segunda-feira, 7 de março de 2016

Ei, você, fascista! Uma conversa com o espelho.



O livro da minha estreia no GEB não poderia ser mais estimulante. Como conversar com um fascista, da Marcia Tiburi, foi um soco no estômago por ter finalmente percebido que eu tenho, por vezes, atitudes fascistas, uma vez que basta uma simples fala não racionalizada, colocada pra fora por impulso, ou um assunto sobre o qual não conheço o suficiente para o meu discurso se caracterizar como autoritário.

A despeito do título dar a impressão de que o livro se trata de um "manual", a formação filosófica da autora não permitiria que tal abordagem fosse aplicada, tendo em vista que a filosofia não é feita de manuais, receitas, how to do, ou posts com lista de "8 coisas ..." de blogs. Comecei a ler e me deparei com uma discussão filosófica a respeito do diálogo, do papel da mídia, do ódio, do machismo, entre outros tópicos, formando uma miscelânea de assuntos. 

A linguagem, ao contrário do que foi dito por Rubens R. R. Casara na Apresentação, não é tão acessível para os que pouco ou nunca tiveram contato com filosofia ou psicologia. Algumas palavras adquirem outros significados, como por exemplo "afeto", que eu conhecia somente como amor ou simpatia, mas que no texto é utilizada para se referir a ódio também. 

Interessante a colocação da autora sobre a deformação que o capitalismo causa na democracia, fomentada com a ajuda do discurso autoritário. Um regime político no qual deveria caber todos é afetado por um sistema econômico que exclui para se manter vivo, mesmo fazendo "fazendo parecer que o monopólio da democracia é seu". Nos governos Lula e Dilma buscou-se conciliar estes dois paradigmas. Investiu-se na inclusão social, tentando "não incomodar" os interesses do capital. Mas a mídia, como detentora do capital, encarregou-se de mostrar somente o lado inclusivo, manipulando a informação para conferir um viés negativo aos esforços do governo. Manipulada e utilizada como uma máquina de repetição de clichês, a classe média manifesta, através das redes sociais, seu ódio aos programas voltados aos pobres, sem analisar criticamente o valor daquilo para a sociedade em que vive. 

Na contramão da difusão do discurso autoritário, Marcia Tiburi escreve sobre o alcance dos movimentos sociais - macro ou microscósmicos - no Facebook, Twitter etc. Como exemplo, ela cita uma pequena aldeia de índios que consegue apoio por quem talvez nunca tenha ouvido falar deles e atesta o poder de penetração que as redes sociais proporcionam a causas antes completamente desconhecidas.  E isso aumenta o conhecimento em relação ao "outro", através de apresentação feita por ele próprio, e não uma descrição deformada realizada por um outro "outro". A abertura ao outro, oferecendo-lhe a escuta na tentativa de entendê-lo, conhecer seu ponto de vista, abrindo seu mundo para que o outro entre, está entre os caminhos para o arrefecimento do ódio. 

Para finalizar, uma questão que gostaria de expor é que, apesar do termo fascista remeter a um sistema político de extrema direita, o discurso autoritário que a ele pertence é utilizado pela esquerda. A forma como a linguagem é posta determina o viés autoritário ou não. O que importa é se a comunicação se dá pelo diálogo, ou pelo discurso. 

Gostaria de agradecer o convite para participar do GEB. Acredito que muitas certezas deixarão de existir e de que muitas dúvidas surgirão. Mas, de acordo com a autora, o questionamento é "o segredo da inteligência humana". Então, que venham!

Grande abraço a todos. Estou ansiosa para conhecê-los. Até mais!

domingo, 6 de março de 2016

Bem-vindo ao deserto do real




Não consigo imaginar uma leitura mais atual do que o livro "Como Conversar com um Fascista", da Marcia Tílburi.

Vivemos um cenário político turbulento em que a sociedade encontra-se polarizada. Cada lado apruma-se em debates ferozes para alegar que as ações do grupo político que defende são para a "defesa da democracia". Seja pelo argumento do combate à corrupção, seja pelo argumento da defesa do mandato da presidente eleita, a disputa sempre termina na defesa da democracia (alguns usam o pomposo nome "Estado democrático de Direito"). Porém, tenho pensado sobre o que é esta democracia em que vivemos, e se ela é real.

