segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Poética de Alberto da Costa e Silva em Castro Alves


[Castro Alves posando estilo Brad Pitt]


[Castro Alves pego de surpresa pensando]

                                                 
                                   [Alberto da Costa e Silva lendo como sempre]



           Diversas vezes, em 'Castros Alves, um poeta eternamente jovem', me questionei se Alberto da Costa e Silva duvidava de minha capacidade, nem de análise ou síntese, mas de leitura mesmo, sobre o texto. Pois somente dessa forma sua didática demasiadamente mastigada poderia se justificar. Só depois de algumas dezenas de páginas, comecei a aceitar essa escrita com maior gratidão, como se aceitasse um presente numa data não comemorativa, dada por espontânea demonstração de afeto. A partir daí, próximo da metade do livro, diminui consideravelmente meu senso crítico como se correspondesse as preciosidades das quais tanto cadenciava Da Costa e Silva. Talvez. Talvez tenha também me entregue ao deleite da prosa, resignando igualmente ao prazer estético do autor. Bem, os dois. Ambos os efeitos de uma escrita sensível e envolvente. Quanto ao segundo, salvo uma passagem que evidencia esse contágio poético, e contraria o estilo formal, até estéril, que a maioria dos historiadores utiliza para minimizar as inevitáveis deformações das interpretações sobre a realidade: 'E velava o seu sono, cuidadoso para que nenhum rumor a despertasse, nas manhãs que se seguiam as noites maldormidas. Eugênia deixava-se adorar, encantada por ser musa e senhora.' Agora, separado do resto do livro, a passagem não serviu de tão interessante como a queria que servisse. Inúmeras outras, com certeza, servem melhor do que ela pra exemplificar o caso. O livro, indiscutivelmente, é um livro de delicadezas.
          Depois da 'maratona' de Casa Grande e Senzala, como bem disse o Igor, a biografia poética de Castro Alves parece ter vindo como um refresco. Daqueles bem aguados, e com bastante açúcar. Porque o interesse da descrição e análise do cenário político-econômico-social-nacional-mundial-espacial-histórico[...] não chega a ser maior do que a descrição e análise da vida pessoal de Castro Alves. Isso não é de todo ruim. Mas também não é de todo bom. O estudo da história parte de uma coleção de testemunhos, uns são pessoas outros coisas, uns participam mais outros menos, uns falam menos outros mais, uns são sinceros outros mentem. Todos, em relativo grau de importância, impactam e compõe diretamente ou indiretamente seu cenário não-sei-das-quantas. E quanto a isso, Castro Alves é um pródigo testemunho, de direta e elevada importância, precursor do abolicionismo quando 'a escravatura era aceita como normal por quase todos' ou 'a escravidão era um fato normal da vida, estava ali para sempre'.
          O romantismo começou a nascer, algum estágio antes de broto ou feto, lá pelo século XVII, precisamente na aristocracia da nobreza provençal do sul do França. Pode-se dizer que de lá o amor idílico em seu sentido romântico, erótico, tal o entendemos hoje, foi concebido. Amar, quanto amor cortês, 'era um esporte aristocrático' como disse Paulo Leminsk. Só depois, bem depois, veio a se popularizar. E só depois de um processo, quase mecânico industrial, com a entrada das cantigas de amigo portuguesas nas máquinas importadas brasileiras, é que saíram esses poemas românticos abolicionistas de Castro Alves, que constituem a terceira e última etapa do romantismo no Brasil.
           A vida de Castro Alves não constitui uma excepcionalidade como um Machado de Assis do mesmo período. A poeta nasceu em Salvador, branco, bonito, seu pai era de grande influência na cidade e já participava de seu nicho cultural, intelectual. Estudou nas melhores escolas, e teve todo o suporte para a realização de suas peripécias poéticas. Pôde Castro Alves viver de e para a poesia, em seu sentido mais delirante. Tanto que em seu leito de morte ainda suspirava versos. O convívio incessante com seu ofício poético, e com suas declamações teatralizadas, fizeram de seu delírio em cena a sua própria vida. A vida do poeta, após a saída de Salvador, mais parece uma grande peça teatral. Poemas declarados, mulheres, paixões, intrigas, boêmia. O meninote, como o chamou carinhosamente Alberto Costa e Silva, por mais que vivesse em absoluta situação de