor. O livro continua citando
que, devido a essa exigência toda em relação à “pureza do sangue”, não eram
muito raros os casamentos consangüíneos. Obviamente, além da família legítima,
também havia os filhos de negras e índias. Curioso que, na mestiçagem, ”prevalecia”
o sangue europeu. Isso se refere ao status que o indivíduo adquiria na
sociedade, o que significa que o mestiço se “enobrece” ante os “negros” e os
“negros de cabelo corredio” , como chegam a ser chamados os índios. Os mestiços
ocupavam lugar de agregados da família, como o capanga, considerado elemento
inferior, porém fiel e necessário.
Ao falar sobre a escravidão, o autor não faz
nenhuma crítica ou juízo de valor importante. Ele cita de forma mais extensa a
questão da escravidão do índio. Conta que houve no período várias normas
contraditórias por parte da coroa sobre sua permissão. Com isso, os paulistas
transformaram os índios em “servos da administração” e criaram um estado
intermediário entre a liberdade e a escravidão propriamente. Na prática, os
índios eram forçados a trabalhar e a seguir as normas sociais e a religião dos
brancos, tendo como única saída a fuga pro sertão, o que fez surgir uma
indústria de “tomada de índios fugidios”.
A questão da escravidão do povo negro merece
apenas breve citação. O autor cita que eles eram mercadoria cara e rara devido
ao fato de apresentarem “maior resistência física e mais passividade”. O autor não faz nenhuma crítica a esses juízos.
A brevidade e frieza com que ele trata do assunto podem parecer inicialmente
condizentes com o tom descritivo do livro, mas no capítulo seguinte logo se
percebe que não é disso que se trata.
O próximo capítulo é sobre religião. O autor
cita um clero imoral, com exceção dos jesuítas, e poucas sucursais do Santo
Ofício, que passa a ter mais importância a partir de 1700. Também fala da
figura interessante do caraíba, espécie de feiticeiro ou vidente que causava
certo furor ao visitar as aldeias, vindo
de longe. O caraíba ficava por dias a meses na aldeia, e com sua presença eram
celebradas festas. Nesse momento, o livro chega a lembrar um pouco o realismo
fantástico de Garcia Marques, com a ironia de se tratar de “realismo real”.
Nesse capítulo algumas coisas chamam atenção.
O autor, que até então mantinha um tom mais descritivo, passa a divagar sobre
fatos distantes de São Paulo e a fazer juízo de valor sobre raças e religiões,
deixando evidentes sua posição antissemita, racista e culturalista, ou seja,
considerando a cultura de alguns povos como inferiores.
Ao citar a aversão aos judeus em Portugal no
século XV, o autor cita que a perseguição não se deu apenas por motivos religiosos, já que os
mouros, “também infiéis” e “de sangue aborrido” , gozavam de relativa segurança
no reino. Segundo o autor, a perseguição ao judeus ocorreu devido à ligação
desse povo com o comércio e a riqueza e ao fato de os judeus não terem
assimilado a cultura local.
O autor tem um discurso antissemita forte e
marcante. Ele afirma que a presença de grande população de judeus em Portugal
criou uma “situação grave” e que eles desempenhavam “odioso papel” na vida
econômica do país. Entre outros adjetivos, o autor descreve os judeus como
arrogantes, de ”avidez proverbial” e diz que eles “coverjam sobre a miséria
alheia”. Diz ainda que o judaísmo é
responsável por subverter a unidade da fé e quebrantar a unidade nacional. Além disso, usa a expressão vulgar “marranos” para se referir aos judeus. Por
fim, ao dizer que o Santo Ofício em Portugal
legalizou e sistematizou a perseguição aos judeus pela execução e pelo
confisco, o autor afirma, sem constrangimento, que se tratou de um progresso.
Ao falar do sincretismo entre religiões
indígenas, africanas e o catolicismo, o autor fala em “deformação progressiva”.
