O livro “O
povo brasileiro” do antropólogo Darcy Ribeiro simplesmente me fascinou.
Primeiramente, lendo o prólogo, achei pretensioso, mas logo vi que o autor
conseguiu perfeitamente atingir seus ousados objetivos. Aprendi muito sobre a
história do Brasil e ter sido apresentada a essa história a partir do olhar
especial de um antropólogo e indianista foi ainda mais enriquecedor. De tal modo que, imediatamente, passei a enxergar a nós todos de outra maneira. Esse
livro deveria ser leitura obrigatória em todas as escolas!
Darcy resume
ele mesmo seu livro como tendo três partes fundamentais:
1) processos de gestação étnica
2) modos regionais de ser
3) crítica às duas instituições
características do Brasil: a propriedade fundiária e o regime de trabalho.
Sobre a
gestação étnica original do povo brasileiro, particularmente interessante para
mim foi entender que o índio brasileiro se mantém vivo no sangue de cada um de
nós. É curioso como apenas após ler esse livro eu consegui ver que sim, somos
todos índios. Na minha ignorância, sempre pareceu que os índios brasileiros
eram menos numerosos do que o 1 milhão original, que os índios tinham sido
quase todos dizimados e que nossa mestiçagem era muito mais do branco com o
negro. Fiquei pensando que essa ignorância parece ser partilhada por
muitos. O brasileiro é treinado a ver o índio como exótico, raro e como um povo
que não tem nada a ver conosco. Não entendemos que nós somos os frutos do
estupro de índias por colonizadores portugueses e nem o quanto das características
culturais ou mesmo dos traços raciais indígenas foi incorporado aos
colonizadores para formar nosso jeito especial de existir. Nós somos o índio
aculturado, o negro aculturado e o colonizador branco ao mesmo tempo. Somos
fruto da violência brutal das guerras de conquista e descendemos ao mesmo tempo
dos algozes e das vítimas, embora queiramos às vezes nos identificar mais com
um dos lados da história.
Sobre os modos
regionais de ser, a divisão dos brasileiros entre crioulos, caboclos,
sertanejos, caipiras, gaúchos e gringos é brilhante. Diferentemente da
tradicional análise dos povos a partir de regiões geográficas, o ponto de vista
apresentado fornece uma riqueza imensa no entendimento do processo histórico,
pois a análise antropológica é bem mais profunda, por incluir os sentimentos
humanos e as especificidades das formas de interação de cada grupo.
Darcy também
se propõe a fazer uma crítica daquelas que ele entende serem as principais
instituições brasileiras, o latifúndio e a escravidão. Segundo o autor, o
Brasil surgiu e se manteve coeso baseado num poder central forte e autoritário.
Apesar de acontecerem conflitos das elites entre si, sempre pareceu haver uma
relativa união dessa elite em prol da grande empreitada de manter uma enorme classe
escrava subjugada. Darcy afirma que no Brasil há grande distanciamento
social entre as classes dominantes, subordinadas e oprimidas.
Diante de
tanta informação preciosa que encontrei nesse livro, e diante de tantas
questões que ele suscita, confesso ter sido bem difícil escrever isso aqui. Mas
vou tentar apontar resumidamente o que me gerou reflexões. Primeiramente, o
próprio conceito de Brasil. Como o Brasil conseguiu se transformar numa
grande ilha continental, relativamente homogênea, ao contrário dos países
da América espanhola? Lendo "O povo brasileiro" algumas coisas
parecem ter sido determinantes, por exemplo o desejo expresso da Coroa
portuguesa por manter o controle do território, reprimindo qualquer movimento
social como se fosse separatista (ainda que se tratasse apenas de
movimento republicano ou antioligárquico) e destruindo qualquer etnia
discrepante, por meio de genocídio e etnocídio implacável. Além disso, a
Coroa sempre manteve forte vínculo com a elite brasileira, dando poderes
administrativos e distribuindo títulos de nobreza. Essa tradição foi se
mantendo no Brasil, de modo que aqui nobre e rico tenha sido sempre sinônimo.