conforto, não se deixou aconchegar. Poderia, como os muitos românticos, entregar-se aos simples encantos da vida. Mas sua sensibilidade não o deixou. Era-lhe impossível manter-se passivo quanto ao mundo à sua volta, impossível desviar os olhos para o que realmente acontecia. Por mais que a escravidão fosse 'uma instuição ancorada na história, sancionada pela fé cristã, amparada pelas leis e da qual dependia todo país', nada lhe parecia suficiente razoável para sustentar tais atrocidades. A dedicação social de seu ofício poético constituiu a sua verdadeira excepcionalidade enquanto artista. Os poucos poemas que lhe serviram para denunciar a escravidão bastaram para revoltar e indignar os que lhe deram ouvidos, ou mesmo leram. Escandalizava, e era preciso que alguém escandalizasse mesmo. Lógico, escândalos aos versos decassílabos e erutizados. Se bem que Castro Alves, por maior erudição que tivesse, ao ter grande preocupação social tinha, além dela, uma preocupação popular. Em suas declamações públicas era preciso um linguajar apropriado, era preciso que o público entendesse, e assim se sensibilizasse quanto ao poema, senão o conteúdo de suas palavras adornadas não chegariam às cabeças de quem as destinava e queria: o povo, em sua força mais visceral e popular. Salvo uma passagem, uma crítica aos poemas da ex companheira do poeta, de Ramalho Ortigão a Eugênia Câmara: 'não prestavam para nada'. Uma asneira, porque ao menos os poemas de Eugênia Câmara prestavam, irrefutavelmente, à própria Eugênia Câmara. Talvez, quanto à importância. Daí aquela diferenciação dos testemunhos históricos em que havia falado. Certamente que hoje em dia o debate poético esteja em outro foco, talvez um 'retrocesso' na busca de formas de ofício, um resgate a formas que possam se constituir únicas na sociedade, universais por certo momento. Como uma linguagem pertencente a certo grupo, alguma coisa que se justifique socialmente, e não se rebele quanto a essa posição de justificativa. Isto, talvez, torne a arte um integrante ativo para sociedade. Fico pensando, como seria se Castro Alves se rebelasse quanto à métrica romântica, e declamasse versos livres. No campo da suposição, o poeta talvez fosse escorraçado pelos críticos da época. E nem mesmo poeta fosse considerado. Estamos fadados à condição histórica e social com a qual nascemos e vivemos, como a língua em que falamos ou as roupas que podemos vestir, lógico que tudo está e é passível de mudança. Mas até mesmo esta mudança está condicionada à sua própria condição, a sua limitação social. Quanto à língua e a sua respectiva linguagem, e um pouco mais sobre o que acontece hoje, se buscamos na pluralidade das formas, da linguagem já com seus erros e desvios pré-estabelecidos - reconsiderados se erros ou se desvios, e na aceitação da diversidade, não é porque chegamos a um estágio maduro de total descoberta, mas porque chegamos a estágio de esgotamento de formas anteriores. Toda a língua é determinada por um estoque de formas, e de seus códigos somos escravizados, mas por ela atravessamos e devemos atravessar para outros lugares, para lá onde a liberdade principia. São estas as funções de seus símbolos. Não são janelas como bem falam, pois numa interpretação poética, cada janela possui certa paisagem. Mas quanto à língua, aos códigos, aos símbolos, às palavras, uma janela pode expor diversas paisagens. A comparação, então, estaria mais para um monitor de programação infinita. Assim, amarrando um pouco isso tudo, as linguagens realizam os seus possíveis enquanto línguas. Mas, a arte enquanto pós-moderna, contemporânea, precisamente as poesias, os poetas que trabalham com as palavras, têm o dever de diluir a linguagem com suas formas demasiadamente saturadas. Lembro Manoel de Barros: 'Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem'. Assim fez também Mallarmé, com poesias que mais pareciam destinadas aos poetas. Castro Alves seguiu um caminho diferente do que se discute em poesia hoje, e se isso é dito como discutível, com a criação de paisagens sinestésicas e sensíveis. Seus poemas sociais tinham um esclarecido destinatário, e até um objetivo: libertar uma sociedade escravista de seus paradigmas desumanos. Há poesias e poesias, poemas e poemas, categorizá-los estaria na inevitável exclusão de alguns. O que evidencia as peculiaridades de cada um, e na falha do sistema