sexta-feira, 31 de julho de 2015

Era só mais um Silva

No excelente - e saborosíssimo de se ler - livro "Eu Não Sou Cachorro Não", Paulo César de Araújo nos ensina o quanto nosso gosto musical - que enganosamente consideramos "intuitivo" e sujeito ao nosso livre arbítrio - pode ser moldado por escolhas políticas, discursos historiográficos e ideologias de críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos - e como nem sequer sonhamos com isso.

Ao analisar os cantores "bregas" que fizeram sucesso ao  longo dos anos 60, 70 e 80, Araújo nos faz refletir sobre temas muito ligados não apenas à formação cultural do nosso país, mas também às escolhas que fazemos, como sociedade democrática que sonhamos ser, dos discursos históricos que irão prevalecer para as atuais e futuras gerações.

A primeira reflexão é de como a História se transforma em histórias. Cito um breve trecho do livro:    

"Como enfatiza o sociólogo francês Michael Pollak, a História está se transformando em histórias - plurais e diferenciadas - até mesmo sob o aspecto da cronologia. O autor destaca que trabalhos de história oral na Alemanha têm apontado que cortes políticos consagrados pela historiografia tradicional, como a tomada do poder pelo Terceiro Reich em 1933, ou a criação da República Federal Alemã em 1949, não tinham sido vividos como tão marcantes pelos segmentos populares daquele país. Nas histórias individuais do povo alemão aparecem com muito mais destaque as datas de 1935 - quando pela primeira vez se assistiu à estabilização do emprego e da renda familiar - , e 1948 - ano da reforma monetária. (...) Portanto, afirma Pollak, devemos estar atentos à existência de histórias plurais, de cronologias plurais em função de uma vivência diferenciado das realidades. (53) Isto ajuda a explicar, no caso brasileiro, a pouca identificação dessa geração de cantores românticos com os acontecimentos políticos de 1968. É possível até dizer que eles assistiram à decretação do AI-5 também "bestializados”, sem compreender o seu significado.(54) E, no entanto, mesmo estando "desligados" da questão política - que é uma das esferas, entre tantas outras, da vida cotidiana - , a produção musical desses artistas vai denunciar o autoritarismo vivenciado pelos segmentos populares em nosso país."

O debate História x ficção (e será mesmo uma oposição necessária?) assombra historiadores e cientistas políticos, mas passa ao largo dos nossos estudantes secundaristas de história, que apenas querem decorar os fatos dos livros didáticos de História para tirarem uma boa nota no vestibular. Mas qual será o discurso histórico que permanecerá neste jovem estudante depois que ele se formar - e de que modo este discurso pouco pluralista (e excludente de diversos aspectos culturais importantes da nossa formação cultural) iá influenciar nas decisões políticas, sociais e mesmo culturais que estes jovens tomarão como futuros advogados, engenheiros, arquitetos, economistas, políticos, professores, gestores públicos? Não seria mais produtivo, desde o início da nossa formação, sabermos que existe uma pluralidade de discursos históricos - abrindo ao arbítrio de cada um a possibilidade de descobrir o seu próprio discurso histórico?

Outra reflexão importante levantada pelo autor é a construção da memória individual através da elaboração da memória coletiva - e o papel dos "enquadradores" nesta construção. Cito novamente um breve trecho do livro:

"Em estudo clássico sobre a memória, o francês Maurice Halbwachs destaca a relação direta existente entre as recordações de cada pessoa e as experiências vividas no grupo social, desenvolvendo um conceito de memória que, para além do fenômeno individual e psicológico, a privilegia como um fenômeno coletivo e social. "Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, na realidade, nunca estamos sós." (571) Isto significa que as recordações de cada indivíduo dependem de seu relacionamento com a classe social, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a este indivíduo. É o universo no qual nós estamos inseridos que determina o desempenho da nossa memória e fornece as categorias com as quais cada um de nós elabora o seu pensamento. E é esta comunhão de valores que compartilhamos com os membros do grupo social e o entendimento comum dos símbolos e dos significados que definem o caráter social das memórias individuais. Portanto, se evocamos determinadas canções - e esquecemos outras - , é porque o nosso grupo social, a situação presente, nos fazem recordar ou esquecer.

Le Goff destaca que a memória coletiva não é somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder, configurando-se um dos mais sólidos alicerces da dominação Da mesma forma que os fatos são conservados e comemorados, diz o autor, "os esquecimentos e os silêncios da História são reveladores deste mecanismo de manipulação da memória coletiva". (573) Assim, o ato de esquecer não está relacionado apenas ao aspecto voluntário, estratégico e harmônico; pode ser também fruto de conflitos e divergências, de manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados, ou de vencedores frente a vencidos. 

No campo específico da música popular brasileira - tema deste livro - a memória é também um objeto de disputa e da mesma forma apresenta os seus "enquadradores" (críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos). Trata-se então de analisar agora que grupos sociais eles representam e de que critérios se valem para determinar quais as canções ou compositores que devem ser esquecidos ou preservados na memória nacional."

Se a memória coletiva - parte estruturante da memória individual - é objeto de disputa e construída, de maneira estruturante por críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos, a importância destes profissionais aumenta e cresce em grandeza. O debate sobre a formação destes profissionais é fundamental - muito embora apenas recentemente a profissão de historiador tenha sido regulamentada. Ademais, os financiamentos públicos para obras do tipo "enciclopédicas" precisa ser cuidadosamente analisado, principalmente sob a luz da pluralidade de discursos necessária para que não tenhamos uma memória coletiva extremamente seletiva *(creio ser impossível não ser seletiva)* e excludente. E isso também é um exercício de democracia. 

Por fim, a discussão sobre tradição e modernidade. Ótimo debate trazido por Araújo para nos ajudar a entender porque conseguimos identificar facilmente certos cantores nacionais enquanto os outros são esquecidos - ou nem mesmo considerados em coletâneas e arquivos públicos de instituições como o Museu da Imagem e do Som (MIS):

"Enquanto isso, toda uma outra vasta produção musical popular que não está identificada nem à "tradição" nem à "modernidade" encontra serias dificuldades para obter reconhecimento da crítica ou espaço na historiografia. (590) E é o que acontece com esta geração de cantores/compositores considerados "cafonas". Afinal, nomes como Waldik Soriano, Nelson Ned ou Agnaldo Timóteo estão muito longe de qualquer coisa do que se considera de "raiz" e "tradição" ou "modernidade" e "evolução". Ao contrário, são geralmente associados a "atraso", "subdesenvolvimento" e "pobreza". Na visão positivista de "linha evolutiva da música popular", estes artistas estariam muitos rolos atrás daqueles identificados à "modernidade".  Portanto, fora da "tradição" ou da "modernidade", não há salvação. Compreende-se assim porque esta geração de cantores/compositores tem sido relegada na maioria das "memórias enquadradas" da nossa música popular e não tenha tido - até agora nenhuma voz na historiografia.

