“O povo brasileiro”, de Darcy
Ribeiro é uma obra tão importante que penso que deveria ser dado nas escolas.
Escrito em 1996, um ano antes de sua morte, este livro conta a história do
Brasil a partir de um ponto de vista antropológico, mas sem academicismos, sem
arrogâncias e, mais importante, sem a pretensão da imparcialidade.
Darcy Ribeiro (pelo que li a
respeito dele até agora) é dessas pessoas que se preocuparam com um país mais
justo e mais democrático. E soa atualíssimo, apesar dos vinte anos que nos
separam desta obra seminal, porque as grandes questões brasileiras, que
assombraram o país desde seu descobrimento até o início do século vinte e um, não
mudaram nestes últimos vinte anos. Somos a mesma nação desigual que luta para
encontrar seu caminho na dança dos povos.
Houve mudanças de curso de lá para
cá, é bem verdade; tanto que, no fundo, eu lamento profundamente que Darcy
Ribeiro tenha morrido antes de ver o PT chegar ao poder nos governos Lula e
Dilma que, se por um lado, não tomaram medidas que resolvessem a desigualdade e
as questões de justiça no Brasil, por outro, fizeram um governo que atuou de
maneira conjuntural em prol de uma sociedade mais harmoniosa e mais justa,
reduzindo a desigualdade, extinguindo a fome e valorizando a educação.
“O povo brasileiro” é um livro
tão rico que é difícil escolher um recorte de abordagem, mas há alguns pontos
que penso ser importantes.
O primeiro deles é sobre a etnia
brasileira. Sempre que me refiro ao ‘povo brasileiro’, automaticamente coloco
em xeque essa definição. Será que é possível dizer ‘nós, os brasileiros’?
Quando nos afirmamos brasileiros, o fazemos em relação ao quê? Ou ainda, quando
dizemos, ‘os brasileiros são alegres’, ou, alternativamente, ‘os brasileiros
são tristes’, quem são essas pessoas? Além de compartilharmos o mesmo
território de nascimento, há outra coisa que nos une?
Embora a resposta a essas
perguntas possa parecer óbvia, o receio de incorrer em generalizações de alguma
maneira me impedia de dizer ‘os brasileiros’ com algum senso de unidade, uma
vez que somos tão construídos na diversidade que se torna difícil pensar em
alguma coisa que nos defina. Mas se afirmar-se algo é, de certa maneira,
negar-se a ser outras coisas, a pergunta que nos devemos fazer é: nós somos
brasileiros contra quem?
Darcy responde a esta pergunta
dizendo que a matriz étnica brasileira é composta de um núcleo luso-tupi, ou
seja, de homens brancos e de mulheres índias. A este núcleo luso-tupi, a que
Darcy chama de brasilíndios, se mesclam os negros trazidos da África, e uma vez
plasmada essa brasilidade como uma coisa nova, a ela se unem os imigrantes
europeus e asiáticos no século dezenove, fazendo de nós um povo sem par no
planeta.
Diz Darcy: “É certo que a colonização do Brasil se fez como esforço teimoso,
persistente, de implantar aqui uma europeidade adaptada nesses trópicos e
encarnada nessas mestiçagens. Mas esbarrou, sempre, com a resistência birrenta
da natureza e com os caprichos da história, que nos fez a nós mesmos, apesar
daqueles desígnios, tal qual somos, tão opostos a branquitudes e civilidades,
tão interiorizadamente deseuropeus como desíndios e desafros.”
Esta passagem, que talvez fizesse
Jacques Derrida refestelar-se de satisfação, explica o que somos, nós,
brasileiros. Somos um povo que se constitui por antíteses, por desconstrução
das suas matrizes étnicas originais. Se por um lado é motivo de orgulho sermos
capazes de assimilar na brasilidade qualquer etnia, por outro, é importante
pensarmos no quão violento era (e ainda é) o nosso processo de mestiçagem.
Se somos deseuropeus por um
malogro da transplantação de uma lusitanidade nos trópicos, somos desíndios
porque lhes furtamos a indianidade. O homem branco português, ao gerar a
brasilidade mameluca (ou brasilíndia) no ventre das índias brasileiras, rompe a
identificação étnica de seu descendente com a sua indianidade ancestral. O
proto-brasileiro não é mais índio (e tampouco português). Mas quem é esse
índio? Seria apenas o tronco étnico tupi-guarani, numericamente maior quando
portugueses chegaram aqui? Sim, por um lado, porque foi esse tronco a maior
parte da interação inicial com os portugueses. Não, por outro, porque à medida
que os brasilíndios iam adentrando as matas, índios de outras tribos iam
aparecendo e, ou bem se amalgamavam na nascente brasilidade, ou eram
escravizados pelos colonos e/ou catequizados pelos jesuítas, ambos os colocando
na categoria genérica de índios, sem qualquer vinculação às suas tribos de
origem. Nas missões jesuíticas, a denominação de ‘índios’ agrupava, sob um
mesmo território, pessoas sem qualquer identificação entre si, que falavam
línguas diferentes, que tinham valores culturais diferentes e também diferentes
visões de mundo. Sob o jugo da catequização que os infantilizava, essas pessoas
agrupadas tinham em comum apenas o fato de serem não-brancas, espalhadas por um
território do tamanho de um continente.