de ordenação. Mas é possível, além disso, apontar estilos, tendências e influências. Como as de Castro Alves a partir de Pierre-Jean de Béranger, John Greenleaf Whittier, e pricipalmente Heinrich Heine. Suas influências foram tantas que cometeu delas uma grande gafe ao ‘repetir as imagens tiradas do orientalismo romântico francês e a estender para o Sul do Saara as paisagens do deserto'. Basicamente, achava que a terra natal dos escravos, como toda África, se parecia com o deserto do Saara, com seus 'oceanos de areia’, muito diferentes da realidade a que correspondiam, mais ao sul, algumas fartas florestas e vales floridos. Mesmo nisto, Alberto da Costa e Silva não se mostra indignado. No texto, que estava com a mão distante, logo se aproxima em defesa do jovem poeta, como um vovô que protege o neto depois dele ter feito alguma traquinagem: 'O retrato trágico exigia o deserto'. Justificou a gafe, protegendo-o de uma forma muito afetuosa, até meiga, como se apropriasse de sua familiaridade. Essas mesmas apropriações não se resumem somente a esse episódio, Da Costa e Silva traçava, quase sempre, o destino do outro poeta como se ele o conspirasse para si mesmo. De fato, um contador que já sabia o final de toda tragédia, mas ao mesmo tempo se surpreendia e se espantava tal como um leitor. Por isso, não é difícil se sentir familiar ao Alberto da Costa e Silva como, também, ele se mostrava familiar a Castro Alves. Tudo por conta desse esmero, até mesmo carinho, que qualquer um desconfia quando bate um primeiro olhar.         
          Em parte, me senti particularmente tocado pelo Antônio Frederico de Castro Alves. Nunca o tinha lido, e nem sabia da importância social de suas imagens. Provavelmente, dadas as melhores circunstâncias, se eu estivesse vivo por sua época, e relativamente próximo de seu convívio, certamente que me esforçaria pra se tornar um de seus amigos. Acho que a idade talvez nos tenha aproximado, ou só o apreço do autor por ele. Ou ambos, novamente. Por essa época, nas disputas hilariantes que aconteciam nos teatros, entre Tobias Barreto e Castro Alves, certo que ficaria no time do segundo, e talvez naquela confusão lá em 23 de 1866, quando só a polícia conseguiu apartar a briga entre as gangues rivais, não seria improvável que estivesse ali pelo meio. Curioso é saber que, apesar de tantas sensibilidades, erudições, e discursos proféticos, a terceira fase do romantismo foi dividida entre duas facções somente por desacordo pessoal entre seus maiores representantes. Como se rivalizassem por ter apenas gostos diferentes. Um tanto infantil. E ainda as temáticas de suas disputas eram sempre desmoralizantes, e às vezes de esclarecido machismo ao ataque de suas mulheres. Salvo em Gregório Duvivier, numa coluna pra Folha: ‘
Filho da puta, filho de rapariga, corno, chifrudo. Até quando a gente quer bater no homem, é na mulher que a gente bate. A maior ofensa que se pode fazer a um homem não é um ataque a ele, mas à mãe — filho da puta- ou à esposa — corno. Nos dois casos, ele sai ileso: calhou de ser filho ou de casar com uma mulher da vida. Muitos versos eram feitos de improviso, principalmente por Castro Alves, como sambistas ou até mesmo mcs de séculos passados. Enfim, no cultivo de minha leitura, confesso que sofri um pouco do contágio poético romântico, e fui ler alguns poemas ufanistas de Gonçalves Dias – muito diferentes como primeira fase. De tudo, acabei escrevendo um poeminha. E claro, não se compara às grandiosidades românticas. São hexassílabos, acentuação à sexta, uma antes dos decassílabos heroicos. Por isso o título “Heróis, jamais heroicos” pode ter uma interpretação quanto à métrica também. Ao longo do poema, falo sobre o delírio do novo personagem herói, que não mais se sustenta por esses tempos. E como falei no inicio do texto, em relação ao amor, as concepções de mundo que julgamos universais, as formas assim como os sentimentos, são sociais e se expressam socialmente. Não vieram juntos ou imbuídos com a humanidade, nem por Adão e Eva, nem pelos macacos. Seus gestos, depois de criados, vão se repetindo ao rolar dos tempos. Como as novelas da trágica romântica que sempre se repetem, e de lá casais aprendem como devem se comportar contra si mesmo. É neste sentido que a vida imita arte, e Castro Alves, nesta ingênua repetição de sua própria poética delirante viveu imerso.