A reflexão me traz à lembrança a seguinte passagem do livro "Bem-Vindo ao Deserto do Real", do Slavoj Zizek: 

"Numa antiga anedota que circulava na hoje falecida República Democrática Alemã, um operário alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que toda correspondência será lida pelos censores, ele combina com os amigos: “Vamos combinar um código: se uma carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em tinta vermelha, tudo é mentira”. Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em tinta azul: “Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa –o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha ”. Neste caso, a estrutura é mais refinada do que indicam as aparências: apesar de não ter como usar o código combinado para indicar que tudo o que está dito é mentira, mesmo assim ele consegue passar a mensagem; como? Pela introdução da referência ao código, como um de seus elementos, na própria mensagem codificada. Evidentemente, este é o problema padrão da autorreferência: como a carta foi escrita em tinta azul, todo o seu conteúdo não teria de ser verdadeiro? A resposta é que o fato de a mensagem ter mencionado a inexistência de tinta vermelha indica que ela deveria ter sido escrita em vermelho. O interessante é que esta menção à inexistência de tinta vermelha produz o efeito da verdade independentemente da sua própria verdade literal : ainda que houvesse tinta vermelha, a mentira de ela não existir é a única forma de transmitir a mensagem verdadeira naquela condição específica de censura. Não é esta a matriz de uma crítica eficaz da ideologia –não somente em condições “totalitárias” de censura, mas, talvez ainda mais, nas condições mais refinadas da censura liberal? (...)

Num diálogo clássico de uma comédia de Hollywood, a mocinha pergunta ao namorado: “‘Você quer se casar comigo?’ ‘Não.’ ‘Ora, pare de enrolar! Quero uma resposta direta.’” De certa forma, a lógica subjacente está correta: a única resposta aceitável para a moça é “Quero!”, e, assim, qualquer outra coisa, inclusive um “Não!” definitivo, é percebida como evasão. A lógica oculta é evidentemente a mesma que está por trás da escolha imposta: você tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a escolha certa. Não seria este o mesmo paradoxo utilizado por um padre numa discussão com um leigo? “‘Você acredita em Deus?’ ‘Não.’ ‘Pare de fugir da discussão. Quero uma resposta direta.’” Mais uma vez, na opinião do padre, a única resposta direta é afirmar a crença em Deus: longe de ser vista como uma posição diretamente simétrica, a negação de crença por parte do ateu é vista como uma tentativa de evitar o problema do encontro divino. E não é exatamente o que se dá com a escolha entre “democracia ou fundamentalismo”? Não é verdade que, nos termos desta escolha, é simplesmente impossível escolher o “fundamentalismo”? O que é problemático na forma como a ideologia dominante nos impõe esta escolha não é o fundamentalismo, mas a própria democracia : como se a única alternativa ao “fundamentalismo” fosse o sistema político da democracia parlamentar liberal." (Bem-vindo ao Deserto do Real, Slavoj Zizek, p. 5-6)

Tenho pensado, na conjuntura atual, o quanto nossas ações - políticas, profissionais, acadêmicas e como cidadãos - contribuem (ou não) para uma democracia de fato, e se o que vivemos é uma democracia real. Não me parece que sejam muitas as escolhas: mesmo com a liberdade do voto que temos, o sistema político parece se constituir numa rede tão intrincada de conjunturas pré-determinadas que, qualquer que seja a escolha que façamos, apenas significará uma reprodução das estruturas que já existem. 

Haverá alguma escolha para a transformação da nossa realidade?

Haverá alguma escolha?

No contexto de polarização atual, cada lado do espectro político acusa o oponente de estar "destruindo o país". Vemos um nível crescente de intolerância e ódio, com cada lado acreditando que, ao "vencer" o embate, o país retornará a crescer e teremos uma democracia estável, com crescimento econômico e instituições mais fortes e menos corruptas. 

Será possível? 

Será que, com o nível de desgaste que se observa na conjuntura atual, haverá alguma possibilidade de voltarmos a ter uma democracia real? 

E será que algum dia tivemos esta dita democracia real?