E nisto reside todo o mistério do "brega” ou "cafona": recebem estes adjetivos aqueles artistas e aquela produção musical que o público de classe média não identifica, ou encontra dificuldade de identificar, à "tradição" ou à "modernidade". Quanto mais longe dessas duas vertentes, mais perto do "brega", e vice-versa. Creio que esta explicação acaba de uma vez por todas com aquela máxima de que brega é uma coisa que todo mundo reconhece quando ouve mas não sabe definir o que é. Até porque, algumas tentativas de definição não me pareceram muito satisfatórios. 

(...)

O cantor ou compositor deste país que não tiver a sua obra musical identificada à "tradição" ou à "modernidade" está condenado ao desprezo da crítica e ao esquecimento por parte dos "enquadradores" da memória da nossa música popular. E é o que acontece hoje com artistas como Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Waldik Soriano, Odair José e vários outros que não se enquadram em nenhuma daquelas duas vertentes - vão todos para o ralo comum do "brega" ou do "cafona". Mas de que maneira esta geração de cantores/compositores analisa este fato? "Não existe música brega; o que existe são analistas preconceituosos", define Agnaldo Timóteo."

A proposta trazida pelo autor de Eu Não Sou Cachorro Não para explicar o limbo em que se encontram autores como Waldick Soriano, Agnaldo timóteo, Nelson Ned, Luiz Ayrão é uma ótima tese e nos faz pensar se também não fazemos com autores contemporâneos um exercício de seletividade semelhante. Vamos fazer um rápido exercício de memória:

"Era só mais um Silva
Que a estrela não brilha 
Ele era funkeiro mas era pai de família
É só mais um Silva
Que a estrela não brilha 
Ele era funkeiro mas era pai de família

Logo nas primeiras palavras você identificou que se trata do Rap do Silva, composto e gravado há quase 20 anos atrás pelo Mc Marcinho. Relegado ao gueto do funk à época do seu lançamento, as produções musicais do tipo "charme" e "funk melódico" ganharam recentemente um enorme espaço nas festas, casamentos, aniversários e boates, superando a seletividade do mundo funk ao qual foi confinada à época do seu lançamento. Mas e se o trecho de música fosse esse aqui:

"Em meio aos holofortes vai assistir eu dançar e beber
Todos me olham sem eu perceber
Dona da noite sou eu, deu pra ver

E no meu camarote é assim
A mídia e o Ibope focados em mim
São vários celulares virados pra cá
E eu vou descendo na intenção de provocar

Desço com o copo na mão, assediada
Uma selfie no Instagram, tô estourada
As inimigas ficam pra morrer
Quando me ver descer, descer, descer"

Aí você não faz a menor ideia, né? Bem, eu também não fazia. É uma letra da Mc Marcelly, atualmente restrita ao nicho do funk, mas já considerado por alguns como representante de uma nova vertente de autoras femininas que produzem letras voltadas para a autonomia e empoderamento femininos - com o vocabulário típico do "funk batidão", é claro. Em quais festas, casamentos, aniversários e boates as músicas da Mc Marcelly tocarão - agora ou daqui a alguns anos? E quais "enquadradores" irão se lembrar dela no momento de compor a historiografia da música brasileira, no futuro?

O exercício de reflexão - pessoal, ams também como sociedade democrática que desejamos ser - é muito importante, e sem sombra de dúvida o maior mérito da obra de Araújo é o de nos mostrar que democracia não se constrói só com leis, instituições e articulações políticas, mas também nos aspectos culturais mais cotidianos e na construção dos discursos históricos que passaremos para as futuras gerações.

Talvez seja uma questão de tempo. Como bem o disseram Agnaldo Timóteo e Luiz Ayrão: o reconhecimento de uma obra artística encontra certa base no processo social; a avaliação da obra de um compositor de música popular no Brasil pode mudar e tem mudado com o tempo. Mas o tempo, por si só, não fará muito se não fizermos o esforço - individual e coletivo - de repensarmos aspectos importantes da nossa cultura, da nossa história e até mesmo do que queremos ser como democracia. Não somos cachorro não: somos uma jovem democracia, buscando ser cada vez mais democrática e inclusiva.

