domingo, 27 de novembro de 2016

Ressurgências



‘O Dono do Morro’, de Misha Glenny, é um livro que tem muitas semelhanças com ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha. Ambos contam a história dos anti-heróis do seu tempo, os criminosos mais procurados do país; ambos optam por um viés neutro/positivo na construção do protagonista, em oposição a uma mídia de pensamento uniformizado que os detrata e os desumaniza; ambos contam a história de uma realidade longínqua, apartada das classes burguesas e privilegiadas a quem o livro se destina; ambos retratam a história de uma guerra fratricida em que morrem tanto os que caçam quanto os que são caçados, iguais em cor e pobreza; ambos descrevem personagens que são carismáticos e políticos, e que se assenhoreiam simbolicamente de um lugar e de um povo onde o Estado jamais chegou (a não ser quando veio com suas armas); ambos lamentam tacitamente o triste fim daqueles que retrataram, seja a morte, seja a prisão, e evidenciam o caráter injusto de uma guerra aos pobres em voga no país praticamente desde o seu nascimento, ora disfarçada de guerra ao monarquismo, ora de guerra às drogas, mas sempre lá, e sempre guerra.

Se em certa maneira, Misha Glenny é Euclides da Cunha, é porque Nem é também Antonio Conselheiro. E a Rocinha é também Canudos. E o sertão é também a favela. E o soldado é também o PM. E o jagunço é também o traficante. E os pobres, no meio disso tudo, são também os pobres, os mesmos pobres no meio do fogo cruzado da disputa por território entre aqueles que querem governar o que não lhes foi concedido e os que querem retomar o que nunca tiveram.

Pouco mais de cem anos separam as duas narrativas.

Em cem anos acontece bastante coisa, é bem verdade. É possível escrever livros grossos esmiuçando as filigranas da política brasileira, com nomes, datas e bastidores. É possível descrever os regimes políticos, a política externa, os presidentes, os golpes de Estado, as Constituições.

O filósofo italiano Giambattista Vico, que viveu entre os séculos XVII e XVIII, foi um dos primeiros a desenvolver o pensamento sobre a recursividade da História, que ele chama de corsi i ricorsi. Para Vico, a História se divide em três fases: a do Deuses (e da poesia), a dos heróis (e das epopeias), e a dos homens (e da razão). Essas fases se repetiriam de maneira mais ou menos cíclicas em fluxos e refluxos (corsi e ricorsi), rompendo com a lógica cartesiana de linearidade temporal. É de Vico esta noção de que a história não é necessariamente evolutiva, mas a de que ela caminha ora para um lado, ora para outro, incessante nesses fluxos e refluxos entre fases.

Mas para quem habita os estratos mais baixos da pirâmide social brasileira, salvo pequenas alterações conjunturais, o Brasil é precisamente o mesmo país: armado, violento, beligerante, torturador.

Que tipo de teoria da história Vico teria escrito se habitasse uma cidade brasileira em vez de Nápoles?
 
Pode ser mesmo que a teoria da recursividade da História só faça sentido para quem é rico. A riqueza é que, em certa maneira, erigiu sua própria narrativa através de uma intelectualidade, também por ela criada, para dar conta dos fenômenos de transição de poder e capital entre a nobreza e o clero, entre a aristocracia e a burguesia. Mas para os mais pobres, para a ralé brasileira (como denomina Jessé Souza), a quem não foi e não é dada a chance de produção discursiva de amplo espectro (ainda que isso aumente gradativamente em ritmo muito lento), a situação de desamparo, desatenção, e mesmo de enfrentamento, é uma história una, em bloco, sem direito a margens e nuances, sem fluxos e sem refluxos, cuja perpetuação ao longo do tempo, salvo raríssimas exceções, é constante.

Como dizem os Titãs, miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes.

Não quero fazer um texto pessimista. Na verdade, não nego as melhorias pontuais na condição de vida daqueles que são mais pobres ao longo da história brasileira. Mas é muito duro perceber que não houve mudanças estruturais na forma em que a sociedade brasileira se pensa, se posiciona e age.

E quando digo sociedade brasileira, não me refiro apenas à elite aburguesada e intelectualizada. Falo também das coisas que acontecem em meio à própria condição de pobreza.

Um dos exemplos trazidos pelo livro do Misha Glenny é a vinculação entre o machismo e as estruturas de poder. Nem, o protagonista da história, era um homem casado em uma relação monogâmica estável. A partir do momento em que ele entra para o tráfico, e vai galgando posições até chegar ao posto de ‘dono do morro’, Nem é como que empurrado para uma condição de homem-macho. Para demonstrar poder, é necessário que ele mostre se relacionar com várias mulheres, e que mostre que mantém com elas uma relação de dominação.