Cita caso de um índio educado por jesuítas que criara uma seita no interior da
Bahia, misturando a fé católica com a fé tradicional indígena e diz que a seita
chegou a “contaminar” os colonos, já que alguns teriam se convertido. O autor,
fugindo um pouco do tema do livro, nesse momento resolve citar Antonio
Conselheiro:
“É a mesma mania epidêmica de fundo religioso, a atacar a mesma
gente, com os mesmos sintomas. Frei Manuel, Antônio Conselheiro e todos os
messias tragicômicos do sertão brasileiro não passam de avatares daquele índio
boçal, que fanatizava a escravaria vermelha e abalava a consciência dos
próprios colonos setecentistas. (...) Os três séculos decorridos não
modificaram sequer a fórmula ou conteúdo do delírio coletivo. Na vaza das superstições e das crendices fermentam
aspirações de ordem social.(...)
Com leves diferenças de substância e de forma, a erronia e abusão
do século XVII continua a ser a religião do caboclo do século XX. Parece
fabricada de acordo com uma daquelas receitas alucinantes da feitiçaria
medieval, em que entravam os elementos
mais nobres e as coisas mais imundas, o ouro e o excremento, a hóstia
consagrada e a carniça dos enforcados.
Em suas crenças o sertanejo é tão mestiço como em sua constituição
física. Reflete as concepções das três raças de que provém: o misticismo, o
fetichismo, o animismo. Imagine-se um santuário em que Jesus e a Virgem se
acotovelam e acompadram com sacis e orixás... Nada mais lógico, afinal, do que
esse disparate. Só as criaturas de mentalidade
superior se contentam com abstrações. A grande maioria dos homens sente a
necessidade instintiva de materializar o objeto de seu culto: não concebe
divindades que não sejam tangíveis e concretas. No sertanejo essa tendência
universal e eterna se agrava em razão do atavismo e da ignorância.” (grifo
meu)
Com isso, fica claro que o autor
considera que a religião cristã é nobre e as religiões indígenas e africanas
são o que há de mais imundo. Além disso, propaga a idéia de que existem povos
superiores a outros. Mais à frente, ao falar das batalhas dos bandeirantes
contra os indígenas, o autor cita que os índios são superiores em número e
desprezo da vida.
Digno notar também que, no
capítulo final, o autor procura exaltar a figura do bandeirante, inclusive
fazendo uma bela comparação com a figura idealizada do marinheiro. Faz sentido,
já que desde a dedicatória o autor deixa claro sua admiração por seus antepassados,
dedicando a obra a Antonio de Oliveira, “chegado a São Vicente em 1532”. Deve
se destacar que o autor era professor de Direito e militante político, tornando
ainda mais evidente que seus preconceitos não eram apenas simples defeitos de
um homem comum e sim se tratavam do pensamento então vigente.
É interessante pensar nesse livro como uma
lição de história não só por atingir de forma adequada seu objetivo de
descrever o cotidiano da vida dos colonos paulistas, mas também por mostrar o
quanto o racismo e o culturalismo estavam presentes de forma natural nos
discursos dos intelectuais brasileiros do início do século XX. Esse discurso,
em 1929, não nos deveria surpreender em princípio, visto que a elite brasileira
sempre foi receptora das ideologias vindas dos países do norte. O que
surpreende é que até hoje esses textos sejam estudados na academia e lidos sem
que se faça uma crítica mais contundente a eles. Devemos entender os autores
como sujeitos inseridos em seu contexto histórico, mas também é importante que
sejam apontados claramente os aspectos negativos de seus discursos. Sabemos o
resultado do discurso antissemita da época em que viveu o autor. Sabemos também
que a perseguição aos judeus foi amplamente apresentada aos brasileiros como
algo terrível e odioso. Mas, ao contrário, o racismo contra o negro e a idéia
de superioridade da cultura européia, em relação a todas as outras culturas,
permanecem sendo naturalizados nos discursos de hoje.
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