De maneira similar, alguns anos
mais tarde, com a disseminação da escravidão negra no Brasil, ocorreu um
processo muito semelhante. Nos navios negreiros e, depois nas lavouras e nas
cidades, a denominação ‘negros’ agrupava, sob um mesmo território, pessoas sem
qualquer identificação entre si, que falavam línguas diferentes, que tinham
valores culturais diferentes e também diferentes visões de mundo. Sob o jugo da
escravização que os bestializava, essas pessoas agrupadas tinham em comum
apenas o fato de serem não-brancas, oriundas de um território do tamanho de um
continente.
Como se vê, o processo de incorporação
à brasilidade foi extremamente violento. Mas houve, e há resistências. Na
região amazônica, algumas tribos indígenas não foram assimiladas. E ao longo de
todo o território nacional há populações quilombolas, descendentes diretos de
negros escravizados aquilombados, que têm seus próprios valores e recusam a dissolver-se
no caldo comum da brasilidade.
Mas, afinal, devemos lutar para
mantê-los diferentes? E os negros e índios já assimilados que, muitas vezes
permanecem marginalizados? Escolher entre a igualdade e a diferença parece soar
como uma falsa questão. Vale a máxima levantada por Boaventura de Souza Santos:
“Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem; lutar pelas
diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize.”
Essa é uma construção
contemporânea, contudo. Enquanto o direito à igualdade é uma luta antiga dos
marxistas e de setores ligados à esquerda, o direito à diferença, no campo da
política, é uma pauta mais nova. Só mais recentemente é que as minorias têm se
levantado não para serem aceitas e assimiladas no cômputo de uma generalidade,
mas, ao contrário, para serem aceitas mesmo no seio da sua diferença.
Nesse sentido é que, se por um
lado a luta feminista inicialmente foi por garantir às mulheres condições de
igualdade em relação aos homens, pregando uma certa indistição entre os
gêneros, hoje a luta é para que a sociedade aceite e reconheça as mulheres dentro
de sua própria feminilidade. O mesmo vale para os movimentos LGBT, o movimento
negro, etc.
Nisso voltamos para uma discussão
que remete aos temas aventados por Márcia Tiburi. De que é preciso aceitar e
reconhecer o outro, e mesmo acolhê-lo, a partir de suas diferenças. Sem
assimilá-lo ou englobá-lo, e também sem destruí-lo, mantendo uma postura de
diálogo, de troca.
Sabendo-se que é preciso garantir
o direito à diferença é que gostaria de passar ao próximo tópico da discussão.
Darcy Ribeiro estrutura o Brasil
como um conjunto de Brasis. O Brasil mestiço (litoral do sudeste e nordeste, a
aurora da colonização), o Brasil caipira (São Paulo, cerrado, e o Brasil
bandeirante), o Brasil caboclo (nortista), o Brasil sertanejo (o sertão nordestino) e o Brasil gaúcho (sul do país).
Cada um desses grupos se
estruturou de uma determinada forma, de maneira a compor um tipo próprio de
expressão da brasilidade. Apesar dessa classificação de Darcy, penso que é
importante retomarmos o binômio litoral-interior, e portanto, o binômio brasil
mestiço / brasil caipira (deixando de lado, por ora, os outros grupos), para
pensarmos o país.
No movimento bandeirante, a nossa
Marcha para o Oeste uns duzentos anos antes dos Estados Unidos, o país fez um
esforço para se interiorizar. Era o Brasil que, a partir de suas cidades-porto,
ia avançando sertões adentro.
O Brasil caipira começou conquistando
o território e formando populações. Pequenas estâncias, sítios e vilarejos
foram se afastando cada vez mais do mar.
O ciclo da mineração que, em
última análise, foi o fio condutor que garantiu a unidade do território
nacional tendo Minas Gerais como seu centro dinâmico, foi também aquele momento
em que o poder econômico interno começou a se interiorizar. Houve a ascensão de
uma elite mineira, que dependia da exportação de ouro e diamante pelos portos
de Santos e do Rio de Janeiro, mas, ainda assim, mineira, interiorana,
provinciana e porque, não dizer, caipira. O Brasil que viu o esplendor do
barroco brasileiro com as igrejas de Aleijadinho não foi o Brasil de frente para
o mar.
Esse poder econômico se desloca
paulatinamente para o interior do país. Depois da mineração, os ciclos do café
que conduzem a riqueza para os estados de São Paulo e do Paraná; depois a
industrialização que transforma a cidade de São Paulo no centro econômico
inequívoco do país já nas primeiras décadas do século vinte. Por fim, a
revolução agrícola proporcionada pelo manejo do cerrado de forma a torná-lo
apto à cultura da soja, já no final do século vinte, ratificam o domínio do
Brasil caipira sobre o Brasil litorâneo no âmbito econômico.