A demonstração de poder e de marcação de território através de relações de dominação com as mulheres não é nenhuma novidade. Dos casos de estupro em quase todas as guerras (fazendo as mulheres de prisioneiras e servas sexuais) à valorização simbólica das características de ‘bela, recatada e do lar’, o patriarcado sempre estabeleceu o seu poder subjugando primeiramente as mulheres e, só depois, quem quer que seja declarado como inimigo. O interessante, porém, no relato de Glenny, é perceber que a relação entre o machismo e o poder é tão forte, que o exercício mesmo deste poder demanda uma transformação ou um desvio em direção a uma personalidade (ou a uma persona) machista, mesmo naqueles que não o são a priori.

No Festival Mix Brasil da Diversidade, realizado nesse mês de novembro em São Paulo, assisti a uma mesa-redonda com a temática Masculinidades. Um dos motes de discussão era justamente esse: será que é possível criar uma representação do masculino, ou seja, será que é possível exercer a masculinidade ou as masculinidades sem que isso seja feito de maneira opressora? Como constituir-se como homem sem subjugar a mulher?

Um dos debatedores desta mesa era o Daniel Teixeira, advogado e pesquisador do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade), que inserido na perspectiva da interseccionalidade, discutiu um pouco a masculinidade dos homens negros. Um dos aspectos que mais me chamou a atenção é a de que, na transição menino-homem, o jovem negro entra numa zona em que as pessoas passam a ter medo dele. Isso se dá pelo porte físico do homem negro, pela sua suposta (e fetichizada) virilidade e potência sexual e pela identificação dele com alguém criminalizável (embora isso também aconteça com as crianças negras, não só com os jovens). O fato é que durante a adolescência, esse momento tão relevante para a construção das subjetividades, o jovem negro já é lido pela sociedade como alguém violento, alguém de quem se deva ter medo.

Na minha leitura (e isso não foi mencionado na palestra), imagino que isso funcione como uma espécie de profecia autorrealizável. Se a sociedade o percebe como violento, e se ser homem (na construção subjetiva) é algo a que se aprende a ser na adolescência, o homem negro só pode se constituir como homem de maneira violenta, que é como a sociedade o enxerga. E a partir desse momento, e durante a toda a vida adulta, a violência e a masculinidade se tornam intrinsecamente ligadas na construção da subjetividade do homem negro.

Portanto, a possibilidade de construção de um mundo onde haja menos homens negros violentos é, precisamente, a construção de um mundo que seja menos violento para os jovens negros.

E nesse sentido, é curioso perceber como a personalidade de Nem, jovem, negro, favelado, resiste a uma moralidade violenta até a relação estável com a sua primeira esposa, no início da vida adulta. O recurso à violência é utilizado apenas quando explicitamente necessário para as estruturas de poder que sustentam a sua trajetória profissional até sua coroação como ‘dono do morro’. Portanto, heroísmos à parte, é possível dizer que Nem é bastante resistente ao uso da violência, e se isso é um aspecto pouco comum entre aqueles que se envolvem com o crime organizado nas favelas cariocas (conforme a descrição dos outros ‘donos do morro’ anteriores feitas por Misha Glenny), certamente é também um dos fatores que o tornam mais bem-sucedido do que aqueles que o antecederam.

Nesse sentido, o uso parcimonioso da violência é um dos elementos fundamentais para projetar a Rocinha como favela-modelo do Rio de Janeiro, possibilitando maiores intercâmbios entre a favela e o asfalto mesmo antes da política de pacificação das UPPs.

Esta política, apesar de todos os seus aspectos controversos, conseguiu alterar um pouco a percepção social da favela como um lugar de medo para a de um lugar possível, e mais do que isso, um lugar fruível pela elite.

Misha Glenny fala da boate Emoções, um must entre jovens bem-nascidos na Zona Sul carioca que queriam conhecer um baile na Rocinha, na primeira década do século XXI.

Nunca fui à Emoções, mas dentro de meu ponto de vista pequeno-burguês, morador do condomínio Zona Sul, já entrei em uma favela algumas (poucas) vezes. Já fui a festas e a bares. Semana passada, fui almoçar no Bar do David, um simpático boteco no Chapéu Mangueira, no Leme, cujo prato chamado ‘Ressurgências’, à base de frutos do mar, venceu o último concurso Comida di Buteco.

Todas as vezes em que vou a uma favela (TODAS) fico problematizando e pensando o quão diferente eu realmente sou de uma pessoa que sai de um país europeu e entra num desses jipes para ficar vendo e admirando a pobreza (e eventualmente discutindo sobre essa pobreza em longos textões, como faço agora).