'Heróis, jamais heroicos'


Heróis do mundo grande,

Que das vidas sem glória

Lutam como em Cervantes

Atrás da própria escória...

Estão de si perdidos,

No ermo do fausto sonho - 

Lar dos bosques floridos

Tão vastos... que enfadonhos -.



Bravos de sangue morno...

Canta o silêncio... O hino

De ida para o retorno:
- Sigo para lá, divino...
Onde filhos à espera
Choram a mãe servil...
Qual o leito a quimera
É suntuosa e gentil.
Assim cantam consigo
Como berros à gruta.
Pois não há inimigos
Que se afrontem a escuta.

Dos devaneios as viagens
São também verdadeiras,
Quando olhos às paragens
Veem pés sob as clareiras...
Estão imundas as pernas
Que partiram pelo nada.
- Deus, és tu com lanterna?
E de novo em disparada:

Correm sobre daninhas,
Perigosas as flores
Que nelas são as graminhas
A espantar dissabores...
Cortam o torpe vento
Que lhes aparta o ar puro,
Pondo-se aos gestos lentos
Sendo eles mais seguros...
Logo afundam as solas,
Que o chão à lama derrete,
Como o apertar das molas
Sem a força que as verte...
Tornam-se então triunfantes
De volta a ágil passada,
Mas qual o adágio infante:
-  Partir em retirada!

Já ao final do destino -
Em seu lar de partida -,
Mostra-se o desatino
Do tronco sem ferida.
Talham-se fundas marcas
Nos peitos aplainados
Para que as vis batalhas
Lembrem-se nos bronzeados 
De seus bustos feridos...
E as criativas memórias
Finquem no corpo o abrigo
Para as novas estórias.

O problema do poeta público


Carlos Alves seria um poeta romântico típico: escrevia poemas com temáticas amorosas, gostava de fazer uso de formas poéticas simples, porém dramáticas e eficientes, utilizava a natureza não apenas como cenário, mas também como personagem, idealizava e sonhava. Seria um poeta romântico típico se não tivesse abraçado é defendido com fervor uma temática social: a abolição da escravidão no Brasil. Em uma época em que o tema ainda não tinha reconhecimento na sociedade brasileira, ainda profundamente alicerçada na escravidão, Castro Alves foi um precursor da causa e a defendeu com louvor e distinção em sua obra poética.

O fazer politico - e mesmo suas posturas pessoais - não foram tão distintas assim.

A despeito do seu apoio a eventos beneficentes e a políticos que tenham defendido a causa abolicionista, não há registros de um envolvimento político mais profundo do poeta. Talvez a política o fadigasse, talvez ele tenha morrido muito moço, de modo que não houve tempo hábil para que ele se engajasse na política. Compreende-se que Castro Alves era antes de tudo um poeta, e se dedicou de corpo e alma ao seu fazer poético. Mas suas posturas pessoais poderiam ao menos refletir um pouco da causa que defendeu com tanto talento. Nisto, não foi muito bem-sucedido:

"Os Abolicionistas deviam enfrentar diariamente problemas de consciência. Eram contrários à uma instituição que os forçava a depender dela, pois não logravam dar 3 passos sem usar escravos, já que toda a sociedade, no seu dia-a-dia, sobre eles se assentava. Para começar, suas casas dificilmente funcionariam sem eles, uma vez que por trabalho de escravo se tinham as tarefas domésticas (...). As pessoas nascidas livres ou libertas relutavam em aceitar esse tipo de trabalho, socialmente estigmatizado, e as europeias, sobretudo as portuguesas, propunham-se a ser amas de chaves, acompanhantes, governantas e preceptoras, tendo escravos sob o seu comando para as tarefas desprezíveis e pesadas." (Alberto da Costa e Silva, p. 64)

Talvez, como o próprio Alberto da Costa e Silva aponta, seja injusto exigir uma postura muito diferente dos poetas da época. E sem dúvida o trabalho de Castro Alves teve um papel fundamental na divulgação da causa:

"Muito antes de aparecerem em livro, os poemas de Castro Alves já eram nacionalmente conhecidos, sabidos de cor e até imitados. Após sua morte, com a publicação de Os Escravos e A Cachoeira de Paulo Afonso, cresceu a lenda do belo poeta que morrera tão jovem e que fora também um grande tribuno é um dos precursores da causa abolicionista. Esta começará a ganhar adeptos, e cada vez mais numerosos, nos anos que se seguiram à 1870, até se transformar, inuma década mais tarde, num movimento amplamente majoritário. Para sua propagação em muito contribuíram os poemas de Castro Alves." (Alberto da Costa e Silva, p. 174)

Portanto, não se discute a importância e a profundidade da obra poética de Castro Alves, mas se discute o seguinte: qual o papel de um artista que se engaja em uma causa social?

Carlos Drummond de Andrade é outro poeta que ganhou a alcunha de "poeta público". Artífice da Semana de Arte Moderna, ocupante de cargo público na alta gestão no Mistério da Educação, poeta em cuja obra a temática social se apresenta com intensidade (principalmente em A Rosa do Povo), Andrade é considerado "o maior poeta público do século". Sua vida - fazer político, posturas pessoais, a própria forma de sua poesia - refletiram muito do seu pensamento. Mas os tempos de Andrade eram muito diferentes dos de Castro Alves. Seria justo exigir do jovem poeta baiano o mesmo engajamento político do modernista mineiro? Mais do que isso: seria necessário? E o que seria necessário para um poeta contemporâneo ser considerado um "poeta publico", engajado e atuante nas causas sociais?