Memórias Subterrâneas



Existe um ditado popular que diz: “Enquanto a história da caça ao leão for contada pelos caçadores, os leões serão sempre os perdedores”. A leitura do livro “Eu não sou cachorro, não” de Paulo Cesar Araújo basicamente nos mostra isso ao trazer à tona a trajetória da música popular romântica considerada “brega”. Essa análise é feita no período de 1968 a 1978 juntamente com a MPB, vertentes musicais que predominavam nessa época. A MPB que, embora seja considerada a música de Brasil como um todo, na verdade trata-se de uma produção musical urbana surgida no eixo Rio - São Paulo na década de 60, feita principalmente por e para uma elite branca universitária. Enquanto a música considerada cafona era a música que tinha origem popular, mas que era rejeitada por essa mesma elite. A obra investiga o percurso dos dois gêneros na época da ditadura, período extremista, dominado pelo radicalismo, intolerância, patrulha ideológica, violência e pela a repressão política que caminhava junto com repressão moral.
Os artistas que produziam essa música popular romântica considerada cafona ficaram estigmatizados como artistas que produziam uma música inferior além de serem alienados, conformistas e procurarem apenas o sucesso comercial. A maioria das músicas compostas por esses artistas considerados brega foram produzidas por indivíduos de origem humilde. Muitos passaram fome na infância e tiveram que trabalhar desde cedo. Enquanto a classe média lutava contra a ditadura, esses músicos estavam trabalhando buscando garantir o sustento diário.  A verdade é que no fundo, a ditadura afetou principalmente a classe média e a classe intelectualizada. A repressão e a supressão de direitos que essa parcela da sociedade sofreu nessas décadas sempre foi algo comum no cotidiano das classes menos favorecidas.
Assim, é inegável que havia um compromisso com o mercado e o sucesso comercial. Devido à origem social, a carreira musical era uma forma de ascender economicamente. "Em um país marcado pela desigualdade social, carência na educação e falta de oportunidades iguais para todos, a carreira musical, como também a do futebol, torna-se um dos poucos meios de ascensão social para uma legião de jovens oriundos dos baixos estratos da população. E isto se reflete no discurso e no compromisso comercial dos artistas "cafonas". Enquanto "já o discurso dos cantores da MPB é diferente. Filhos da classe média, a maioria de formação universitária, eles procuram enfatizar que estão na música por idealismo e vocação artística, não por sucesso ou riqueza. O cantor Ivan Lins, por exemplo, na fase inicial da carreira, afirmava a sua disposição de não fazer concessões à máquina de consumo. “Não estou preocupado em ganhar dinheiro, em vender disco, pois acredito muito mais na qualidade de um trabalho.” Lugar de fala de quem faz parte de uma parcela privilegiada da sociedade que nunca passou necessidade.
Ainda assim, é falácia afirmar que esses artistas não produziram música com conteúdo político. Paulo César de Araújo desconstrói essa visão e demonstra como esses artistas fizeram sim música política. Denunciavam o autoritarismo vivenciado pelos setores mais populares do Brasil. Tanto isso é verdade, que muito desses artistas sofreram censura em suas músicas, porque desagradavam os interesses e ideologias do governo ditatorial. Esses artistas falavam de tabus da sociedade como homossexualidade, prostituição, manifestação contra métodos anticoncepcionais, sobre opressores e oprimidos, desigualdade na distribuição agrária, críticas à igreja, divórcio, analfabetismo e até mesmo contra a própria ditadura (vide samba "13 anos" de Luis Ayrão, por exemplo).
                Um ponto interessante a ser observado sobre os músicos da chamada música cafona, é que, embora apenas os músicos da MPB fossem considerados artistas de prestígio, que davam status as gravadoras a agregavam a sua imagem a fama de produtoras culturais, eram os cantores populares que sustentavam esses cantores e compositores. Considerados hoje grandes artistas, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Gonzaguinha só permaneceram nas gravadoras porque os músicos de apelo mais comercial vendiam o suficiente para que esses artistas continuassem gravando. E não era por falta de vontade que esses músicos não faziam algo diferente da “faixa comercial”. Somente os cantores e compositores de "prestígio" tinham liberdade para gravarem o que quisessem, enquanto os músicos populares deveriam fazer sempre produções comerciais. Apenas mais um reflexo do abismo da desigualdade no nosso país refletido na música.
            A história é contada pelos vencedores. Ou ainda, por aqueles de detêm o poder. Se, há tantas memórias quantos grupos existem, a memória social que prevalece, a memória social que permanece visível na superfície e é mantida dessa forma é a pertencente às elites. Sem dúvida, essa memória é permeada pelos valores e conceitos dessa classe dominante. Numa sociedade preconceituosa, marcada pela desigualdade social, racista, elitista, reacionária, sempre existirá um enquadramento estéticos organizado por essa minoria baseada nos seus valores. Aquilo que não passa na peneira, não segue adiante. Assim aconteceu com a música considerada cafona. Esse estilo de música sempre foi considerado música inferior e de mau gosto. Música de origem popular. Gênero que ficou rotulada como "música de empregada". Estereótipo que muito nos revela.
            Como Paulo César Araújo bem colocou sobre as empregadas, elas foram "Sucessora das antigas mucamas - que realizavam o trabalho doméstico durante a escravidão no Brasil -, desde o fim do século XIX a empregada doméstica aluga sua força de trabalho nas casas de família de classe média, mas a categoria foi excluída dos benefícios da legislação social e trabalhista estabelecidos no governo Vargas através da CLT". Categoria profissional que  apenas em 1973 alcançou o direito de ser regida pela Consolidação das Leis Trabalhistas que já contemplavam a maioria das profissões desde maio de 1943. E mesmo assim, inacreditavelmente, apenas em 2013, a categoria alcançou a conquista de direitos básicos como: definição do limite da jornada máxima de trabalho, pagamento de hora extra, obrigatoriedade de recolhimento do FGTS, adicional noturno, seguro desemprego, dentre outras. “A marca essencial das habitações das famílias de classe média do país, o diminuto cômodo reservado às empregadas domésticas, assim como a segregação destas moças em espaços de circulação apartados daqueles dos patrões - as chamadas "área de serviço" e "elevador de serviço" denunciam por si só o alto grau de autoritarismo da nossa sociedade. Este traço peculiar da nossa arquitetura residencial contemporânea traz, a influência da antiga casa-grande, porque, no subconsciente dos patrões, a empregada doméstica "ainda é a escrava de presença desagradável" e "o seu quartinho abrindo porta para o tanque de lavagens ainda é a senzala". Logo, a música considerada “cafona” passou a ser rotulada de música de empregada, pois tamanha é a desigualdade no nosso país, que a elite responsável por esse funil cultural só tem maior contato com a música considerada “brega”, através do rádio das empregadas domésticas que trabalham em suas residências. Ainda que essa música seja ouvida por todos os setores populares e não apenas essas profissionais domésticas.
Paulo Cesar Araújo cita o conceito de Michel Pollak, sociólogo e pesquisador austríaco, sobre “enquadramento da memória”. Segundo Pollak, a luta pela construção de uma versão única e homogênea do passado levaria os setores dominantes de um grupo social a promover este trabalho de "enquadramento de memória", que é realizado parcialmente por historiadores, sociólogos, jornalistas. E é este trabalho de "enquadramento" de uma memória coletiva em um nível mais global o que permite que a história de uma determinada sociedade passe a ser frequentemente oficializada e contada a partir da perspectiva dos vencedores e líderes, deixando a memória das minorias ou vencidos relegada ao esquecimento.  
Assim, no fim dos anos 50, quando a música popular passou a ser objeto de debate e análise por parte das elites culturais - , desenvolveram-se duas principais vertentes interpretativas da nossa música: a vertente da "tradição” e a vertente da "modernidade". Dualismo que não surgiu nesta época e nem se restringe ao tema da produção musical. Desde pelo menos 1922, a tensão entre “tradicional" e "moderno" ocupa o centro do debate político-cultural no país, refletindo o dilema de uma elite em busca de sua identidade nacional.
Com base nessas duas vertentes interpretativas - a da "tradição" e a da "modernidade" - que, a partir de meados dos anos 60, o público de classe média e formação universitária passa a eleger os cantores/ compositores de sua preferência. Os agentes responsáveis pela consolidação e perpetuação desse pensamento são justamente os membros dessa mesma classe média e universitária: os críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos. São os indivíduos responsáveis por criar uma peneira, definindo o que pode ou não ser considerado e banindo aquilo que foge aos padrões estéticos. Assim, uma vasta produção musical popular que não está identificada nem à "tradição" nem à "modernidade" encontra serias dificuldades para obter reconhecimento da crítica ou espaço na historiografia. E é o que acontece com esta geração de cantores/compositores considerados "cafonas".
Embora o livro seja farto de exemplos de artista que sofreram com esse enquadramento, existe um caso emblemático que diz muito sobre o Brasil. O caso de Wilson Simonal. Como se sabe, na década de 70, Simonal estava no auge da fama.  Era milionário, morava em coberturas luxuosas, vendia discos e enchia shows em estádios. Até que descobriu ter sido vítima de um desfalque. Demitiu seu contador, Raphael Viviani, o suposto culpado. Este moveu uma ação trabalhista contra o cantor. Em agosto de 1971, Simonal recrutou dois amigos (um deles seu segurança) militares para dar “uma lição” no contador. O contador foi agredido e torturado nos porões da ditadura, até que assinasse uma confissão de desfalque. Viviani processou Simonal. O cantor foi julgado. Na coleta de depoimentos, um dos seguranças que trabalhava para Simonal o denuncia como informante do órgão. Simonal foi condenado a cinco anos e quatro meses por crime de extorsão pela mesma Justiça da ditadura de quem, supostamente, seria colaborador. O documentário “Simonal - Ninguém sabe o duro que dei” filmado em 2009, sobre a vida do cantor, entrevista o seu antigo contador, e o encontra em situação humilde num bairro do subúrbio paulistano. Existe uma hipótese de que talvez o contador nessa história fosse o menos culpado. Circula uma teoria, sem provas e nunca investigada, da jornalista Léa Penteado, publicada em seu livro “Um instante, maestro!” de que Simonal teria sido roubado pelo seu sócio, João Carlos Magaldi (que posteriormente tornou-se o poderoso diretor-geral de Comunicações da TV Globo). Na peça “S'imbora, o musical - a história de Wilson Simonal”, escrita por Nelson Motta, o lamentável episódio do contador é precedido por um desentendimento com o Boni, da TV Globo, ocasião em que Simonal o desafia exigindo um contrato mais vantajoso, caso contrário pediria rescisão do mesmo. Em parte, talvez isso explique o motivo do seu banimento da TV. Embora seja de conhecimento geral que, independente de ter sido um desafeto ou não, por ser um homem negro, Simonal não entraria na programação e se entrasse, logo seria expulso, assim como fizeram depois com Chacrinha (no caso, por sua excentricidade). A TV Globo firmava sua hegemonia e começava a adotar um padrão. “Valia-se do design limpo e pasteurizado para vender ao espectador a ideia de um país moderno, bonito, bem-sucedido e desenvolvido. A extrema pobreza e o escândalo dos baixos padrões de vida das classes populares urbanas brasileiras eram ocultados no vídeo pela imagem glamourizada e luxuosa da emissora. O padrão Globo de qualidade: tornou parâmetro de "perfeição", de "eugenia", de "limpeza de imagem" e essa imagem glamourizada, luxuosa ou na, pior das hipóteses, anti-séptica (quando é imprescindível mostrar a pobreza convém ao menos desinfetá-la: em vez de classes miseráveis, um povo 'humilde porém decente' para não chocar ninguém), contaminou a linguagem visual de todos os setores da produção cultural e artística que se propõem a atingir o grande público”.
            Provavelmente essa história nunca será passada a limpo, uma vez que os principais envolvidos atualmente estão mortos. Mas o fato é que divulgaram, sem apuração, que o Simonal era um colaborador do regime militar. Logo, o cantor não conseguiu fazer mais shows, não cantava em auditórios, suas músicas não tocavam nas rádios. A classe artística virou as costas para ele. O Pasquim, composto por Henfil, Sergio Cabral, Jaguar, Ziraldo entre outros, o esmagava impiedosamente, difamando sua imagem entre artistas e intelectuais. A grande imprensa não ficava atrás. Era considerado pela patrulha ideológica como ufanista e instrumento da ditadura. Conforme Paulo Cesar Araújo coloca: “O intrigante é que até hoje a acusação contra Simonal não foi comprovada. Ao contrário, em 1991 a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República emitiu um habeas data, um documento oficial que nega que o cantor tenha colaborado para qualquer órgão da polícia política, seja o Dops ou o Serviço Nacional de Informações – SNI”. Assim, relegado ao ostracismo, Simonal viveu mais de 30 anos de exílio no Brasil. No documentário “Simonal - Ninguém sabe o duro que dei”, Ziraldo, membro do Pasquim, admite que “O êxito de um crioulo, nesse nível, naquelas circunstâncias, também incomodava um pouco”, “Ele fazia um sucesso tão grande! Uma pessoa tão carismática! Ele era um talento tão gigantesco, que ele achou que era o rei da cocada preta”, “Aquela coisa do lutador de capoeira, quer dizer, eu não queria dar pernada no cara, mas ele se plantou pra mim, sentei-lhe a perna na cara”. Como se sabe, Ziraldo é autor da brilhante frase "Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo". Certamente foi uma pernada desprovida de raiva. Em determinado momento do documentário, Jaguar comenta sobre a morte de Simonal, diz (entre risadas) “Ele morreu de cirrose, poderia ter sido eu, mas em suma, sem rancor, sem rancores, entende? Eu não acho que há motivo nenhum de ficar alimentando um negócio que foi feito numa época de radicalização...”. Talvez diga isso porque em 2008 a partir da Comissão de Anistia, foi pago R$ 1.000.253,24 a Ziraldo e R$ 1.027.383,29 a Jaguar, além do direito a uma pensão mensal permanente de R$ 4.375,88, por terem sido perseguidos pelo regime militar devido a sua atuação no Pasquim. A verdade é que Simonal era muito talentoso e aproveitou o máximo possível sua conquista. Mas suas atitudes incomodavam. Um país racista como o Brasil nunca aceitaria ter um ídolo negro. Não um que “não soubesse ficar no seu lugar”.
Infelizmente, casos como o de Wilson Simonal acontecem o tempo todo. “A cultura negra é extremamente popular, mas as pessoas negras não”. Existe uma indústria cultural que ganha muito dinheiro em cima disso através do mecanismo da apropriação cultural, da assimilação de uma cultura por outra cultura dominante - no intuito de excluir mesmo. Talvez, apenas uma outra faceta do “enquadramento da memória”. A grande questão é que a indústria de entretenimento vende um artista branco muito mais fácil do que um artista negro. Elvis Presley é um exemplo clássico disso, embora seu talento seja inegável, ele era uma alternativa branca ao real pioneiro do estilo do rock, Chuck Berry. E assim como o “brega”, temos o funk, o rap, o jongo, isso pra não falar das outras manifestações culturais produzidas fora da região sudeste do país que fogem a esse enquadramento.            Hoje em dia, sabe-se que os antigos navios que traziam homens escravizados da África para o Brasil possuíam nomes como: Boa Esperança, Boa Intenção, Caridade, Feliz Destino, dentre outros. Segundo a lógica dos donos desses navios, o traficante estava “salvando” esses homens e mulheres na certeza que “seria melhor para eles” sair de uma terra pagã e conhecer o reino de Deus. A verdade é que, enquanto os oprimidos não contarem a própria história, enquanto não houver alguém que traga a tona as memórias submersas soterradas pela memória oficial, o tal do dia que já vem vindo, o tal dia da volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar não está nem perto de chegar.