Daí os barões do café e os marqueses capitalistas. Um outro fator parece
ter sido a vinda da família real pro Brasil, que tornou a colônia ainda
mais importante para Portugal e fez com que o olhar português continuasse
atento ao que acontece aqui. Também parece que o Brasil se unificou a
partir de diferentes momentos de integração econômica. Darcy cita
principalmente o período da mineração, dizendo que MG foi o no que atou o
Brasil. Também é importante lembrar que, além da repressão aos movimentos
sociais, foi preciso repreender os movimentos separatistas que de fato
ocorriam, no sul do país, o que foi possível graças à grande concentração de
forças militares para proteger a fronteira nessa região
Outro tema que logo no início me chamou atenção foi a antropofagia. Curioso que a antropofagia fazia parte de um ritual. Há relatos de que os guerreiros vencidos e escolhidos para serem comidos nesses rituais na verdade se sentiam honrados, pois isso se reservava apenas aos guerreiros virtuosos (isso não li no Darcy e sim numa pesquisada paralela). Assim, ao contrário da idéia de que a antropofagia seria uma pura e simples selvageria irracional ou animalesca, ela parecia ser algo até bem humano e distante do que fariam os animais, já que tinha todo um significado cultural, afinal, a questão do índio não era matar a fome
Outra questão
para mim foi a idéia de superioridade cultural de alguns povos em relação a
outros. O próprio Darcy usa expressões como “menos avançados” para se referir
aos índios. Seria ser mais avançado ter acesso a tecnologias que permitiram
melhor adaptação ao ambiente? Seria essa adaptação uma questão bélica que
envolveria a conquista de territórios desconhecidos para se manter esse poder
bélico e fazer frente a potenciais inimigos?
Um conceito
muito interessante apresentado no livro é o de atualização histórica, definido
como a perda de autonomia étnica, dominação e transfiguração de povos
originais. Darcy apresenta esse fenômeno como ocorrendo em três planos:
adaptativo (ligado a tecnologias, condições materiais), associativo (ligado a
organização social e econômica) e ideológico (ligado a comunicação, crenças,
conhecimento, autoimagem étnica, arte). Posso estar sendo excessivamente
materialista, mas tenho a impressão de que o plano adaptativo, especialmente o
desenvolvimento de tecnologia de guerra, parece ser o mais importante. Parece
haver uma tendência quase universal entre os povos a ver os outros povos como
potenciais inimigos. Isso não necessariamente vai levar a uma guerra imediata,
muitos povos vão tender a ser na verdade excessivamente hospitaleiros com os
estranhos, pela dúvida sobre o poder bélico do outro. Caso o povo estranho seja
na verdade mais forte, parece lógico pensar que o mais prudente é evitar
conflito com ele, nem que para isso sacrifícios tenham de ser feitos. Melhor
ser refém ou escravo do que ser dizimado, certo? Bem, nem sempre. Da mesma
forma que talvez algumas pessoas prefeririam o suicídio à escravidão, talvez
alguns povos prefeririam lutar e partir pro tudo ou nada. O fato é que pensar
que sempre os povos vão escolher o caminho do confronto uns com os outros pode
não estar correto. Mas, em relação aos índios brasileiros, Darcy diz que eram
povos tribais que ao crescer se bipartiam, se diferenciavam e se hostilizavam.
Fiquei curiosa por entender mais sobre os índios e sobre como se dava esse
processo.