Me pergunto se haverá alguma lição a se aprender com a turbulência que vivemos hoje. Talvez, nos anos que virão, possamos tirar algo de construtivo de todo este processo. Porém, por hora, só o que enxergo é o terrível processo de desconstrução do outro. A impossibilidade de enxergar o que de positivo pode ser tirado do discurso de cada lado - eu mesma tenho muita dificuldade em fazer este exercício (uma excelente tentativa pode ser lida aqui) . E o quanto somos levados a crer que o outro é o errado, o vândalo, o corrupto, o míope, o herege. O que nos traz a uma das principais construções do livro da Marcia Tílburi (a transcrição é longa, mas vale a pena):       

"O capitalismo exige uma encenação e ela custa muito caro. O ato de falar e até mesmo de escrever, pelo qual expressamos pensamentos, também entra nesse jogo que é, afinal, um jogo de linguagem. Por isso, no capitalismo se cuida tanto da ordem do discurso (o que antigamente era chamado de retórica). A regulamentação das falas e dos textos visa a não prejudicar o sistema. Neste contexto, as palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião. Neste contexto, as palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião no âmbito das escrituras e das pregações (em geral, no púlpito tecnológico da televisão). Assim como, em sendo questionada, a palavra “Deus” gera o estigma do herege ou do ateu, a palavra “capitalista”, quando questionada, gera o estigma do “comunista”, ele mesmo tratado como um tipo de ateu em sua descrença crítica do sistema. O capitalismo depende da criação de estigmas contra tudo o que vem a criticá-lo: pode-se usar a palavra “vândalo”, o termo “terrorista” ou qualquer outro com sentido invertido. Assim, a religião inventou o diabo e as mais diversas figuras de oposição. No esquema discursivo do capitalista a estigmatização protege da crítica. O discurso é a arma de proteção do capitalismo. Os críticos, por sua vez, temem dizer “capitalismo” para não serem acusados de “comunistas”. A ousadia de dar nome é perigosa como a pronúncia do nome de Deus em vão. Ou do nome do diabo. O antagonista é sempre estigmatizado. Palavras mágicas, dogmas que revelam pretensas verdades e estigmas que afastam supostas mentiras, que esconjuram. Eis do que é feito o plano discursivo da ordem capitalista. Ele é um sistema de verdades, assim como o é a religião.


A sedução capitalista que escamoteia a opressão organiza-se na forma de uma constelação de palavras mágicas, por meio das quais o falante e o ouvinte acreditam realizar todos os seus desejos. Palavras como felicidade, ética, liberdade, oportunidade, mérito, são todas mágicas. Uma dessas palavras mágicas usadas pelo capitalismo é a palavra “democracia”. Antidemocrático, o capitalismo precisa ocultar sua única democracia verdadeira —a partilha da miséria e, hoje em dia, cada vez mais, a matabilidade —em nome da aparência de outra que é feita com as palavras mágicas. Aristocrático, ele acusará a crítica de ser antidemocrática, pois ele faz parecer que o monopólio da democracia é seu. Assim como todo sujeito autoritário reserva para si certas verdades, acontece com o todo do regime, pois esta reserva faz parte de sua lógica. Como véu acobertador de manejo simples, a democracia usada em sentido mágico perde sua história carregada de importantes significados políticos. Em seu fundo bem oculto, no tempo presente, sobrevive alguma coisa que ainda parece razoável, algo que desejamos, um governo de todos, direitos e igualdade social. Ao mesmo tempo, é evidente que há uma mentira concreta na democracia: a estabilização do capitalismo ou de outros regimes autoritários para a qual a palavra serve de acobertamento. O casamento entre opressão e sedução promete realizar a mágica capitalista em um fiat lux redentor. A democracia nesse contexto é também um reducionismo, mas ainda não achamos um nome melhor para uma utopia possível(...)

Creio que, neste momento brasileiro, poucas pessoas que agem em nome da democracia estejam se questionando sobre o que ela realmente seja. É provável que poucos pratiquem o ato de humildade do conhecimento que é o questionamento honesto. O questionamento é uma prática, mas é também qualidade do conhecimento. É a virtude do conhecimento. É essa virtude que nos faz perguntar sobre o que pensamos e assim nos permite sair do nível dogmático para o nível reflexivo de pensamento. Essa passagem da ideia pronta que recebemos da religião, do senso comum, dos meios de comunicação, para o questionamento é o segredo da inteligência humana, seja ela cognitiva, moral ou política." (Como Conversar com um Fascista, Marcia Tílburi, p. 57)

Não tenho nenhuma grande conclusão ao fazer a leitura do livro. 