quarta-feira, 29 de julho de 2015

Uma ponte para Romero Britto



1
Instado a ler o livro “Eu não sou cachorro, não”, do Paulo César de Araújo, fiz um muxoxo. Embora tenha aceitado a leitura devido à força da indicação (o amigo João Daniel, que coordena nosso grupo de estudos), tive a impressão de que o livro não me interessaria.

2
O foco principal do livro é a questão da música ‘brega’ na ditadura militar. É sobre como esse tipo de música, tradicionalmente associado à adesão aos militares, é também repleta de contestação às opressões do regime e também a todas a outras que sempre existiram no Brasil independentemente do regime político em que se esteja. E também sobre como esse tipo de música, ‘brega’ ou ‘cafona’, permaneceu e permanece à margem da historiografia e dos estudos sociais. Estamos falando de cantores como Odair José, Nelson Ned, Wando, Dom & Ravel, entre outros.

3
Muitos deles eu não conhecia. A maioria, para falar a verdade. Isso tem a ver com uma questão etária. Tem a ver também com o fato de eu não ‘apreciar esteticamente’ a música dita ‘brega’ ou ‘cafona’. Mas a experiência de ler o livro foi maravilhosa, justamente porque ele aborda essa temática do ‘apreciar esteticamente’ e outras igualmente importantes, em que me vi pareado em alguns conceitos com o autor do livro.

