domingo, 27 de novembro de 2016

Nemesis

Uma das imagens de Nemesis, a deusa grega da vingança distributiva.
Nemesis é a deusa grega da justiça distributiva e da vingança. Curiosamente, esta parte do título original do livro de Misha Glenny ( Nemesis – One Man and The Battle for Rio) ficou de fora na tradução (O Dono do Morro – Um Homem e a Batalha pelo Rio).  A deusa infligia dor ou concedia graça de acordo com o que era justo. Em inglês, no entanto, nemesis passou a significar inimigo, opositor, mas ao mesmo tempo semelhante.

Nossa Nemesis, o Nem, encara esses papeis. Funciona como justiça distributiva — a opulência do faturamento do crime se transforma em cestas básicas e audiências com o “Dono do morro”. Neste aspecto me pergunto se é possível considerar a estrutura do tráfico como mimese do Estado.

O poder do tráfico não tem accountability, não tem fiscalização com participação popular. O bem-estar do povo conta na medida em que a tranquilidade ajuda os negócios, e a agitação atrapalha. A distribuição de comida, crédito e justiça fica amarrada à personalidade de um indivíduo. Não dá para chamar de “Estado paralelo” um sistema que funciona recorrendo muito à violência, e cuja linha de sucessão é também decidida arbitrariamente e na violência. O Estado formal recorre à violência excessivamente, mas não a tem como método principal, ao menos enxergo assim, em tese. O Estado tem meios de controle, onde podemos encontrar muitas falhas e manipulações, mas ao longo do tempo há um mínimo de estabilidade. Pensando um pouco mais, o tráfico funciona talvez como mais uma ONG, que tem objetivos específicos dentro de uma determinada área de atuação ou área geográfica restrita, mas não tem compromisso com macro questões, mesmo dentro da favela. A distribuição de cestas básicas é apenas algum alívio. Pode-se pensar na pax nemea como um fator estabilizante contributivo à prosperidade econômica, mas no frigir dos ovos foi a prosperidade econômica geral do Brasil nos anos Lula, que fez a diferença na pujança da Rocinha. O aumento sistemático do salário mínimo e o Bolsa Família (além do PAC, como Glenny mencionou), são os verdadeiros responsáveis por esse ganho ocorrido na favela. Esta é a minha principal questão contra o papel das ONGs. Todo mundo acha muito bonito a ONG, que ajuda de fato muita gente, mas não gera mudanças nucleares na sociedade. Apenas o Estado, com o devido planejamento, é capaz de promover essas mudanças. Somente o Estado pode articular ações nacionais (ainda que não possa prescindir de entes locais) que contrariem interesses localizados na manutenção da pobreza. Por exemplo, ONG nenhuma vai conseguir expandir acesso à saúde gratuita em larga escala; primeiro porque não é comprometida com a integralidade da atenção básica, e segundo porque não vai ter força para contrariar os donos de clínicas populares que ganham dinheiro cobrando consultas e exames. Aqui, ainda, destaco a importância do planejamento nacional e estadual em contraponto ao local. Seguindo na área da saúde, a existência de uma política nacional de implantação de Saúde da Família criou grande pressão para que a prefeitura do Rio aceitasse implementá-lo na cidade. Cesar Maia resistiu enquanto pôde, mas Dudu abriu a porteira e o rio deixou de ter quase zero para uma cobertura significativa de Saúde da Família. Detalhes e problemas dessa cobertura no caso do Rio podem e devem ser discutidos, mas o passo principal foi a política nacional.

Ponho em questão também o “paralelo”. Ora, o poder do tráfico na favela não é “paralelo” ao do Estado, mas sim muito bem articulado com este. No momento em que a coisa cresce, deixa de ser um pequeno comércio informal seja de drogas ou de leite em pó, o Estado entra. Para fazer chegar armas, drogas, ou mesmo insumos para o beneficiamento da pasta de coca, é necessária uma contribuição do Estado.

Glenny realiza um verdadeiro estudo de caso com a biografia de Nem. A partir de dados dele e de seu entorno, podemos analisar um importante recorte da história recente do Rio, com seus vieses político, socioeconômico e cultural. A vida de Nem deu errado em inúmeros pontos, se pensarmos no ideal, ou menos em uma trajetória que não leve a um presídio de segurança máxima em Campo Grande, MS. O simples fato de existirem favelas já mostra a falência de um povo em cuidar dos seus.

Antônio nasceu em uma favela, é produto desse meio, e sujeito nele. O lar em que nasceu é atravessado pelas marcas da pobreza e da precariedade da cidadania. O pai não tinha emprego sólido e qualificado, e foi vítima da violência que, a meu ver é gerada pela imensa desigualdade. Largou a escola. A mãe alcoólatra sem tratamento, era ausente porque tinha de trabalhar nesse nosso querido sistema de serviço doméstico. A filha não teve acesso a tratamento eficaz de saúde e a família não pôde contar com uma rede mínima de proteção. Este foi o ponto de virada que empurrou Antônio para o submundo (segundo nosso ponto de vista, porque provavelmente para ele aquilo é que era o mundo).