Muitas vezes, acho que sim, que sou desses. Que minha presença na favela tem mais a ver com a realização de um turismo diferentão e à construção de uma personalidade bacana e descolada, mas que isso não traz qualquer benefício para quem mora por lá.

Mas, recentemente, comecei a pensar de outra forma. Penso que sou morador da minha cidade e que este local também me pertence. Que é preciso estar lá porque sou cidadão e sou citadino, e minha presença (ou a presença burguesa no geral) colabora para legitimar a favela como território da urbe.

A verdade é que o acesso à favela pelo morador do asfalto enseja uma discussão sobre essa presença que pode ser percebida ora como turismo antropológico, ora como direito à cidade.

O que tem me levado, contudo, à opção por encarar esta presença mais como direito à cidade e menos como turismo antropológico é a percepção de que ela proporciona a abertura de poros no tecido urbano e de que esses poros, pouco a pouco, ao estabelecer um fluxo de indivíduos do asfalto em relação à favela, contribuem para torná-las menos herméticas e mais integradas à cidade.

Penso também que o cerne desta questão é uma clivagem cada vez maior entre o que é popular e o que não é. É um pouco como o SUS. Enquanto ele não chega à classe média, permanece o discurso de que ‘o SUS não resolve nada’, ‘a fila do SUS é um absurdo’ etc. No Brasil, tudo que é popular está sujeito a um sucateamento e a uma degradação. A solução para isso, no meu ponto de vista, é prover aos não-populares o acesso ao popular.

Imagino que essa sentença possa soar um tanto quanto elitista, mas penso que só o acesso de quem não é popular garante o que é popular. A favela será capaz de prover condições tanto mais dignas aos seus habitantes quanto mais a classe média frequentar os seus espaços. As praças serão tão melhores e bem cuidadas para todos quanto mais as pessoas (especialmente as de classe média) as utilizarem. As escolas públicas municipais no Rio eram de boa qualidade até o ponto em que a classe média aderiu maciçamente às particulares. As universidades públicas são de boa qualidade hoje, no geral, porque a classe média está lá.

‘Estar lá’ tem a ver com uma lógica de ocupação e de acesso e não com uma lógica de propriedade e posse. Quando digo que a classe média precisa estar nas favelas, não acho que ela precise comprar casas ou que ela deva criar territórios isolados e encarecidos que pouco a pouco vão expulsando quem é mais pobre. Este é o fenômeno da gentrificação e, embora a presença da classe média na favela se dê muitas vezes por esse caminho, não acho que seja o mais adequado.

Embora pareça bem cartesiano formular as coisas dessa forma, imagino que o nível ideal da presença da classe média na favela seja aquele que possa provocar mudanças nas condições de vida da população local (porque o Estado sempre estará preocupado em garantir boas condições de uso da coisa pública a que as classes mais abastadas decidem acessar), mas que, por outro lado, não impeça os moradores locais de terem acesso à mesma coisa pública e aos mesmos equipamentos de cultura e lazer públicos e privados a que as classes mais abastadas acessam.

É preciso criar espaços de convivência em que, por mais que não se consiga estabelecer neles um real sentido de pertencimento, que pelo menos eles possam se estabelecer como espaços de não-conflito, de não-confronto e, sobretudo, de não-estranhamento.

Mas que será que é possível, de fato, abolir esse estranhamento? Será que é possível que eu suba o morro e não me sinta estranho, e que também alguém que desça o morro não se sinta estranho? Como garantir que a presença não seja estranha se não há pertença?

A resposta é que talvez seja preciso pertencer um pouco. Penso que a sensação de pertença, ainda que parcial, é o que possibilita que as pessoas não se estranhem.

Mas aí surge outro desafio? Como separar uma pertença parcial de uma pertença, digamos ‘genuína’? Como garantir que minha presença na favela não seja percebida nem por mim nem pelos outros como um corpo estranho, ao mesmo tempo em que sei que existe uma diferença qualitativa entre o meu senso de pertencimento e o de alguém que, por exemplo, tenha sido criado em uma determinada comunidade?

A essa pergunta, as possibilidades de resposta são mais escorregadias. O que poso dizer, nesse sentido, é que, por mais que, por exemplo, o próprio Mishsa Glenny tenha se esforçado por ser um ‘local’, tanto na acepção de brasileiro quanto na de morador da Rocinha, percebo que, ainda que na maior parte das vezes seu discurso seja coeso e verossímil, aparece um elemento aqui e acolá que evidencia que seu discurso é estrangeiro e, em certa medida, colonialista.

Cito, nesse caso, dois exemplos. O primeiro é quando Misha Glenny diz, em algum momento do livro, que a opção de Nem pelo tráfico é, em certo sentido, fruto de sua condição de pobreza (afirmação com a qual tendo a concordar), e que se ele fosse dotado das mesmas qualidades intelectuais mas não morasse na favela, ele certamente poderia ter sido um empresário de sucesso.