4
Certa vez, em uma plenária na minha casa disfarçada de jantar (sempre habitei um lar onde as coisas eram discutidas), foi levantada uma questão interessante sobre racismo. “Já repararam como os homens negros, assim que assumem posições de sucesso/prestígio, sempre escolhem mulheres brancas, em geral louras, para se relacionar?”. Houve gente que viu racismo na pergunta: “Isso não faz sentido. Quer dizer que só por que o cara é negro ele é obrigado a se relacionar com uma mulher negra? Claro que não, cada um tem a liberdade de escolher a pessoa que vai se relacionar.” Quando fui chamado a opinar sobre a questão, uma vez que as opiniões se dividiam (dois para um lado, dois para outro), argumentei que, sim, cada um é livre para escolher quem quiser. Só que quando todo um grupo escolhe a mesma coisa, trata-se de um fenômeno, e deve ser tratado como tal. Esse fenômeno transcende, em muito, a opção estética de cada um, ainda que, individualmente, cada um se reporte à sua própria escolha, ao seu próprio gosto. Nesse sentido, é importante perceber que os gostos das pessoas não são fruto de uma questão estética normal (no sentido de normalmente distribuída), mas sim, que existem vieses, que existem outras coisas que atuam na forma como escolhemos as coisas, como julgamos o que é belo e o que é feio.

5
O livro aponta que, na época da ditadura civil-militar, tão importante quanto a censura dos órgãos oficiais era a patrulha ideológica da oposição. Portanto, o público universitário de classe média e de esquerda se unia em torno dos mesmos ícones culturais, das mesmas causas e dos mesmos ódios. Tão cool quanto gostar de Caetano Veloso e de Chico Buarque era odiar Odair José. Os censurados, por sua vez, também censuravam. O sonho do oprimido de se tornar opressor se manifestava, de forma inconsciente, nesses ódios de unanimidade.

6
Isto posto, minha manifestação por Caetano Veloso aumenta cada dia mais. Descobri, através do livro, que num festival de música nos anos 1970, a Phono 73, ele chamou Odair José para subir ao palco com ele e cantar junto. Odair foi vaiado, Caetano vaiou a vaia, dizendo que eles não gostavam de Odair José porque ele era popular, e que essa vaia se tratava, ainda, de casa-grande e senzala.

7
É importante ressaltar que a intelectualidade ainda não conseguiu se livrar desse estigma da patrulha ideológica e do ódio em coro. Dia desses, falei com uma amiga que eu achava que Los Hermanos escrevia letras melhor do que Chico Buarque. Meu comentário não foi levado muito a sério. Afinal de contas, Chico Buarque está sempre num platô de superioridade, ícone dos ícones, mago dos magos. O que, afinal de contas, poderia ser melhor do que Chico Buarque?

8
Uma vez tive uma conversa com uma outra amiga, sobre o filme “Tropa de Elite”. Argumentei que eu detestava o filme, achava um horror, produtor de violência e incitador de ódios. Ela me venceu pelos meus próprios argumentos. Na verdade, o que ela conseguiu me mostrar, é que eu também tenho os meus próprios vieses e que não gostar do filme significa uma vinculação ideológica a uma suposta intelectualidade de esquerda que o rechaça. Consigo tirar algumas lições desse episódio. A primeira é que não posso me forçar a gostar do filme. É importante se respeitar nesse sentido. Uma outra lição é a de não se posicionar a favor da censura. A liberdade tem que servir mesmo pr’aquilo que a gente não gosta. Afinal, se o filme não traz incitação direta ao ódio (e eis aqui um ponto que me eximirei de discutir), e se muita gente curte aquilo porque comunica algo, porque traduz seus sentimentos ou porque é apenas a opção estética deles, é importante que ele esteja lá, que ele possa ser apreciado, ser assistido. Por último, é legal entender que nossas falas têm um lugar: social, geográfico, histórico, e que os nossos gostos estão diretamente vinculados a esses lugares, e nem de longe possuem qualquer caráter universalizante.

9
É importante marcar essa universalização do gosto. O que acontece na música ‘cafona’, acontece em diversas outras esferas da cultura. Não é só Fagner que não pode. A intelectualidade brasileira tem uma longa lista de proibições na seara da cultura: música sertaneja, funk, Paulo Coelho, Romero Britto, etc.

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Acho o caso do Romero Britto particularmente emblemático. Sempre que saio em defesa de Romero Britto sinto os olhares lancinantes de quase todos os amigos por cima dos meus ombros. É a patrulha ideológica, que está longe de acabar.

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Romero Britto é um artista brasileiro que ousou romper com a cadeia de arte tal como ela é: artistas que fazem suas obras de arte e as expõem em pequenas galerias para o deleite de uma elite intelectual. Quando alcançam a fama, alguns de seus quadros saem em turnê internacional por pequenas galerias e museus de outros países, para o deleite das elites intelectuais do lado de lá (‘miséria é miséria em qualquer parte, riquezas são diferentes’). Só que por algum motivo, o artista Romero Britto caiu nas graças do público. Seja por marketing do próprio artista, seja porque a padronagem de cores vibrantes utilizadas nas suas obras de arte tenha provocado identificação no público, o fato é que Romero Britto atinge grossas camadas populacionais, como nenhum outro artista plástico brasileiro vivo, quiçá morto. O grande pecado de Romero Britto, para a crítica, é que seu público é verdadeiramente popular. Nisso eu não acho que seja um problema exclusivo do Brasil, como também não o são muitos dos problemas que temos discutido por aqui, mas ser verdadeiramente popular, isto é, cair nas graças do povo, parece ser um atestado de ruindade, um carimbo de que aquela estética não serve, de que está errada. Toda arte verdadeiramente popular é logo tachada de kitsch, de cafona. Imaginem vocês que Romero Britto, com as suas mesmas obras de arte, fosse um artista obscuro que morasse no Cosme Velho. Se ele expusesse os seus mesmos quadros no Parque Lage, ou em uma galeria de arte na Gávea, não tenho dúvida de que os críticos de arte iriam discorrer, em longas linhas, sobre como Romero Britto constrói uma visão contemporânea da realidade ao unir elementos dissonantes em uma mesma tela, e sobre como as cores vibrantes escolhidas pelo artista, à semelhança de Andy Warhol, não deixam de refletir uma espécie de êxtase incontido que tem sido muito presente na geração de artistas brasileiros que despontaram no final do século passado.

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Com o funk, acontece um fenômeno parecido. Embora uma parte da intelectualidade já tenha sido convencida de que o funk é uma coisa legal, existe uma parte da intelectualidade que ainda considera o funk uma sub-cultura ou uma sub-música. Diferentemente de Romero Britto, no funk não tem coro de ódio. Existe atualmente uma disputa em curso na intelectualidade para saber se o funk é legal ou não. Parece que, cada vez mais, o funk é legal, cool, bacana. Mas a patrulha ainda não deu o seu veredicto.

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Prova disso é que Valesca Popozuda (diva!) tem sido reverenciada não apenas pelo público, mas também pela crítica. Muitas pessoas já se reportam à Valesca como feminista e como líder do empoderamento feminino através do funk. Só de alguém utilizar, em algum momento, o termo ‘empoderamento feminino através do funk’, já significa que a intelectualidade olhou para ela e aprovou alguma parte de seu comportamento/música.