Em tempos em que as posições políticas de cada um se tornam cada vez mais públicas, e em que o conceito de arte é cada vez mais fluido, a coerência entre obra artística e atuação política e social (e também individual, dependendo do caso) se torna ainda mais relevante. Mais do que isso: a coerência entre discurso público (e redes sociais constituem um espaço para o discurso público) e prática é cada vez mais relevante, sendo a autocrítica um processo importante - não apenas para artistas, mas também para todo mundo. Afinal, o discurso publico demanda uma responsabilidade grande - que talvez a maior parte das pessoas não esteja pronta para assumir -, que é ainda maior para os artistas.

A reflexão sobre Castro Alves ser ou não um "poeta público" talvez pareça menor diante da beleza da obra do poeta, mas deve despertar em nós o problema da responsabilidade pelo discurso público - este um problema cada vez mais contemporâneo e abrangente.

domingo, 27 de setembro de 2015

Ontem e Hoje

         








O filme Que horas ela volta? e os acontecimentos da cidade dos últimos 20 dias aguçaram a leitura da biografia de Antônio Frederico Castro Alves, muito bem escrita por Alberto da Costa e Silva.

Não consigo tirar da cabeça duas personalidades que foram tão significativas na infância de Castro Alves. Antônio José Alves, seu pai. Médico que cuidava dos escravos sem cobrar, dono de uma biblioteca considerada excelente, que além de gostar de desenhar, ajudou a conceber grande parte da vida cultural de Salvador. Abílio César Borges, seu professor. Introduziu novas ideias pedagógicas, misturando matérias, abolindo a palmatória e fundando os saraus literários, com participação de professores, pais e alunos.

Acredito que tenha sido a formação um dos pilares que fez com que Castro Alves soubesse enxergar além do que os escravos representavam para aquela sociedade. Ele os humanizou. E com essa sensibilidade, nadas mais ousado que querer mudar o mundo. “O rapaz sabia o que fazia: não escrevera aqueles versos para serem lidos em silêncio, mas para serem recitados para a multidão. ”
Jéssica a personagem do filme é uma jovem que diferentemente de sua mãe, empregada doméstica, teve oportunidade de estudar e coragem para seguir outro caminho. Saiu do nordeste do país para balançar os modelos ainda existentes no nosso país. Passou no vestibular e melhor do que tudo, fez sua mãe refletir sobre a própria vida.

Mas sobre o que Jéssica escreveria em seus poemas?

Ouso dizer que os jovens negros do 474 são diferentes de outros jovens negros do passado, eles querem viver sua juventude, sua falta de lazer no subúrbio, sua falta de oportunidade, sua falta de estudo. Eles não tem medo dos branquelos playboys da Zona Sul e nem da PM. Eles não tem nada a perder.

Mas sobre o que eles escreveriam em seus poemas?

Castro Alves é jovem tanto quanto eles. Um jovem que teve oportunidade e soube usá-la de forma a contribuir para a sociedade. Castro Alves escreveu de amor, de natureza, mas ficou mesmo conhecido como o poeta dos escravos.

Naquele tempo, que inveja minha, o teatro e os poemas eram armas contra a política. E hoje? Que ferramentas Castro Alves usaria? O que ele escreveria?


Peço permissão aos poetas de nosso grupo para escrever meu primeiro poema:

Ontem e Hoje
  Lendo Castro Alves ou lendo DaMatta
Negros escravizados ou jovens negros esquecidos
Vejo tudo igual na cidade que habito

Ouvindo a rádio Tupi ou ouvindo rádio Jovem Pan
Tuberculose mata um ou tuberculose mata cinco
Vejo tudo igual no Estado que habito

Vendo TV Manchete ou vendo TV a Cabo
Oligárquicas aumentando a riqueza ou Banqueiros ficando mais ricos  
Vejo tudo igual no país que habito

Notícias trazidas de navio ou internet que acesso todo dia
Imigrantes sendo baleados ou imigrantes sendo afundados
Vejo tudo igual no planeta que habito





sábado, 26 de setembro de 2015

Castro Alves, Gregório Duvivier e o protagonismo dos movimentos sociais



Para esse encontro do Grupo de Estudos de Botafogo, foi-nos proposto que lêssemos uma biografia de Castro Alves, quase tão curta quanto sua própria vida. Intitulada “Castro Alves, um poesta sempre jovem”, o livro escrito de forma belíssima por Alberto da Costa e Silva nos faz mergulhar no universo do segundo reinado brasileiro, e nos mostra como a ideia da abolição da escravatura no Brasil, então um absurdo na primeira metade do século XIX, vai ganhando força e conquistando apoios na sociedade brasileira.