Na esfera política, a capital se
transfere de Salvador para o Rio de Janeiro. À medida que o poder econômico
avançava para o interior do país, a cidade do Rio de Janeiro começou a ficar
defasada como capital. Já no pós-império, na República Velha, a política do
café com leite garantiu ao Rio de Janeiro um papel de quase espectador na
política nacional. Era apenas a capital, o local de onde se assinavam as leis e
decretos, cujo poder, contudo, emanava de outros territórios. Em 1960,
inaugura-se Brasília e, mais uma vez, o litoral perde para o interior. É do
Brasil caipira também o poder econômico.
A cultura, contudo, vinha sendo o
território na qual o Brasil caipira não havia vencido o Brasil litorâneo.
Exportando para o interior do país a moda e a música, o litoral é responsável
pela Tropicália, pelo Manguebeat, pelo samba, pela bossa nova e pela MPB de
forma geral, pelas novelas que mostram um jeito carioca, tanto rico quanto
pobre, de se colocar no mundo, etc...
Até ontem. Nos últimos três anos,
o que temos visto, porém, é um crescente e avassalador predomínio da música
sertaneja sobre todos os outros. Essa
lista mostra as principais músicas
tocadas nas rádios em 2016.
O que acontece é que o Brasil
caipira parece cansado de se reportar culturalmente às cidades-porto que pouco
têm a ver com ele. Assim como o poder econômico ficou defasado em relação ao
poder territorial do Brasil caipira, e assim também como o poder político ficou
defasado em relação ao poder econômico deste mesmo Brasil caipira, o poder
cultural que emanava do litoral se mostra cada vez mais fraco e sem viço em
relação ao que acontece no interior.
O que quero dizer com tudo isso é
que o movimento de expansão bandeirante, simbolicamente, ainda está em curso.
As células luso-tupis que se embrenharam pelas matas capturando índios e
conformando nossa primeira brasilidade ainda estão em movimento. O bandeirantismo
brasileiro, de mamelucos e brasilíndios, fez terras, fez gente, fez dinheiro e
fez poder. Agora eles querem contar sua própria história. A cultura é a última
fronteira da dominação bandeirante. Se continuarmos nesse processo, muito em
breve o papel do litoral não será nem mais o de porto, mas o de balneário,
absolutamente coadjuvante ao que quer que se vá chamar de Brasil.
Quando disse alguns parágrafos
atrás para termos em mente o direito à diferença, é que a massificação
midiática é tão grande que penso que esse direito pode ter sido colocado em
xeque. Como é possível afirmar sua diferença, por exemplo, sua dissidência em
relação ao gosto musical hegemônico por música sertaneja, quando 20 das 20
músicas mais tocadas nas rádios pertencem a esse estilo?
Há muito tempo venho defendendo a
arte de Romero Britto (apesar de não gostar dela) dos ataques de todos os
lados. Os ataques ao Romero Britto se devem ao fato de que ele é popular. E a
elite intelectual não gosta do que é genuinamente popular (a tudo que é popular
se coloca imediatamente a pecha de kitsch, brega).
Fato similar acontece com o
sertanejo. É repudiado por uma parcela da elite, que não se reconhece nos seus
versos, não veem em suas letras as suas histórias e os seus dilemas. Por outro
lado, aquilo faz sentido para a imensa população brasileira caipira que se vê
representada, o que a torna popular.
Mas o que devemos pensar é: será
que é tão popular assim? Será que o fato de que todas as 20 músicas mais tocadas
na rádio serem desse estilo tem a ver só com o fato de elas serem populares?
Será mesmo que o brasileiro tem um gosto tão homogêneo?
Termino o texto com esse dilema
insolúvel. É melhor termos uma estética e uma cultura dominadas por uma elite
diminuta que exporta seu modelo de ser e de viver a uma vasta população ou, por
outro lado, é melhor vivenciarmos uma estética e uma cultura que são
genuinamente populares, mas massificadas a ponto de tornar impeditivas nas
rádios, por exemplo, a veiculação de outras estéticas e outras culturas que sejam
alternativas ao gosto hegemônico?
Como construir um modelo de
cultura viva que, simultaneamente, valorize o popular e garanta o direito à
diferença?
A verdade é que a cultura e, de
certa maneira, a democracia, estão submetidas ao Paradoxo de Boaventura. Ao
mesmo tempo, há uma diferença que nos discrimina e uma igualdade que nos
descaracteriza, de maneira que estamos sempre a lutar pela igualdade e pela
diferença.
O problema do paradoxo é que nos
tornamos confusos para o outro. Se lutamos pela igualdade e pela diferença (e
somos capazes de abraçar o nosso paradoxo), hora ou outra vai aparecer alguém
dizendo que somos confusos, deslegitimando nossas lutas com ‘Afinal, o que
vocês querem?’.
O que a gente quer mesmo é
democracia, a gente quer ser igual e ser diferente, a gente quer viver num
mundo onde todo mundo possa ser litoral e interior, luso-tupi, brasilíndio-mestiço,
sertanejo-caipira acaboclado.
Brasileiro de verdade já deveria
estar acostumado a abraçar um paradoxo por dia.