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A música sertaneja, talvez herdeira direta do que se entende por música ‘cafona’ está mais para Romero Britto do que para o funk. É aceita e admirada por uma enormidade de pessoas, mas a crítica os colocou na categoria de ‘música ruim’. Esse descompasso explica que um jovem cantor sertanejo goiano, Cristiano Araújo, tenha morrido e que muitas pessoas da classe média universitária intelectualizada de esquerda do sudeste não soubessem quem ele era.

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Esse descompasso entre e intelectualidade de esquerda e os grandes contingentes populacionais não está apenas na área da cultura. Pelo contrário, esse fenômeno se alastra para diversos outros segmentos. No Rio de Janeiro, existe uma elite intelectualizada de esquerda. O cidadão típico desse segmento (no qual me inlcuo por assimilação, embora não preencha todos os estereótipos) vota no PSOL e às vezes milita no partido, mora no feudo Zona Sul, é vegetariano, fuma maconha, tem entre 18 e 35 anos, frequenta a praça São Salvador e gosta de manifestações artísticas ‘alternativas’ (é pena que a palavra ‘alternativo’ tenha caído em desuso, porque ela abarcava tanta coisa... a palavra que veio depois ‘indie’ e a da vez, ‘hipster’, nem de longe dão conta da riqueza de significados de ‘alternativo’). Só que essa intelectualidade de esquerda, que tem seu ícone em Gregório Duvivier e que a direita assombrada insiste em chamar de esquerda-caviar, está muito longe das pessoas que compõem a maioria da população. Ainda que o PSOL, em particular, faça um esforço no sentido de angariar militância em outros pontos da cidade do Rio (e falo do Rio de Janeiro porque não sei como essas coisas se processam em outros lugares), a verdade é que existe uma distância entre esses lugares: novamente, geográficos, sociais, históricos, que parece impedir a construção de um discurso comum e unificado de esquerda, e faz com que as votações do PSOL, embora crescentes, ainda estejam muito restritas ao feudo Zona Sul.

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Se você não lê o livro que o outro lê, se não escuta a música que o outro ouve, se você não está perto do outro, como querer construir com esse outro um projeto político comum? Como ousar dizer que você pretende representar esse outro se você, de fato, não o conhece?

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A uniformização do pensamento da intelectualidade é tão poderoso que nos engendra ideias sumariamente falsas. Tornou-se ponto pacífico a ideia de que a homossexualidade é uma questão de nascença, que ninguém escolhe ser gay. Esse discurso, capitaneado pela Lady Gaga nos EUA, através da difusão massiva do seu CD ‘Born this way’ é muito meritoso. Ainda que diversas outras personalidades sejam relevantes para esta questão, acredito que a Lady Gaga teve um papel importantíssimo e preponderante na difusão dessa ideia. Suponho que isso tenha funcionado de maneira jesuítica. Os catequizados foram os filhos, que se encarregaram de transmitir a boa-nova aos seus pais. Quando digo que acho que esse discurso é meritoso, é porque não tenho dúvida de que ele serviu, em muito, para virar o jogo da opinião pública dos EUA quanto ao casamento gay por lá. Ora, se ser gay é uma coisa que nasce com o indivíduo, então, para os mais conservadores, isso soa como ‘um defeito congênito’, algo que se deve aceitar, algo de que o indivíduo não tem culpa. Ora se não escolheu ser gay, ele jamais pode ser acusado de má-fé, ele não tem culpa, coitado. Ele nasceu assim, é um defeito. Isso é extremamente tranquilizador para quem é conservador. Assim, esse indivíduo poder aceitar o seu filho gay, o seu sobrinho gay, o seu colega de trabalho gay. Só que a homossexualidade, e a sexualidade de forma geral, estão a léguas de distância de ser essa coisa preto-no-branco.  Então, por mais que seja um discurso tranquilizador, é um discurso falso. Eu, na condição de gay, aprendi com o tempo a ir aceitando essa ideia de que se trata mesmo de uma ‘condição’. Mas a verdade é que não sei precisar (e nem preciso, e nem quero) se isso foi uma coisa inteirinha que estava lá quando eu nasci. No meu processo de construção de identidade, que ainda está em curso, em algum momento, me vi gay. E tudo bem.

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A pergunta que fica, portanto, é: o que vale mais a pena? Um discurso tranquilizador que garanta a dignidade e os direitos humanos, embora mentiroso, ou um discurso verdadeiro, que pode ser mal interpretado, acusado de relativista por todos os lados e que não contribui para a construção de condições mais justas e igualitárias de vida para todos? Essa é uma pergunta bastante difícil, mas parece que fico com a primeira opção. Lembro-me um pouco do discurso da Dilma Rousseff na Comissão Nacional da Verdade, dizendo que mentiu aos seus algozes na ditadura; parece ter sido uma boa opção.

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Admitindo essa dobra do discurso, podemos chegar à conclusão de que os estudos racialistas do início do século XX, que comparavam as características dos povos em virtude de suas medidas anatômicas poderiam não estar de todo errados. Pode ser mesmo que haja diferenças estruturais entre caucasianos e negros, índios, judeus, etc, quando considerados como grupos étnicos. Por exemplo: até hoje a medicina se baseia em estudos de etnicidade para dizer que determinados grupos étnicos têm mais propensão a esta ou àquela doença. Esse é a utilização útil do conhecimento.

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Ocorre que na mesma perspectiva racialista, muito desse conhecimento foi utilizado como esteio científico para os desmandos dos regimes nazi-fascistas na primeira metade do século passado, sob a justificativa de que algumas raças sejam superiores a outras.

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Tenho consciência de que estou entrando em uma seara muito perigosa e cheia de tabus, mas acho importante continuar a falar disso. Porque creio que esse tenha sido, e talvez ainda seja, o lado bom da patrulha ideológica. Nesse sentido, ainda que vivamos sob a égide da liberdade, é importante que alguém seja proibido de fazer um estudo científico sobre se negros fedem mais do que brancos, se índios têm tendência à preguiça, etc. Esses estudos, ainda que realizados de forma séria, e independente do resultado que produzam serão rechaçados pela comunidade científica, uma vez que seus resultados contribuirão de maneira destrutiva para reforçar relações de opressão. Essa rejeição, no meu entender, deve ser feita mesmo que os propósitos e objetivos apresentados pelo estudo tragam benefícios (sobre as informações de saúde, por exemplo). Nesse caso, é melhor perder os benefícios científicos do que arcar com os custos sociais.

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Esses exemplos mostram como a patrulha ideológica é, ora nociva, ao impedir a apreciação das manifestações populares pelas elites e impedir a aproximação dessas elites de tudo aquilo que é popular, ora necessária, ao criar novos enredos ou desconstruir paradigmas, no sentido de incrementar as possibilidades de convivência entre as pessoas e de garantir a perenidade dos direitos humanos.

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É interessante também observar que a unidade de discurso deste lado da intelectualidade-esquerda é particularmente necessária quando existe um discurso coeso e unido do lado das forças conservadoras. A esquerda que se perde nas próprias desavenças, e que se estilhaça em uma miríade de siglas partidárias não cria um projeto novo, não avança, não constrói, e fica refém das forças do outro lado do espectro político.