Castro Alves, um poeta brasileiro branco e remediado, esteve na vanguarda do movimento abolicionista brasileiro e, embora tendo morrido muitíssimo jovem, aos 24 anos, foi uma peça de crucial importância para que a ideia de libertação dos escravos comçasse a circular na sociedade oitocentista no Brasil.

Alberto da Costa e Silva advoga que Castro Alves tenha conseguido muito apoio às suas ideias menos pelo conteúdo das ideias em si (que eram quase incendiárias de tão libertárias), do que pela forma de apresentação das mesmas. Castro Alves era bonito, alto, sedutor. Dono de uma voz grave e penetrante, nas palavras de Alberto da Costa e Silva, Castro Alves utilizava sua boa aparência e seus dons de retórica de forma a se fazer ouvir nas ruas e nos teatros da Bahia, de Pernambuco e de São Paulo. Além disso, claro, era muito talentoso nas poesias que escrevia.

A primeira coisa que me ocorreu após a leitura, embora disso não decorra um desdobramento muito grande de discussão histórico-sociológica (talvez filosófica) é o estudo da voz ao longo do tempo histórico. A história da voz na humanidade é uma das coisas mais fascinantes e, ao mesmo tempo, mais difíceis de serem estudadas. Sobre Castro Alves, resta-nos o registro, posto que tudo é ainda muito recente no tempo histórico, de que sua voz era grave, sedutora e penetrante. Mas não há qualquer registro da voz de Castro Alves.

As pinturas e as estátuas dão conta da reconstrução de alguma imagem de como viviam os povos e as pessoas que vieram antes de nós, (especialmente aqueles que viveram antes das invenções dos registros de captura de som e imagem). Além disso, essas imagens nos ajudam a entender o senso estético de uma época. Fósseis nos permitem reconstruir como era o corpo das pessoas. Restos de comida em arcadas dentárias nos permitem inferir hábitos alimentares antigos. Tecidos, joias, objetos de uso pessoal, embarcações, várias dessas coisas podem ser encontradas em sítios arqueológicos de forma a perimitir um aumento incremental da compreensão da vida em outros tempos. Mas e a voz? Se de tudo fica um pouco, como diz Carlos Drummond de Andrade em seu poema ‘Resíduo’, parece que da voz não fica nada. A música ainda é transmissível, as notas, os acordes, as formas de tocar um tambor. O conteúdo daquilo que a voz expressa também fica, as histórias, os contos de terror e de mistérios, as lendas, os provérbios. É claro que é razoável supor que a forma da voz também permanece, se entendermos que foi a retórica de Castro Alves, mais do que suas palavras, a responsável pelo legado abolicionista que ele nos deixou. Isso é ainda mais razoável se borrarmos a fronteira entre o que é forma e o que é conteúdo num discurso. Enretanto, ainda assim, é fascinante como, ainda que tentem reconstruir as entonações das falas (certamente por meio dos registros escritos e pela oralidade de povos mais tradicionais), do timbre não nos sobra nada. De minha parte, entendo o timbre como uma das últimas fronteiras da reconstituição do homem no tempo histórico. Mais do que isso, o timbre (ainda que os arquólogos mais esforçados se debrucem sobre os fósseis de cordas vocais que porventura encontrem) permanece no homem presente como uma limitação. Lembrando da minha trajetória agnóstica, lidar com o timbre do homem do passado é, de certa forma, aceitar uma ignorância ante aquilo que é absolutamente incognoscível. ‘Palavras, o vento leva’, diz a sabedoria popular. ‘Do boi, só não se aproveita o berro’, diz outro ditado. Tanto a ciência quanto a história colocam o seu ‘No passarán!’ quanto à apreensão do timbre antigo, da voz que já passou. Presente, mas irrecuperável. Entendida, mas incognoscível. Clara, mas misteriosa. É curioso e instigante perceber como a voz, certamente uma das coisas que temos como mais humana, mais imanente ao homem, é, por outro lado, aquilo que mais se aproxima daquilo que se nos apresenta como o divino, o transcendente.

A história da voz é uma coisa que realmente me fascina, embora nunca tenha me dedicado a estudá-la. Se alguém souber de algum material interessante nesse sentido, agradeço indicações.

Depois dessa breve digressão sobre a voz, é a hora de abordarmos o ponto nevrálgico da discussão que esse livro me despertou: o protagonismo.

A discussão sobre o protagonismo está em praticamente todos os movimentos sociais na atualidade. O movimento negro dz que são os negros que devem capitanear o movimento. O feminismo diz que são as mulheres que devem propor a pauta das lutas e assumir a liderança de suas atividades etc...