Tenho apenas mais dúvidas, e muito receio pelo que virá. Não acho que teremos uma democracia mais sólida depois deste processo destrutivo que vivemos hoje - na verdade, creio que nossa frágil democracia corra um sério risco (um bom lembrete do risco que corremos aqui). Tenho dúvidas se o que tínhamos antes desta crise era uma democracia de fato e o quanto de positivo podemos resgatar do que existiu. O que vejo é um processo sem volta, de demonização do outro e da política, através de um jogo imerso em uma espetacularização que utiliza "palavras mágicas" como "combate à corrupção" e "defesa da ética" - que perdem seu sentido ao serem utilizadas em um processo cada vez mais corrompido, de consequencias imprevisíveis.  Não vejo amadurecimento, não vejo democracia, não vejo diálogo, não vejo aprendizado. Vejo apenas mais dúvidas, ódio e a possibilidade de um regime fascistóide. 

Não vejo nada de bom.

Bem-vindo ao deserto do real.




O livro Como Conversar com Fascistas – Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, da Marcia Tiburi, é ao mesmo tempo simples e complexo por tratar em poucas páginas tantos temas que dariam para escrever livros. Antes de começar a lê-lo, numa ansiedade pelo título, achei que fosse encontrar nas páginas que se seguiam a reposta da pergunta que me faço toda vez que me vejo em situações onde o outro (que obviamente considero fascista) me incomoda. Essa ansiedade foi se acalmando e mudando de lugar, página a página, quando ainda nos primeiros capítulos passei a indagar: por que o outro é que é o fascista e não eu?

Entendi que uma das propostas (principal) da autora é o diálogo e a escuta (um não existe sem o outro), sendo trabalhados na perspectiva de sair do modelo autocentrado, baseado no paradigma eurocêntrico, e em tantos outros que aprendemos a ser desde que nascemos e nos relacionamos.

Entretanto, desafio ao grupo pensar: É só vir alguém que mora na baixada, frequenta a igreja evangélica, tem 7 filhos e vota no Crivela que nossa escuta vai para puta que pariu. Nos colocamos superiores da mesma maneira que o homem branco, hétero, nascido na zona sul, se coloca no direito de ser achar superior, assim como o Carioca com as pessoas do interior, do Brasileiro com o Boliviano, do Inglês com o Brasileiro e por aí, sem fim...

Voltando ao livro, fiquei com um gosto amargo da apresentação do Jean Wyllys, esperava mais dele. Achei superficial. Misturou política quando falou do Movimento Brasil Livre. Se colocou superior quando falou que compaixão pelos analfabetos políticos.

O livro começa tratando de autoritarismo, democracia, capitalismo e ódio. Discordo da autora ao relacionar o sentimento de ódio e autoritarismo diretamente oriundos do capitalismo, desde que o mundo é mundo, as batalhas sempre foram por poder e território. O modelo econômico pode reforçar, mas não vejo o capitalismo como principal meio do ódio e autoritarismo.

Já a parte que a autora discorre sobre consumismo da linguagem, a influência dos meios de comunicação, principalmente da TV, compartilhando inverdades pelas redes sociais, repetindo discursos sem pensar, sem estudar, é para mim um dos principais dilemas.

Outra palavra que a autora utiliza ao longo do livro e que gostaria de trazer para o debate é alteridade. “O que estamos fazendo uns com os outros? Como fazer para me abrir ao outro? Como fazer para que o outro possa estar aberto à minha própria alteridade? Os atos de fala, nesse caso, precisam ser atos generosos, atos de doação” (página 48). Na página 53, a autora cita Adorno e o texto “Educação após Auschwitz”. E tornei a me perguntar: Como me tornei como eu sou?

Importante quando a autora chama atenção para o modelo de democracia que tanto nos orgulhamos de viver, ao mesmo tempo em que parte da nossa sociedade em geral e a classe política parecem lutar contra os direitos dos outros, não entendendo que isso é questionar seus próprios direitos (anticidadão).  

Na página 70, a autora vincula democracia com alegria. Discordo. Alegria é subjetivo. Assim, apesar de ter entendido a analogia que a autoria quis fazer com a democracia sendo criança e revolucionária, não gostei da comparação. E também não gostei da comparação dos que atualmente batem panela, necessariamente, pessoas que são contra mulheres, homossexuais e etc. No capítulo 27 também discordo da histeria criada para a marcha de 15 de março de 2015.