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Ainda neste aspecto, em relação ao jogo de forças da política, e em relação à capacidade de diálogo entre a esquerda, a direita, o centro, as elites, as periferias, a música sertaneja, a MPB, o funk, o Chico Buarque, o Romero Britto, a Valesca Popozuda e o Caetano Veloso, é importante ter em mente o que disse certa vez Jean Wyllys, de que é preciso não destruir as pontes.

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Muitos dos lugares dos quais falei: mais uma vez, geográficos, históricos e sociais, são ligados por pontes de diálogo, que são frágeis, quebradiças e estão sempre à espera de um sopro para que desmoronem.

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O livro do Paulo César de Araújo, “Eu não sou cachorro, não”, acaba por funcionar como um elemento que constrói algumas dessas pontes e apresenta um esforço heroico de manutenção de algumas delas, já bem corroídas e desgastadas pelo tempo.

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Paulo César de Araújo, cuja leitura chegou até mim, que não sou admirador de música ‘cafona’ tampouco me interesso de maneira efusiva pela ditadura civil-militar, mostra que a construção dessas pontes, além de necessária, pode chegar a lugares impensados. O mesmo acontece com a Valesca Popozuda que, contrariando as expectativas iniciais, se converteu numa figura icônica que tem ampla escuta no discurso que profere, muitas vezes chegando até as pessoas que dizem não gostar de funk.

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É claro que, às vezes, desanimamos, achamos que não há pontes, que nenhum diálogo pode ser estabelecido.

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Como falar sobre auditoria cidadã da dívida quando as pessoas amarram seus semelhantes num poste e o achincalham e o espancam até a morte?

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Dê-se sempre o direito, e também impinja-se o dever, de pensar como quem está do outro lado. Será que amarrar uma pessoa no poste é tão diferente de destruir a vida de uma torcedora que cometeu um ato racista num estádio de futebol? Do lado de cá dirão: “que absurdo, ele pode ser recuperar, ele fez apenas um pequeno ato errado”. Do lado de lá dirão: “que absurdo, ela pode se recuperar, ela fez apenas um pequeno ato errado”. Do lado de cá, quanto à torcedora, uns ainda podem argumentar: “ela teve a vida destruída pra que fique de uma vez por todas claro que racismo é um absurdo. Racistas não passarão!” Do lado de lá, quanto à pessoa amarrada no poste, eles dirão: “Ele foi amarrado no poste pra todo mundo ver que é um absurdo ser bandido. Bandido bom é bandido morto!” Esse pequeno exemplo serve para mostrar que nossas verdades não são universais nem universalizantes. É preciso, mais uma vez, não destruir as pontes com o outro lado, que tem as suas próprias verdades, os seus próprios códigos, e que nos julgam da mesma forma que os julgamos.

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Esse não é um texto fácil. Além de longo, ele mexe com uma série de tabus e construções aos quais estamos muito arraigados, de forma que mexer nesse emaranhado pode ser bastante desconfortável. Aos que conseguiram ler até aqui, espero ter, de alguma forma, torcido as ideias de vocês. Torcer as ideias parece uma boa forma de não distorcê-las. De minha parte, fico feliz se, de alguma forma, eu conseguir também ser ponte. Muito obrigado!

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Somos todos cachorros, sim — o ódio e a tristeza.


Acima de qualquer coisa, o livro de PCA me deu uma enorme sensação de humanidade. A humanidade do erro, da contradição, da incoerência e da desigualdade.

A obra aumenta muito o escopo do que se pretende inicialmente a avaliar — a música cafona dos anos de chumbo — para um panorama amplo do que significa ser brasileiro.

A primeira porta que, a partir dessa obra, se abriu no meu pensamento, foi a demonstração clara de que o golpe, o autoritarismo, a tortura e os abusos encontraram largo apoio popular. Não era apenas o aparelho repressor do Estado que censurava e julgava. Isto estava presente em toda a sociedade brasileira. E, ouso dizer, a imensa maioria dos cidadãos, dados a oportunidade, usaria de expedientes semelhantes — como o cemitério dos mortos-vivos do Henfil, guardadas as devidas proporções. A sequência de “pichações”, passagem em que PCA relata mais ou menos que todo mundo falava mal de todo mundo — menos de quem empunhava o porrete — mostra uma agressividade muito forte de todos. Eu costumava achar que a principal razão para a aceitação da tortura atualmente, por exemplo a praticada pela polícia extraoficialmente, era o fato de não termos tido, até bem recentemente, uma mobilização de verdade e reconciliação, como aconteceu em outras ditaduras sul-americanas. Hoje percebo que me enganei parcialmente. A tortura, e sua aceitação e incentivo, não são apenas um “legado” da ditadura; é um fruto brasileiro, um produto da nossa sociedade. E, acrescento, infelizmente, não é um filho só da nossa terra, mas de muitas outras.

Pensando um pouco no que aprendi na escola — última vez que estudei história sistematicamente antes do GEB —, não me lembro de ter lido sobre esse entusiasmo em relação ao Garrastazu. Sempre tive a ideia, um tanto maniqueísta, portanto imatura, de que todos se sentiam reprimidos com a censura, os desaparecimentos e mortes. Sempre ouvi muito Chico Buarque, talvez isso tenha enviesado meus conceitos. De fato, um regime se sustentar por tanto tempo sem grande apoio popular e dos poderosos seria estranho, especialmente se considerarmos que a ditadura brasileira não teve culto à personalidade, e que, curiosamente, os presidentes militares tinham mandatos pré-determinados.

O livro abriu também meus olhos para outra questão. Quando relata que os cafonas abasteciam de dinheiro as gravadoras para que estas pudessem dar liberdade aos MPB, desvela-se mais um dos incontáveis mecanismos concentradores de renda. O pobre compra disco do Odair José. Ele recebe uma pequena parte dessa grana, porque autor em geral não ganha muito mesmo, a gravadora retém a maior parte. Dessa parte da gravadora sai a tranquilidade para Caetano gravar o que quiser como quiser. O dinheiro sai do pobre e vai para o rico. O artista mais pobre, que depende mais da arte para viver, tem sua criatividade atrelada a ganhos pecuniários, e qualquer aventura fora disso é desconsiderada, como foi a ópera-rock de Odair José. Essa ópera foi como um pobre preto tentar entrar pela porta da frente. Não pode. O MPB pode fazer um disco “experimental”. Obviamente, hoje, depois da ruína das gravadoras e do mercado fonográfico em geral, o processo deve ser diferente, mas durante muito tempo foi assim.

Ele mostra ainda como a História pode ser manipulada, e é saudável desconfiar de toda unanimidade, e PCA apresenta este argumento sem citar o cliché de Nelson Rodrigues. Mostra como uma parte importantíssima da produção cultural brasileira — tão legítima quanto qualquer outra — é pura e simplesmente ignorada dos anais. É um enorme não-reconhecimento, um desmentido da vivência de milhões de brasileiros. E esta desconsideração vai além da pobreza; alguns desses cantores conseguiram sair da pobreza de onde quase todos vieram. No entanto, nem com grana conseguiram garantir seu verbete na História Oficial da música brasileira. O preconceito vai bem além da questão do dinheiro.