Ocorre que muitas das vezes, o protagonismo das lutas vem acompanhado de um sentimento de quase exclusividade do movimento, que repele os membros que não se equadram na categoria, na ‘minoria’, na causa em si das lutas. Nesse sentido, há uma discussão enorme em curso no movimento feminista se homens podem ou não se dizer feministas. O movimento gay, por outro lado, não engendrou essa discussão (ao menos eu não me recordo): subrepticiamente, o movimento GLS passou a se denominar LGBT e excluiu os simpatizantes da sua luta.

Sobre esse assunto, minha opinião é a de que protagonismo é importante. Mas é importante não destruir as pontes. Mais do que isso, é importante ter aliados do lado de lá. Brancos racistas não têm pudores em espalhar sua ideologia racista por entre brancos e negros. Por outro lado, alguns negros acham que brancos devem ficar completamente apartados da ideologia do movimento negro. (o verbo ‘apartar’ foi utilizado de forma intencional).

Esse discurso parece reacionário, mas vou tentar explicar porque (eu acho que) ele não é.

A abolição da escravatura foi pensada, engendrada e levada a cabo por pessoas brancas. Isso não invalida nem diminui a luta dos próprios negros na mesma direção. O Quilombo dos Palmares, a Revolta dos Malês e a Revolução Haitiana são exemplos do protagonismo negro. Mas é importante reconhecer quando, do outro lado, pessoas caminham na mesma direção. Castro Alves, José Bonifácio e Rui Barbosa foram abolicionistas brancos. A Princesa Isabel, o ovo da história (ora é do bem, ora é do mal; os historiadores, assim como os nutricionistas, nunca se decidem), também foi abolicionista branca.

Fico imaginando o que teria acontecido se os escravos chegassem para o José Bonifácio e para o Castro Alves e dissessem: ‘Cara, essa luta não é de vocês. Vocês não são bem-vindos aqui.’ Ou ainda, chegar pra Princesa Isabel e dizer: ‘Que absurdo! Você, branca, querendo conceder alforria para todos os escravos. Não vai assinar nada! Ou essa lei vai ser assinada pelos pretos, ou não vai ter droga de Lei Áurea nenhuma!’

A menos que a coisa aconteça pelas vias revolucionárias, como ocorreu no Haiti, onde todos os escravos da ilha se rebelaram e proclamaram a independência do país, ou na revolução comunista de 1917 na Rússia, é importante que os movimentos dialoguem com as elites, mas mais do que isso, que tenha pessoas infiltradas lá.

Zumbi dos Palmares é importante, mas Castro Alves também é. Pelas vias reformistas, se não aditirmos a revolução (e acho que tenho me enquadrado um pouco nessa categoria), vai ter que ter diálogo, não vai poder ter movimento fechado em si mesmo.

Nesse sentido, dá pra traçar um paralelo interessante entre Castro Alves e Gregório Duvivier. Castro Alves, assim como Gregório Duvivier era branco, bonito e talentoso. Ambos são poetas, bons poetas, o que os torna aclamados pela crítica; dessa forma, eles têm passe livre na intelectualidade. Ambos são libertários e de esquerda. A intelligentsia consegue lidar com libertários de esquerda (desde que pertençam à própria elite), mas o grande público, o ‘povo’, o ‘brasileiro médio’ é conservador (essa é uma afirmação temerária, mas assumo o risco). Ambos desenvolvem, então, uma estratégia muito parecida, para atingir esse público: dar às pessoas o que elas querem ver, mas colocar lá a sua ideologia. Nesse sentido, Castro Alves declamava em teatros e fazia com que seus poemas fossem disseminados por entre cadernos de moças adolescentes. Essas pessoas que o aplaudiam nos teatros não estavam lá porque eram abolicionistas: elas estavam lá para ver um homem branco, bonito, elegante, da elite, que declamava seus poemas de forma magistral. Só que esses poemas eram carregados de ideologia abolicionista que, pouco a pouco, através desse artifício, iam penetrando nas camadas populares. De modo semelhante, Gregório Duvivier aposta no humor e tem um séquito de seguidores e espectadores em seu canal de vídeo no Youtube, o ‘Porta dos Fundos’. As pessoas que clicam num vídeo do Porta dos Fundos não o fazem, muitas das vezes, porque querem ver ‘um conteúdo de esquerda’. As dez milhões de pessoas que assinam o canal clicam nos vídeos porque querem ver textos bem-humorados, engraçados, intepretados por bons atores. Só que nesses três minutos de cada vídeo, a equipe do Porta dos Fundos vai disseminando por entre as pessoas, paulatinamente, uma ideologia libertária e de esquerda, apoiando causas como a legalização da maconha, o aborto, a laicidade do estado, etc. Dessa forma, ambos, Castro Alves e Gregório Duvivier, em seus devidos tempos históricos, fazem parte da elite intelectual brasileira e se valem dessa prerrogativa para fazer penetrar nas camadas populares uma ideologia de empoderamento dessas camadas em relação à própria elite da qual fazem parte.