Outros temas são tratados pela autora como depressão, neofundamentalismo, linchamentos, estupro, legalização do aborto, coronelismo intelectual, a arte de escrever para idiotas e aí quando você achava que ela continuaria a seguir essa linha, ela nos surpreende falando de Brasil.
Foram 6 capítulos tratando do nosso imaginário, de como ele é formado a partir da construção ainda da época de Colombo. O país que nos tornamos e por isso qualquer Brasil natural não existe. Há um Brasil que só cabe nas bibliotecas, provoca na página 156. Critica mais uma vez a educação e os meios de comunicação, pelos quais, carregamos uma bandeira invisível, que só nos torna mais conformados e impotentes.

O livro termina com o caso dos índios Guarani-Kaiowá, onde a autora indica o lado positivo das redes sociais, num momento único e surpreendente, nas palavras dela, sobre a reação da sociedade urbana no apoio aquela causa. Mas eu provocaria a autora exatamente ao contrário. Quantos foram os que leram sobre o que estava acontecendo antes de prestar apoio? Será que as pessoas que fizeram isso realmente se importavam com os índios ou não queriam estar fora daquele movimento e não serem taxadas negativamente?


O livro termina sem mostrar a que veio. Deixa a mensagem do diálogo, trata de assuntos atuais e importantes para o debate, nos provoca questionamentos, mas senti falta de um fechamento melhor.

Márcia Convida



Veja aqui um video bem humorado sobre discussões.

Nos anos 90, lembro que o SBT transmitia um “programa da Márcia”, algo assim, apresentado por Márcia Goldschmidt. O programa era basicamente uma sala-arena com sofás, em que as pessoas resolviam suas diferenças, e debates rapidamente degeneravam em bate-bocas, às vezes culminando com ataques físicos.

Lendo Como Conversar Com Um Fascista – Reflexões Sobre o Cotidiano Autoritário Brasileiro, me senti recebendo de Márcia, Tiburi, não Goldschmidt, um convite para chamar os fascistas para a sala. Para não me furtar ao diálogo. Para não replicar discursos que apagam o diálogo. O primeiro convidado foi o fascista que mora em mim.

Traz o desafio de se propor um “ato de humildade cognitiva”, de se colocar a entender o outro, a viver as conversas — que podem se tornar diálogos — como uma oportunidade de exercer uma curiosidade, sem aplicar saberes estabelecidos a priori. Para haver um diálogo minimamente respeitoso, é preciso se despir de um saber dado, e entender que o outro vai ter algo a ensinar, ou apenas que eu não sei de antemão o que o outro vai dizer, ou que eu tente não misturar o argumento com a pessoa. Uma curiosidade humilde, eu me interesso sobre a capacidade de o outro me surpreender, de me ensinar, que o que eu sei não pode ser completo.

Márcia tece uma complexa rede entre conceitos de filosofia, comunicação, política, psicanálise e outros campos do saber para tentar dar conta deste fenômeno que estamos vivendo, que não se mostrou por completo, e talvez essa completude jamais chegue para nós, um fenômeno que não sabemos exatamente o que é. Muito disto Márcia coloca como sendo novidade, julgando pela frequência com que aparece a expressão “hoje em dia”. Um questionamento inicial seria, portanto, será que este fenômeno — ódio, fascismo ou outro nome — de fato está ressurgindo? Ou será que nunca foi embora? Analogamente, o livro se concentra no espaço brasileiro, mas é difícil entender o contexto sem incluir na teia, na rede, perspectivas transnacionais, que abarcam o capitalismo como um acontecimento, um modo de produção que não conhece fronteiras, mesmo que se adapte aos mais diversos matizes culturais e nacionais.

A autora traça alguns juízos no livro que poderiam ter algum dado de pesquisa, alguma base mais sólida, em que pese se tratar de um ensaio, um pensamento. Quando ela diz que “o ódio está em alta”, não sei muito bem o que isso quer dizer, se há mais pessoas com ódio, se há mais crimes de ódio, de há mais ódio nas pessoas ou se simplesmente as pessoas estão se manifestando com mais ódio no dia-a-dia. Esta questão merece uma reflexão, que o livro não trouxe.