O momento político que vivemos também é prenhe de ódio.  Inúmeras explicações podem ser dadas para este recrudescimento, mas devemos entender que é isso, é apenas um recrudescimento, não é a invenção do ódio.  Não conseguimos criar uma sociedade significativamente menos desigual. Eu acredito que muito do ódio vem daí. É a desvalorização do “cantor das empregadas”, essas neomucamas. O contato que a classe média tem com a pobreza é justamente o da servidão. O ódio recrudesce no momento em que alternativas são, muito timidamente, criadas à servidão.

Quanto mais avanço nas nossas leituras, mais claro fica que, como disse PCA, se é discutível que sejamos um povo triste por determinismo de raça, é inegável a presença profunda da tristeza no nosso modo de vida. Não sei fazer comparações com outros povos, nem sei falar exatamente da presença da tristeza como motor da produção cultural alhures, mas examinando o que conheço, vejo muita coisa triste. Linda e triste. Presente tanto no cafona como na MPB; na pobreza e na falta de acesso a direitos básicos e justiça.


PCA mostra que, além de esquecida e excluída dos processos decisórios, do mercado de trabalho e consumo, a massa pobre do Brasil dos anos de chumbo — e também hoje — foi ignorada nos seus gostos musicais, baladas, boleros, lamentos. Apesar desta e de inúmeras outras provas de que a História é múltipla, falível, imprecisa, contraditória, enfim, humana, podemos nos considerar, mais uma vez, privilegiados, por termos acesso a diferentes maneiras de se ver/contar uma época. 

terça-feira, 7 de julho de 2015

Instituições amolecidas ou abstratas? Por uma concepção de justiça "à brasileira"


(Metamorfose de Narciso - Salvador Dali)

"A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem intransigentemente de uma, nem de outra, mas das duas. A influência africana fervendo sobre a européia e dando um acre requeime à vida sexual, À alimentação, à religião, o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana, quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo, nas instituições e na forma de cultura, as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, À disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando sem governar; governando antes a África." (Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, p. 66)

Gilberto Freyre foi buscar na observação do Sul dos EUA as reflexões que faltavam para completar seu ensaio sobre o Brasil, o seu desejo de ser "rival" de Pedro Álvares Cabral. Ao "descobrir" o Brasil com sua obra, Freyre permitiu que muitos autores dialogassem com ela - para refutá-la, concordar com suas teses ou simplesmente admirá-la. Porém, ao fim e ao cabo, Freyre está preocupado com a formação de um povo, sua cultura e a mistura de raças que ajudou a moldar a nossa "democracia racial".

Não há nenhuma preocupação do escritor com uma postura crítica em relação à conduta do português colonizador (há até mesmo uma certa condescendência - quiçá admiração - com o senhor da Casa Grande) ou mesmo uma preocupação normativa do tipo "o que devemos fazer para nos superarmos como nação" (preocupação mais evidente de Paulo Prado). Há o intento de descrever e observar. Talvez até de contemporizar, de modo a que possamos "perdoar" nossos antepassados e aceitar melhor a tumultuosa formação do nosso país - como defende Fernando Henrique no seu prefácio à 51ª edição. Mas não há um projeto de nação por trás.

Nem a compreensão da construção das instituições que poderiam nos levar a uma sociedade mais desenvolvida e menos desigual. Mas há autores que possuem essa preocupação:

"A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento. (...) Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o bem-estar de toda a sociedade pode desconsiderar. Por isso a Justiça nega que a liberdade de alguns se justifique por um bem maior desfrutado por outros. Por conseguinte, na sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas irrevogáveis; os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo de interesses sociais. Por serem as virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça não aceitam compromissos. (...) A sociedade é bem-ordenada não somente quando foi planejada para promover o bem de seus membros, mas também quando é realmente regulada por uma concepção pública de justiça. Ou seja, é uma sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça; e (2) as instituições sociais fundamentais geralmente atendem, e em geral se sabe que atendem, a esses princípios. Nesse caso, embora seus membros possam fazer exigências mútuas excessivas, eles não obstante reconhecem uma perspectiva comum da qual suas reivindicações pode, ser julgadas. Se as inclinações dos seres humanos para o interesse próprio tornam a vigilância mútua, seu senso público de justiça lhes permite se unir em uma associação segura. Entre indivíduos com propósitos díspares, uma concepção compartilhada de justiça define os vínculos da amizade cívica; o desejo geral de justiça limita a busca de outros fins." (John Rawls, Uma Teoria da Justiça pp.4-5)

John Rawls, autor americano do século XX, é herdeiro de uma longa tradição de contratualistas que se propõem a pensar os princípios de uma sociedade justa e bem ordenada -  Platão, Aristóteles, Kant, Hobbes, Rosseuau, e, mais modernamente, Robert Nozick e Amartya Sen). Rawls não está preocupado em descrever e avaliar - sua preocupação é puramente normativa, especulando, em abstrato, quais seriam os princípios de uma justiça distributiva que uma sociedade de pessoas racionais e livres acordariam se fosse possível obter um consenso sobre os aspectos determinantes da justiça social. Essa sociedade ideal não existe - e Rawls aponta isso diversas vezes em seu livro. Mas algum nível de concepção compartilhada de justiça é necessário para se construir uma sociedade justa, e é dessa premissa que o autor parte para a proposição de princípios e instituições que comporiam esta sociedade hipotética.

Uma concepção compartilhada de justiça seria possível em uma sociedade construída com base no "amolecimento" das instituições e na atribuição - ainda que não tão rígida assim - de papéis sociais específicos para cada "raça"? Sim - e ao afirmar esta possibilidade, demarco um ato de fé de uma inocência até um pouco pueril, tal qual a de Freyre ao supor que houve uma "doce mistura das raças" na fundação do nosso país. Mas a talvez essa fé, essa "ingenuidade", por assim dizer, seja necessária para que possamos olhar para noções tão abstratas como a de "justiça distributiva" (construída por autores anglo-saxões que elaboram teorias que, de uma certa forma, espelham suas realidades sociais), e a aproximarmos de nossa sociedade como ela é - com todos os vícios e virtudes de sua formação.

Mais do que aproximar a Casa Grande da Senzala (ou mesmo de fingir que elas nunca existiram), o esforço fundamental é o de, reconhecendo a existência de ambos, acreditarmos que formamos um conjunto - cultural, artístico, linguístico, social, político, econômico -  bom o bastante para superarmos nossas diferenças e construir um conjunto de justiça compartilhada compatível com a nossa sociedade atual, do modo como ela é. Ao olhar pelo espelho, cabe a cada brasileiro não esquecer da sua origem, mas, sem abdicar dela, dar o passo seguinte em direção à construção de valores e instituições BRASILEIRAS - mais justas, menos "importadas" e mais próximas das nossa realidade. Porque enquanto continuarmos a olhar para as visões abstratas construídas por autores de outros países, sem uma visão real do que somos, só o que enxergaremos é um reflexo distorcido - no qual jamais seremos capazes de nos reconhecer.