Mas, ainda em
relação à superioridade cultural, o fato é somos estimulados até hoje a
conviver naturalmente com a idéia de que a cultura que entendemos como européia
(herdada dos portugueses) é superior em relação às culturas indígenas e
africanas. Na verdade, a admiração e autoidentificação com a cultura do europeu
parece ser uma marca da fundação do Brasil. Como se fóssemos nós todos
eternamente aquele índio fascinado pelo espelho. O povo brasileiro, tendo
surgido a partir de transfiguração e acultaramento do índio e do negro, acaba
por enxergar a cultura européia como a única possível. Ao mesmo tempo, no
entanto, o brasileiro não se enxerga como completamente ou genuinamente
europeu, talvez vindo daí o famoso viralatismo. Não é a toa que apenas
recentemente têm ganhado força alguns movimentos de negros mais conscientes de
suas raízes africanas. Da mesma forma, os indígenas que tentam manter traços de
sua cultura são vistos com incompreensão. As pessoas não entendem que o índio
pode usar celular e querer ser índio. É como se toda a tecnologia tivesse sido
criada exclusivamente pela "nossa cultura" (cultura essa “européia”)
e ao índio só houvesse duas opções coerentes: entregar-se totalmente a
aculturação ou manter inalterado seu modo de vida, mesmo que o ambiente em que
ele vive tenha sido completamente modificado ao longo do tempo pelos povos
invasores. Há inclusive quem sugira que os índios que reivindicam a posse de
terras para sua subsistência deveriam se deixar morrer por doenças, já que, se
não aceitam por completo o modo de vista capitalista, não deveriam aceitar
receber remédios ou vacinas. .
Sobre o grande
latifúndio e nossa base escravocrata, fica claro pelo livro que a legitimidade
da posse das terras sempre foi imposta pelo poder central. Reivindicar terra
sempre foi uma atitude capaz de mobilizar o autoritarismo das forças
dominantes, que, sob as mais diversas desculpas ideológicas, sempre impediu uma
divisão mais igualitária. Importante questão abordada no livro é que o
latifúndio já surgiu a serviço do mercantilismo, sempre fazendo a economia do
Brasil estar voltada pro mercado externo e integrada ao capitalismo
globalizante. Com relação a essa função econômica da terra (produção de
produto para exportação), vale à pena refletir sobre duas coisas. Uma é o papel
das missões religiosas jesuítas na história do país. Segundo Darcy Ribeiro, os
missionários não queriam apenas transplantar aqui os modos europeus de viver e
sim, a partir de uma ideia salvacionista, recriar o humano, criando uma
sociedade solidária, igualitária, uma espécie de "utopia socialista
seráfica". Assim, embora sendo parte do complexo colonizador e embora
contribuindo indiretamente pro genocídio indígena (tanto pela aculturação
deles, como pela pacificação que dificultou o surgimento de resistências), as
missões foram um importante modo de produção econômica alternativa em relação
ao latifúndio escravocrata mercantil. E até foram bem sucedidas economicamente,
mas vencidas no campo político-militar, culminando com a expulsão dos jesuítas.
Os interesses mercantis mostraram assim ser a prioridade da elite do poder.
Outra coisa a
se pensar é que o próprio Darcy põe em dúvida como seria a vida do brasileiro
caso o Brasil não tivesse descoberto formas de se colocar no mercado mundial.
Se não fosse o açúcar, o ouro e o café, o que seria de nós? Pobre desse povo
mestiço, europeu imperfeito sem nada a oferecer para atrair a atenção dos europeus
perfeitos, sem nenhuma forma de obter produtos industriais de fora, tendo que
viver de subsistência nessa terra e, pior, sem tecnologia militar que nos
proteja! Estaríamos assim fatalmente condenados ao genocídio, visto que,
riqueza que interessa ao capitalismo é o que não falta por aqui?
Por fim, Darcy
cita que no Brasil sempre houve muitos conflitos sociais, com diferentes
motivações principais, mas uma característica frequentemente presente me chamou
atenção. Vários desses conflitos têm a religião como ideologia mobilizadora.
Ainda acho que precisamos aprofundar essa discussão, tanto sobre a religião como
sobre outras fontes formadoras de opinião, em especial a mídia, mas no momento
basta destacar a importância e a força que tiveram movimentos sociais de cunho
religioso. E vale lembrar que esses movimentos foram vencidos pelo poder
central, mas deram trabalho.
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