Essa rede tão ampla de campos do saber poderia ter facilmente tombado para um lado pedante e hermético, mas a grande habilidade de Márcia, na confecção, na artesania desse livro, foi justamente concatenar todas essas abas, todos esses vetores num texto praticamente sem jargão, acessível.

Um dos fios dessa rede acaba sendo a saúde mental, a psicologia, psiquiatria, psicanálise, enfim, ao longo do livro várias vezes o entender da mente é convocado na trama de argumentos. Este foi, portanto, um convite de Márcia que me atinge especialmente, considerando esta ser a minha área de formação e trabalho.

Sempre que se fala em fascismo ou movimentos de massa em geral, há alguma explicação ou pontuação psi a ser colocada. Assim que li o termo paranoia, um dos primeiros a aparecer no livro, achei que valeria a pena fazer uma ressalva: é preciso ter muito cuidado quando extrapolamos dados ou conhecimentos estabelecidos individualmente — como a maior parte do saber psi — para massas ou coletivos, sob pena de simplificar problemas muito complexos. Ela mesma aponta que não dá para considerar a paranoia do fascista como uma doença, ou sintoma de doença, mas o termo é associado a uma patologia que pode indicar um tratamento específico. Falar de paranoia coletiva é bem diferente de um falar sobre um grupo de indivíduos, cada um com paranoia.

Quando se lida com questões de opressão, por exemplo de assédio moral (uma espécie de bullying no trabalho, e.g. quando um chefe inferniza de propósito alguém no trabalho), obviamente estamos falando de um indivíduo que sofre na mão do assediador. No entanto, como ela aponta no livro, não se pode perder de vista que a pessoa que assedia o faz na medida em que é sustentado por todo um suporte social que apoia que a vítima seja, por exemplo, explorada em seu trabalho, o mesmo suporte social que dilui a responsabilidade por um linchamento ou por incendiar um índio ou pessoa dormindo na rua. No modo de produção capitalista, com uma grande reserva de mão-de-obra (onde cada vez menos especialização é necessária para a maior parte dos empregos), se uma pessoa adoece ela pode ser facilmente substituída por outra, que também vai ou adoecer, ou se adaptar às normas exploratórias da rotina.

O ponto mais bonito da área psi a ser abordado na questão do fascismo, a meu ver, é a questão ada alteridade. Há várias formas de se encarar a formação da noção de outro dentro da psicanálise, e, no modo como entendo, a noção de outro vem lentamente, à medida que o bebê sente que ele não tem controle de tudo, que o peito da mãe não aparece sempre que ele está com fome. Que há outras pessoas que têm vontades e realizam atos que não são só dar de mamar para ele, coisas imprevisíveis. O reconhecimento do outro se dá pela diferença e pela negação, isto é, o outro existe na medida em que eu entendo que vontade dele pode ser diferente da minha. Para isto, o bebê precisa ter alguma segurança, não sentir a alteridade como algo ameaçador, invasivo. No adulto, reconhecer o outro é entender que “eu sou o outro de um outro”, uma ponte para a empatia, para a capacidade de se colocar no lugar do outro. O fascismo é apontado então como a ausência dessa possibilidade, o fascista não considera o outro como um semelhante. Apenas com o reconhecimento de um outro, do lado de fora, é possível se relacionar de maneira minimamente saudável com este outro. De maneira a respeitar a existência do outro como qualitativamente semelhante à minha. O amor é, então, um amor na diferença.  

E até o amor foi incluído na transformação da felicidade em consumo. No capítulo do “Eu Te Amo”, esta expressão é descrita, muito corretamente, como desgastada e até esvaziada de valor pela repetição excessiva. Vende-se a experiência de dizer “eu te amo” como num filme americano. Hoje posso dizer que “eu te amo” tira o valor do amor, que pode ser expressado mais valiosamente com outras expressões, inclusive em um filme, “Melhor É Impossível”, quando o “eu te amo” foi, em um diálogo, substituído por “você me faz querer ser uma pessoa melhor”.