Entendo que isso vá de encontro ás vivências de movimento social de muitas pessoas, mas de minha parte, realmente acho que Castro Alves e Gregório Duviver são importantes, em seus devidos tempos, como agentes das causas libertárias.

Mais uma vez, a menos que optemos por uma via revolucionária, o que não faz a minha cabeça (por ora), é importante que haja um homem branco, rico e heterossexual, que defenda os direitos das mulheres, dos pobres, dos pretos e dos gays.

Sim, protagonismo é importante, embora eu não esteja enfatizando muito esse ponto. Mas é importante entender que os movimentos, assim como a vida, não é feita só de protagonismos. Acho que os movimentos sociais não devem recusar alguém que tem o canal mais acessado do Youtube no Brasil e uma coluna de jornal na Folha de São Paulo.

De minha parte, aceito o abolicionismo de Castro Alves, aceito o posicionamento à esquerda do Gregório Duvivier, aceito os homens feministas, aceito os simpatizantes. Aceito todo mundo que vier contribuir para a construção de um mundo mais justo, mais igualitário e que respeite as diferenças, independente de ser preto, branco, pobre, rico, homem, gay, hétero, bi, trans, etc. Vivência é importante, penetração nas camadas populares é importante, representação parlamentar também é importante (alô Jean Wyllys!).

Tem que ter protagonista sim, mas é só no diálogo com os coadjuvantes que a cena pode acontecer.

Obrigado, Castro Alves, por ter sido um de nós sem o sê-lo; por ter sido a voz, ainda que com as distorções provocadas pela fata de vivência, dos que não conseguiam se fazer ouvir.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Mais Alberto, menos Antônio.

ACS é um escritor brilhante. O livro flui fácil, muito bem escrito, de maneira bela, e clara, bem organizada e distribuída. Mesmo no capítulo em que faz suas considerações pessoais pela vida e obra de Antônio Castro Alves, ACS o faz ponderadamente, tendo com seus argumentos o mesmo cuidado que tem com as palavras e a organização do texto. Uma obra irretocável, do ponto de vista do escritor. 

Já o poeta... enfim, confesso que o modo oitocentista, Victor-Huguiano, melodramático já deu. Aqui concedo mais esta ao Paulo Prado, quanto mais eu leio, mais vou me aproximando de argumentos que ele expôs no Retrato, ainda que sem concordar totalmente com nenhum deles. Não considero o Romantismo um dos flagelos da formação da sociedade brasileira, mas o estilo me cansa. 

Isto posto, vamos aos pontos interessantes do livro e da vida e obra de Castro Alves.  

Ele era bem bonito. Imagino ele jovem sedutor declamando poemas, o mundo a seus pés. Irresistível. 

O modo como ele descreve a África, ainda que liricamente, baseado na versão orientalista francesa, já criticado por ACS, expõe um fato importante; Castro Alves jamais conversou minimamente com qualquer um dos pretos que o circundavam. Por mais que sua dedicação à causa abolicionista, que apoiou desde a primeira hora, fosse legítima e verdadeira, isso não despertou nele interesse em conhecer nem ao menos uma história de um negro ou negra, que certamente havia à sua volta aos montes. ACS dá explicações genéricas para isso, dizendo que não era usual que brancos se interessassem por ouvir negros, ou que estes fizessem confidências àqueles. Ora, também não era habitual ser abolicionista. Se Castro Alves tinha ideias suficientemente progressistas para apoiar a república e o voto feminino, era de se imaginar que tivesse uma consideração mais humana sobre os negros, e que lhes desse um mínimo de voz, em especial se boa parte de sua obra está diretamente relacionada aos suplícios da escravidão. Mesmo após a importante redução do tráfico negreiro na segunda metade do século XIX, havia certamente fontes vivas e documentação sobre o negro e a África de onde vieram os escravos da época.  

No léxico atual de direitos humanos, Castro Alves estaria assumindo um protagonismo abolicionista sem conhecer direito de quem falava. Uma pena. Mas, concordando com ACS, sem dúvida seu posicionamento trouxe visibilidade ao abolicionismo, uma visibilidade que escravo algum poderia dar naquele contexto.  

Destaco também a preocupação de ACS em imaginar como Antônio devia se sentir tendo escravos, ou como se virar sem eles. Muitos de nós já nos vimos presos a situações em que nos aproveitamos de algum privilégio que de maneira geral condenamos. Nem todos teremos biógrafos do nível de Alberto da Costa e Silva.