domingo, 12 de junho de 2016

A história além da história contada


O livro “Vida e morte do bandeirante” é interessante porque se propõe a contar história a partir de inventários, ou testamentos, escritos por homens comuns. Trata-se de uma descrição detalhada, de fonte fidedigna, sobre a vida dos primeiros descendentes de europeus a  habitarem a região que viria a ser São Paulo.
O autor viveu entre 1875 e 1941, e publicou o livro pela primeira vez em 1929, utilizando como fonte inventários escritos entre 1578 e 1700. Esses inventários eram escritos rotineiramente por todos os homens brancos antes de morrer, dos mais abastados aos mais humildes, sendo redigidos por monges ou clérigos. Os testamentos eram considerados uma forma de demonstração de fé e sempre se deixava uma parte dos bens pra Igreja. Além disso, as pessoas também deixavam doações aos pobres e a mosteiros, citavam detalhadamente onde e como desejavam que ocorressem seus funerais e, algumas vezes, também aproveitavam para fazer confissões, pedir perdão ou mesmo reparar possíveis danos cometidos durante a vida. Assim, percebe-se logo a influência da fé católica na vida dessa população. Os últimos momentos de vida eram decisivos, pois eles eram a última chance de cumprir uma vida virtuosa o suficiente para merecer um bom destino após a morte.
Conta o autor que os inventários pesquisados, que totalizaram 27 volumes e consistiram em 450 processos, antes eram fonte de estudo apenas dos que se propunham a escrever árvores genealógicas.  Nesse ponto o autor faz uma crítica à forma tradicional de contar história, que teria geralmente como foco a vida de pessoas ilustres. Ele afirma acreditar na importância dos humildes e dos anônimos no que ele chama poeticamente de “trama nacional”. Mas se engana quem pensa que o autor é um humanista crítico de seu tempo. Em meio a muitas descrições dos inventários que não passam de simples e (verdade seja dita) interessantes citações, o autor também deixa  evidentes suas opiniões sobre alguns aspectos da sociedade.  E com isso se percebem importantes preconceitos. 
Sobre a linguagem, o autor utiliza um vocabulário próprio de seu tempo, o que soa naturalmente poético pros leitores atuais. Além disso, em algumas passagens breves o autor parece de fato escrever uma prosa poética, com algumas imagens que fogem ao que habitualmente se encontra em livros de história mais formais. É freqüente a descrição literal dos inventários, o que nos faz perceber certo lirismo também na forma de escrever dos monges e chama atenção a quantidade de termos e palavras hoje pouco usados.
Entre as informações interessantes, a leitura dos inventários permite perceber o pequeno valor financeiro associado à propriedade imobiliária até por volta de 1650, quando os imóveis começam a se valorizar. Um palacete custa 70 mil no mesmo momento em que um conjunto de cortinas de cama custa 32 mil. O livro também permite conhecer aspectos interessantes sobre a vida cotidiana da população, como o fato de comerem com os dedos,  de haver poucas escolas e de serem raros os colonos letrados. Curiosas também as descrições sobre as doenças do período: sarampo, varíola, enfermidade de ar, paralisia, gota coral, mulas e ofidismo, além de haver os “doentes d’alma”, que estariam ”impedidos de seus sentidos naturais”. Também é descrita a morosidade da justiça, que vem desde então, e eram também poucos os juristas formados.
 O aspecto do livro que mais chama atenção, porém, é a naturalidade com que é tratada a escravidão e a noção  de superioridade dos colonos em relação aos outros povos. Nos primeiros capítulos, já é bastante incômodo ler os termos utilizados para se referir  às pessoas escravizadas.  Sendo um livro que se propõe a tratar do cotidiano da vida colonial a partir do ponto de vista dos humildes e anônimos, surpreende que não haja nenhuma menção à vida cotidiana dos escravos. Fica evidente com isso que o autor, em 1929, não considera os negros e índios como seres humanos. Além disso, a questão da falta de liberdade das mulheres é apenas citada,  sem que de fato haja alguma crítica.