A propaganda esvaziou o “eu te amo”. Podemos dizer que a propaganda é o centro do capitalismo. É pela propaganda que acreditamos ter necessidades que não temos, que compramos soluções para problemas que não temos. O poder da linguagem, os processos de linguagem (que, ao contrário do que Márcia diz, não se igualam aos processos mentais, que contêm bem mais que linguagem) esculpem o jeito de pensar e se portar. Os discursos de ódio e de exclusão são tão repetidos que de fato se tornam o modo de pensar de uma sociedade. Achamos que estamos nos informando para nos libertar, mas na verdade a informação que nos é passada não liberta. Acreditamos que nos apropriamos de informação, mas na verdade ela vem pronta e se apropria de nós. Neste aspecto, considero essencial, e até incluiria no plano de educação de Manoel Bomfim um amplo acesso não somente a informação ou conhecimento, mas na capacidade estruturante de avaliar criticamente dados e análises que muitas vezes nos chegam prontos. Avaliar criticamente não significa ser especialista, mas aprender a pesquisar fontes, a argumentar e contra-argumentar, levando em conta quem e qual instituição estão falando, sem degenerar para refutações ad-hominem ou outros tipos de argumentos falaciosos. A qualidade da argumentação em detrimento do poder da retórica começou a ser questionado, no pensamento ocidental, na Grécia Antiga, e ainda hoje vemos conceitos falsos sendo propagados por má-fé.

A propaganda cria, então, um “nexo direto” entre o que se diz na TV e o que se fala em casa. A ignição vertical encontra a sustentação horizontal, como brilhantemente formulado pela autora. Outro dia vi um post no facebook explicando que os inimigos da sociedade não são os ricos, mas sim os criminosos, que estão nas mais diversas classes sociais. Ora, aqui há uma grande confusão de argumentação, manipulada para esvaziar o conceito de luta de classes, primeiro inferindo que o rico é considerado inimigo, e depois passando do problema da concentração de renda e riqueza para o problema da criminalidade, que, embora de alguma maneira relacionados, não são a mesma coisa. A classe média é constantemente manipulada a acreditar que o que a ameaça é o pobre, quando de fato quem poderia e deveria pagar mais impostos e ter menos privilégios são a camada mais abastada.

Este uso da propaganda me remete — como tantas outras características do mundo atual — ao romance 1984, de George Orwell. Nele, escrito em 1948 projetando um futuro com uma sociedade altamente controlada, Orwell narra a invenção de uma nova língua, Novilíngua (newspeak no original). Em novilíngua as regras gramaticais são todas simplificadas. Os nomes dos ministérios são adequados às contradições, o ministério da Guerra é chamado ministério da Paz, ou Minipax (apenas um pouco mais novilíngua que ministério da Defesa), e o ministério do Interior, responsável pela polícia política e censura, era chamado de ministério do Amor, ou Miniamor. Novilíngua seguia os preceitos do duplipensar (doublethink), onde conceitos opostos eram vistos como conciliáveis, numa distorção da lógica. Algo como “direitos humanos para humanos direitos”, ou “heterofobia”.

Em “Minha Luta” (Mein Kampf, livro seminal do nazismo), Hitler funde uma série de argumentos falaciosos, usando conceitos de Darwin de maneira rasa e errada, mas que encontraram uma grande ressonância no povo germânico da época. Todas as vezes que alguém fala “tem que jogar uma bomba no Congresso e matar todo mundo”, lembro que o próprio Adolf mandou incendiar o Reichstag (parlamento alemão). No livro a lógica de Darwin é torcida para caber no plano genocida de supremacia ariana de Hitler. Os judeus e outros marginalizados (inclusive em muitos campos de concentração os judeus nem eram maioria), foram dotados então de altíssimo grau de matabilidade.

Considero a “matabilidade” o principal conceito posto por Márcia nos ensaios. Talvez simplesmente por vermos escrito em todo código de lei liberal que “todos são iguais perante a lei”, fica claro que não é bem assim, senão não precisaria escrever. O termo matabilidade revela o ponto a que o ódio chega, aponta a progressão do discurso de desvalorização de determinado indivíduo ou segmento da sociedade até seu assassinato.