Antônio foi vítima de uma espécie de escravidão, a escravidão por dívida. Um dos maiores sucessos de Nem talvez tenha sido conseguir pagar essa dívida, mas aí ele já tinha gerado outra; é muito difícil sair do “movimento” depois de se trabalhar tanto nele. Caso morasse nos EUA, Nem provavelmente teria feito três hipotecas de seu imóvel, caso tivesse, para pagar o tratamento de Eduarda. Iria à falência. Caso morasse na Dinamarca, pode ser que não tivesse imóvel, mas não precisaria gastar com o tratamento. Muito menos largar o emprego. Se Nem fosse funcionário público federal no Brasil, poderia tirar uma licença para cuidar de sua filha, provavelmente teria plano de saúde, ou então algum conhecido que pudesse dar um jeitinho de ele ser atendido no Hospital da Lagoa, ou na UFRJ. O livro não dá detalhes do périplo de Eduarda pelos hospitais, nem das tentativas de tratamento, mas sinceramente esperava que na FioCruz o caso fosse resolvido. Não foi. Neste caso fica mais evidente que, para uma rede de proteção social eficaz, uma saúde pública eficiente não basta. É necessário um esquema de apoio para garantir que os pais ou responsáveis não serão excluídos do mercado de trabalho e ao mesmo tempo poderão cuidar de seus filhos doentes.

Pode-se pensar estes pontos em que a história de vida de Nem foi empurrada para a delinquência como pontos de falha do Estado. No entanto talvez seja o caso de pensar não como falha, mas como produção mesmo. Rapidamente aparecem as articulações da favela e de seus esquemas de poder com o Estado. E, no nível macro, a perpetuação da pobreza também significa manutenção dos privilégios.

O livro mostra todo o poder destrutivo da guerra às drogas. Mesmo pintados como heroicos, os esforços dos policiais para conter ou desmantelar a estrutura do tráfico acabam gerando no mínimo uma impressão de futilidade, e em última análise, pena. No livro esse debate não aparece, mas a legalização das drogas criaria um cenário bem diferente para este enredo, e um roteiro menos violento e com menos mortes. Esse não-debate velado gerou um incômodo que ia e voltava várias vezes no decorrer de minha leitura, por vezes encoberto pela riqueza de eventos interessantes e muito bem descritos, por outras reavivado por alguma morte desnecessária ou pela descrição de uma intricada investigação policial cujo resultado final não é mais que sobrecarregar uma cela de prisão.

No debate sobre as UPPs, eu lembro muito bem que, quando de seu lançamento, todas as autoridades destacavam que a parte ocupação policial deveria ser somente um passo inicial para abrir caminho para a presença do Estado, ampliando o acesso à cidadania aos habitantes. Todos sabiam e falavam isso. O que se mostrou na verdade foi uma negligência a esta segunda parte do projeto. Talvez porque seja difícil esperar da polícia outra maneira de lidar com a pobreza que não seja a violência, e tão ou mais difícil esperar do Estado outra maneira de lidar com a pobreza que não a polícia.

Rebentos e Dejetos

Eu penso que muito se pode dizer sobre uma sociedade observando o modo como ela lida com suas crianças e com seus dejetos. Escola ruim e esgoto não tratado. Um bom resumo.

A Rocinha aparece representando favelas no coletivo, no universo particular do Rio, e na singularidade de seu território. Universalmente, favelas são concentrações de pobreza. Construções precárias, falta de acesso a serviços básicos, como água encanada, transporte. Falta a mínima presença do Estado organizado. Na zona sul do Rio as favelas são ilhas elevadas no meio de bairros mais ou menos abastados, o que torna a geografia diferente de outras cidades brasileiras, onde é mais comum que a pobreza se espalhe pela periferia, e não se estabeleça como manchas no mapa da cidade. A singularidade da Rocinha se mostra no isolamento de outros morros da cidade, fazendo com que, mesmo que o tráfico por lá fosse controlado por uma ou outra facção, ela pudesse ser relativamente autônoma, o que trouxe alguns períodos de paz enquanto outras favelas sofriam. Esses períodos de paz geraram um respiro para que lá pudesse haver uma identidade mesmo cultural. Aí também se destaca a personalidade mesma de seu déspota, que se reflete nos negócios e na prosperidade local.

Parecido com a economia informal do Canindé de Carolina Maria de Jesus, também no tráfico da Rocinha há sistema elaborado de crédito e débito. Mesmo donos de um negócio tão poderoso como o comércio de drogas têm dívidas, seja de produtos e dinheiro a fornecedores de drogas e armas, seja dívidas de lealdade a amigos e companheiros. Traços dessa “economia humana”, para usar um termo emprestado do David Graeber, aparecem muito claramente no episódio da frustrada compra de armas, se não me engano, por Bibi Perigosa. Neste evento ela paga uma parte do valor e toma, como garantia, um adolescente, cujo parentesco não é explicitado no livro.

O livre comércio e a livre organização na favela geraram um poder autocrático, machista e violento. O monopólio do comércio é garantido, ou conquistado, na base da bala. Esporadicamente são usadas outras formas de garantir o poder, mas todas são residuais quando comparadas ao terror.

Nem é nemesis por ser inimigo do estado e causar empatia no autor de sua biografia, assim como gerou respeito na população sob seu comando (um pouco menos que os 100.000 descritos por Glenny). É nemesis por ter poder quase divino de distribuir graça ou terror e punição.


No mais, Misha Glenny fornece um excelente resumo do Brasil naquele intervalo de sua história. Um resumo descritivo, com poucas considerações em termos de explicações. O Estudo de Caso de Antônio Francisco mostra um rico ponto de convergência de elementos históricos, políticos, econômico e sociais. Mais do que uma exposição de opiniões ou teorias em um debate, trata-se de uma riquíssima descrição de um momento brasileiro.

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