Isso começa a ficar mais evidente quando o livro começa a tratar da família paulista. É citada a atmosfera de respeito com que é tratado o patriarca e o tratamento cerimonioso com que se tratam os membros da família. Às mulheres são reservadas exclusivamente tarefas domésticas e a alfabetização, rara até então, é privilégio de homens. Além disso, eram os pais quem escolhiam os maridos das filhas. O autor cita que os divórcios são raros e que os paulistas se orgulham da “limpeza de seu sangue”. Eles entendiam por isso a ausência de “raça de mouro, ou judeu, ou cristão novo, ou mulato ou outra má casta”. Destaca-se que o termo “má casta” não vem de uma transcrição literal de inventários e nem vem entre aspas, fazendo parecer ser um juízo do próprio autor.  O livro continua citando que, devido a essa exigência toda em relação à “pureza do sangue”, não eram muito raros os casamentos consangüíneos. Obviamente, além da família legítima, também havia os filhos de negras e índias. Curioso que, na mestiçagem, ”prevalecia” o sangue europeu. Isso se refere ao status que o indivíduo adquiria na sociedade, o que significa que o mestiço se “enobrece” ante os “negros” e os “negros de cabelo corredio” , como chegam a ser chamados os índios. Os mestiços ocupavam lugar de agregados da família, como o capanga, considerado elemento inferior, porém fiel e necessário.
Ao falar sobre a escravidão, o autor não faz nenhuma crítica ou juízo de valor importante. Ele cita de forma mais extensa a questão da escravidão do índio. Conta que houve no período várias normas contraditórias por parte da coroa sobre sua permissão. Com isso, os paulistas transformaram os índios em “servos da administração” e criaram um estado intermediário entre a liberdade e a escravidão propriamente. Na prática, os índios eram forçados a trabalhar e a seguir as normas sociais e a religião dos brancos, tendo como única saída a fuga pro sertão, o que fez surgir uma indústria de “tomada de índios fugidios”. 
A questão da escravidão do povo negro merece apenas breve citação. O autor cita que eles eram mercadoria cara e rara devido ao fato de apresentarem “maior resistência física e mais passividade”. O  autor não faz nenhuma crítica a esses juízos. A brevidade e frieza com que ele trata do assunto podem parecer inicialmente condizentes com o tom descritivo do livro, mas no capítulo seguinte logo se percebe que não é disso que se trata.
O próximo capítulo é sobre religião. O autor cita um clero imoral, com exceção dos jesuítas, e poucas sucursais do Santo Ofício, que passa a ter mais importância a partir de 1700. Também fala da figura interessante do caraíba, espécie de feiticeiro ou vidente que causava certo furor ao visitar as aldeias,  vindo de longe. O caraíba ficava por dias a meses na aldeia, e com sua presença eram celebradas festas. Nesse momento, o livro chega a lembrar um pouco o realismo fantástico de Garcia Marques, com a ironia de se tratar de “realismo real”.
Nesse capítulo algumas coisas chamam atenção. O autor, que até então mantinha um tom mais descritivo, passa a divagar sobre fatos distantes de São Paulo e a fazer juízo de valor sobre raças e religiões, deixando evidentes sua posição antissemita, racista e culturalista, ou seja, considerando a cultura de alguns povos como inferiores.
Ao citar a aversão aos judeus em Portugal no século XV, o autor cita que a perseguição não se deu  apenas por motivos religiosos, já que os mouros, “também infiéis” e “de sangue aborrido” , gozavam de relativa segurança no reino. Segundo o autor, a perseguição ao judeus ocorreu devido à ligação desse povo com o comércio e a riqueza e ao fato de os judeus não terem assimilado a cultura local.
O autor tem um discurso antissemita forte e marcante. Ele afirma que a presença de grande população de judeus em Portugal criou uma “situação grave” e que eles desempenhavam “odioso papel” na vida econômica do país. Entre outros adjetivos, o autor descreve os judeus como arrogantes, de ”avidez proverbial” e diz que eles “coverjam sobre a miséria alheia”.  Diz ainda que o judaísmo é responsável por subverter a unidade da fé e quebrantar  a unidade nacional.  Além disso, usa a expressão vulgar  “marranos” para se referir aos judeus. Por fim, ao dizer  que o Santo Ofício em Portugal legalizou e sistematizou a perseguição aos judeus pela execução e pelo confisco, o autor afirma, sem constrangimento, que se tratou de um progresso.
Ao falar do sincretismo entre religiões indígenas, africanas e o catolicismo, o autor fala em “deformação progressiva”. Cita caso de um índio educado por jesuítas que criara uma seita no interior da Bahia, misturando a fé católica com a fé tradicional indígena e diz que a seita chegou a “contaminar” os colonos, já que alguns teriam se convertido. O autor, fugindo um pouco do tema do livro, nesse momento resolve citar Antonio Conselheiro:

“É a mesma mania epidêmica de fundo religioso, a atacar a mes­ma gente, com os mesmos sintomas. Frei Manuel, Antônio Conselheiro e todos os messias tragicô­micos do sertão brasileiro não passam de avatares daquele índio boçal, que fanatizava a escravaria vermelha e abalava a cons­ciência dos próprios colonos setecentistas. (...) Os três séculos decorridos não modificaram sequer a fórmula ou conteúdo do delírio coletivo. Na vaza das superstições e das crendices fermentam aspirações de ordem social.(...)
Com leves diferenças de substância e de forma, a erronia e abu­são do século XVII continua a ser a religião do caboclo do século XX. Parece fabricada de acordo com uma daquelas receitas alu­cinantes da feitiçaria medieval, em que entravam os elementos mais nobres e as coisas mais imundas, o ouro e o excremento, a hóstia consagrada e a carniça dos enforcados.
Em suas crenças o sertanejo é tão mestiço como em sua constituição física. Reflete as concepções das três raças de que provém: o misticismo, o feti­chismo, o animismo. Imagine-se um santuário em que Jesus e a Virgem se acotovelam e acompadram com sacis e orixás... Nada mais lógico, afinal, do que esse disparate. Só as criaturas de men­talidade superior se contentam com abstrações. A grande maioria dos homens sente a necessidade instintiva de materializar o obje­to de seu culto: não concebe divindades que não sejam tangíveis e concretas. No sertanejo essa tendência universal e eterna se agra­va em razão do atavismo e da ignorância.”  (grifo meu)


Com isso, fica claro que o autor considera que a religião cristã é nobre e as religiões indígenas e africanas são o que há de mais imundo. Além disso, propaga a idéia de que existem povos superiores a outros. Mais à frente, ao falar das batalhas dos bandeirantes contra os indígenas, o autor cita que os índios são superiores em número e desprezo da vida.
Digno notar também que, no capítulo final, o autor procura exaltar a figura do bandeirante, inclusive fazendo uma bela comparação com a figura idealizada do marinheiro. Faz sentido, já que desde a dedicatória o autor deixa claro sua admiração por seus antepassados, dedicando a obra a Antonio de Oliveira, “chegado a São Vicente em 1532”. Deve se destacar que o autor era professor de Direito e militante político, tornando ainda mais evidente que seus preconceitos não eram apenas simples defeitos de um homem comum e sim se tratavam do pensamento então vigente.
 É interessante pensar nesse livro como uma lição de história não só por atingir de forma adequada seu objetivo de descrever o cotidiano da vida dos colonos paulistas, mas também por mostrar o quanto o racismo e o culturalismo estavam presentes de forma natural nos discursos dos intelectuais brasileiros do início do século XX. Esse discurso, em 1929, não nos deveria surpreender em princípio, visto que a elite brasileira sempre foi receptora das ideologias vindas dos países do norte. O que surpreende é que até hoje esses textos sejam estudados na academia e lidos sem que se faça uma crítica mais contundente a eles. Devemos entender os autores como sujeitos inseridos em seu contexto histórico, mas também é importante que sejam apontados claramente os aspectos negativos de seus discursos. Sabemos o resultado do discurso antissemita da época em que viveu o autor. Sabemos também que a perseguição aos judeus foi amplamente apresentada aos brasileiros como algo terrível e odioso. Mas, ao contrário, o racismo contra o negro e a idéia de superioridade da cultura européia, em relação a todas as outras culturas, permanecem sendo naturalizados nos discursos de hoje.

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