A matabilidade é como se faz permanecer hoje o direito ao privilégio, privilégio de classe, raça, gênero etc. Oficialmente não há castas nem segregação racial, mas negros morrem mais pelas mãos da polícia. Recentemente um estudante italiano foi encontrado morto no Egito. As principais suspeitas são de que ele tenha sido detido, interrogado, torturado e assassinado pela polícia. Alguns consideram que a polícia queria interrogá-lo e “errou na mão”, exagerando nas torturas e tornando o assassinato inevitável. Ora, errar a mão de tortura só é possível em um país onde a polícia se acha dotada de um poder supralegal e que seja autorizada, ostensiva ou tacitamente, a promover execuções extrajudiciais quotidianamente. Mais de uma vez ouvi histórias de policiais que se oferecem para matar criminosos presos, por exemplo, assaltando uma pessoa na rua. A decisão fica sendo da vítima (“dona, se a senhora quiser a gente pode dar um jeito nele”). Mas, em muitos casos, o processo é concluído na hora em que o policial decide sacar a arma e atirar para matar quando chega em um bairro de matáveis. O disparo e a morte são apenas a execução da pena já decidida, faltava só escolher o réu.

O imprestável é o fraco, o pobre, a mulher, o pouco instruído. No Exército, dizia-se jocosamente que a conclusão de toda sindicância era “arquivem-se os autos e puna-se o mais moderno (o de patente mais baixa) ”. Na justiça poderíamos dizer puna-se o mais pobre, ou puna-se o mais preto (o que é quase a mesma coisa). Esta então é condenação dupla de quem nasce Geni, o imprestável, o matável.

O que Márcia propõe é ao mesmo tempo antigo, óbvio, surpreendente e revolucionário. O diálogo é muito antigo, do verbo Grécia Antiga. É óbvio porque ela destaca o papel transformador do diálogo, que é na verdade o seu papel mais relevante, senão o único. Duplamente surpreendente, pois me surpreendo com as minhas próprias dificuldades de dialogar e me abro à capacidade de me surpreender com a fala do outro, escutada de maneira respeitosa, com curiosidade e sem rejeitá-la a priori, a partir de conceitos pré-formulados ou ad hominem.

O livro tem o grande mérito de ser propositivo, o que não é comum em ensaios filosóficos, especialmente porque a construção do diálogo é algo possível, tangível, no elevador, no taxi, no trabalho, na mesa de jantar. Nem sempre ele vai ser concluído, mas isso importa menos. O que importa mais é criar um campo de troca, um espaço potencial de troca, onde haja diálogo, e não discurso que se furta ao diálogo. Um novo processo tropicalista antropofágico, em que todos possamos ter acesso a ideias, criá-las, digeri-las e pensar a respeito delas, devolvendo reflexões,  e não apenas as repetições do conhecimento formulaico da pré-história, onde todo o saber estava contido em poucas histórias memorizadas (por exemplo os poemas épicos de Homero). A versão atual dos épicos talvez sejam os chavões criados por apresentadores de TV e colunistas de jornal, que são capazes de gerar crises e perpetuá-las usando o ódio como instrumento. Portanto, o desafio se coloca também em como criar um pensamento crítico, como tornar plural o influxo de informações — tanto no plano individual/singular, por exemplo o modo como cada cidadão tem acesso à informação, quanto coletivamente, como na regulação econômica dos meios de comunicação.

O capitalismo sem regulação sequestra a democracia, pois o dinheiro e o lucro penetram em todas as relações se não mantivermos uma vigilância constante. O dinheiro compra o poder, dá as cartas nas eleições, dita as leis, que são viciadas para atender aos seus interesses. Se o mercado corre solto, caminha para o monopólio ou oligopólio, como já acontece com os meios de comunicação, em que poucas famílias são donas dos principais veículos de informação. Elas decidem o que entra na casa de cada cidadão, fazendo-o crer que aquela é a única opinião possível e correta.

A partir dessa presença do ódio, me pergunto se ele não deveria encabeçar um capítulo extra de um remake do Retrato do Brasil, já que possivelmente Paulo Prado vestiria a camisa da CBF batendo panela de sua varanda gourmet.

Outra pergunta fundamental que surge, mas não é desenvolvida no livro, é em que ponto devemos parar de convidar ao diálogo. Qual é ponto em que se deve deixar de tolerar os intolerantes, e transitar do “vamos conversar, quero entender melhor” para o “¡no pasarán!”?

Certamente nenhuma das questões que colocamos aqui tem uma resposta exata, da mesma forma que a democracia não é exata. Temos de estar disponíveis a escutar, a debater ideias e não a julgar biografias. A aceitar e promover o direito do outro à existência, à vida, à opinião e ao respeito.