Esse é um discurso colonialista. Sem se aperceber disso, Glenny imputa à população brasileira os seus próprios valores (ou os de seu país) do que seja ‘obter sucesso’. Certamente, na escalada do que seja ser bem-sucedido no Brasil, outras opções me vêm à mente muito antes de empresário: funcionário público, médico, juiz, auditor fiscal, herdeiro bon vivant, fazendeiro.

É claro que eu também sou permeado pelas minhas próprias experiências ao apontar o que seria o ‘sucesso’ de algum brasileiro (mesmo quando tento pensar de forma não individual), mas a verdade é que não enxergo e também não vejo enxergarem o empresário como o maior exemplo de sucesso no Brasil.

Um outro exemplo, mais óbvio e mais doloroso, é quando Glenny afirma que as pessoas foram às ruas em 2013 por causa dos escândalos da Petrobras e da corupção. Eu sei, pela minha vivência, que não foi bem assim. Mas sem querer entrar numa acepção muito pessoalizada das ideias, as manifestações de 2013 ainda estão em plena ebulição, sendo objeto de acaloradas discussões no que diz respeito à construção de um discurso unificado que permita enquadrá-las na situação sociopolítica do Brasil contemporâneo. É, portanto, bastante reducionista que se reduza o escopo delas a essas duas pautas, quando na verdade o que se tem é um dos mais complexos fenômenos da política brasileira recente.

Então, retomando a questão da pertença e do estranhamento, e inserindo essa perspectiva do discurso, afirmo que por mais que eu faça esforços para naturalizar a minha presença na favela, posto que quero me apropriar da cidade através da construção de um sentimento de pertença, ainda que parcial, em relação àquele território, é ainda mais difícil fugir à sensação de estranhamento quando me percebo construindo um discurso sobre uma situação e/ou território a que não tenho uma pertença total, apenas uma pertença frágil e quebradiça, uma quase-não-pertença.

Penso que, em qualquer momento, posso incorrer em erros crassos ou mesmo sutis ao optar por falar de uma realidade que não é a minha, podendo dar ao favelado que me lê a mesma sensação que Misha Glenny me deu ao me apresentar o seu discurso: a de que existe alguém estranho que conta a sua história.

Mas, então, o que fazer? Deslegitimar esses discursos? Certa vez, comentando sobre a situação das travestis, um amigo meu falou que não deveríamos nos preocupar em construir discursos sobre elas, de que a responsabilidade de produção do discurso das travestis é das próprias travestis.

Fiquei um tempo pensando nisso, mas depois cheguei à conclusão de que não acho que os discursos daqueles que não possuem vivência sejam ilegítimos. Pelo contrário, penso que os discursos oriundos de diferentes pontos de vista sobre um mesmo objeto e/ou situação, uma vez que respeitem, explicitem e aceitem seus próprios locais de fala, são capazes de criar pontes e mediar diálogos entre todos aqueles que se relacionam com os sujeitos dos quais o discurso fala.

Produzir, mas sem projetar. A projeção de um discurso estrangeiro tem efeito similar à compra de casas na favela pela burguesia e ao processo de gentrificação: é castrador. O discurso estrangeiro (ou estranho) deve ter um tamanho tal que seja capaz de aludir ao objeto/situação, sem entretanto, protagonizá-lo. O papel do discurso estranho, em virtude de sua aceitação pela elite cultural/racial/social, é o de convocar, trazer, e dar subsídios à projeção de um discurso não-estranho ao centro do debate.

Por fim, é importante lembrarmos que o papel do discurso estranho é também o de contar alguma história e de resgatar alguma memória quando o discurso não-estranho não se faz possível.

O resgate da memória nos traz novamente ao conceito do corsi i ricorsi de Giambattista Vico. Quando nas sístoles e diástoles da História, uma estória muito similar é contada cem anos depois, através do mesmo ponto de vista externo/estrangeiro/estranho, o que temos de incremental e diferente na versão de Glenny, contrapondo-a com a de Euclides, é a possibilidade de produção de novos discursos, e discursos não-estranhos.

Enquanto que em Canudos morreram todos, a Rocinha permanece com seu número de habitantes rondando a centena de milhar, e o protagonista desta história que Misha Glenny nos conta permanece vivo, embora preso. O tempo de produção do discurso não-estranho é o hoje, o agora.

É neste hoje, neste agora e neste Rio de Janeiro que talvez Giambattista Vico, inspirado pela culinária local e despreocupado de suas questões metafísicas, desse ao corsi i ricorsi o nome de Ressurgências.

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