No excelente - e saborosíssimo de se ler - livro "Eu Não Sou
Cachorro Não", Paulo César de Araújo nos ensina o quanto nosso gosto
musical - que enganosamente consideramos "intuitivo" e sujeito ao nosso
livre arbítrio - pode ser moldado por escolhas políticas, discursos
historiográficos e ideologias de críticos, pesquisadores, historiadores,
musicólogos - e como nem sequer sonhamos com isso.
Ao
analisar os cantores "bregas" que fizeram sucesso ao longo dos anos
60, 70 e 80, Araújo nos faz refletir sobre temas muito ligados não
apenas à formação cultural do nosso país, mas também às escolhas que
fazemos, como sociedade democrática que sonhamos ser, dos discursos
históricos que irão prevalecer para as atuais e futuras gerações.
A primeira reflexão é de como a História se transforma em histórias. Cito um breve trecho do livro:
"Como
enfatiza o sociólogo francês Michael Pollak, a História está se
transformando em histórias - plurais e diferenciadas - até mesmo sob o
aspecto da cronologia. O autor destaca que trabalhos de história oral na
Alemanha têm apontado que cortes políticos consagrados pela
historiografia tradicional, como a tomada do poder pelo Terceiro Reich
em
1933, ou a criação da República Federal Alemã em 1949, não tinham sido
vividos como tão marcantes pelos segmentos populares daquele país. Nas
histórias individuais do povo alemão aparecem com muito mais destaque as
datas de 1935 - quando pela primeira vez se assistiu à estabilização do
emprego e da renda familiar - , e 1948 - ano da reforma monetária. (...)
Portanto, afirma Pollak, devemos estar atentos à existência de
histórias
plurais, de cronologias plurais em função de uma vivência diferenciado
das
realidades. (53)
Isto ajuda a explicar, no caso brasileiro, a pouca identificação dessa
geração de cantores românticos com os acontecimentos políticos de 1968.
É possível até dizer que eles assistiram à decretação do AI-5 também
"bestializados”, sem compreender o seu significado.(54) E, no entanto,
mesmo estando "desligados" da questão política - que é uma das esferas,
entre tantas outras, da vida cotidiana - , a produção musical desses
artistas
vai denunciar o autoritarismo vivenciado pelos segmentos populares em
nosso país."
O debate História x ficção (e
será mesmo uma oposição necessária?) assombra historiadores e cientistas
políticos, mas passa ao largo dos nossos estudantes secundaristas de
história, que apenas querem decorar os fatos dos livros didáticos de
História para tirarem uma boa nota no vestibular. Mas qual será o
discurso histórico que permanecerá neste jovem estudante depois que ele
se formar - e de que modo este discurso pouco pluralista (e excludente
de diversos aspectos culturais importantes da nossa formação cultural)
iá influenciar nas decisões políticas, sociais e mesmo culturais que
estes jovens tomarão como futuros advogados, engenheiros, arquitetos,
economistas, políticos, professores, gestores públicos? Não seria mais
produtivo, desde o início da nossa formação, sabermos que existe uma
pluralidade de discursos históricos - abrindo ao arbítrio de cada um a
possibilidade de descobrir o seu próprio discurso histórico?
Outra
reflexão importante levantada pelo autor é a construção da memória
individual através da elaboração da memória coletiva - e o papel dos
"enquadradores" nesta construção. Cito novamente um breve trecho do
livro:
Le Goff destaca que a memória coletiva não é somente uma conquista, é
também um instrumento e um objeto de poder, configurando-se um dos
mais sólidos alicerces da dominação Da mesma forma que os fatos são
conservados e comemorados, diz o autor, "os esquecimentos e os silêncios
da História são reveladores deste mecanismo de manipulação da memória
coletiva". (573) Assim, o ato de esquecer não está relacionado apenas ao
aspecto voluntário, estratégico e harmônico; pode ser também fruto de
conflitos e divergências, de manipulação exercida por grupos dominantes
sobre dominados, ou de vencedores frente a vencidos.
No campo específico da música popular brasileira - tema deste livro - a
memória é também um objeto de disputa e da mesma forma apresenta os
seus "enquadradores" (críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos).
Trata-se então de analisar agora que grupos sociais eles representam e de
que critérios se valem para determinar quais as canções ou compositores
que devem ser esquecidos ou preservados na memória nacional."
Se
a memória coletiva - parte estruturante da memória individual - é
objeto de disputa e construída, de maneira estruturante por críticos,
pesquisadores, historiadores, musicólogos, a importância destes
profissionais aumenta e cresce em grandeza. O debate sobre a formação destes profissionais é fundamental - muito embora apenas recentemente a
profissão de historiador tenha sido regulamentada. Ademais, os
financiamentos públicos para obras do tipo "enciclopédicas" precisa ser
cuidadosamente analisado, principalmente sob a luz da pluralidade de
discursos necessária para que não tenhamos uma memória coletiva
extremamente seletiva *(creio ser impossível não ser seletiva)* e
excludente. E isso também é um exercício de democracia.
Por
fim, a discussão sobre tradição e modernidade. Ótimo debate trazido por
Araújo para nos ajudar a entender porque conseguimos identificar
facilmente certos cantores nacionais enquanto os outros são esquecidos -
ou nem mesmo considerados em coletâneas e arquivos públicos de
instituições como o Museu da Imagem e do Som (MIS):
"Enquanto isso, toda uma outra vasta produção musical popular que não está
identificada nem à "tradição" nem à "modernidade" encontra serias
dificuldades para obter reconhecimento da crítica ou espaço na
historiografia. (590) E é o que acontece com esta geração de
cantores/compositores considerados "cafonas". Afinal, nomes como Waldik
Soriano, Nelson Ned ou Agnaldo Timóteo estão muito longe de qualquer
coisa do que se considera de "raiz" e "tradição" ou "modernidade" e
"evolução".
Ao contrário, são geralmente associados a "atraso", "subdesenvolvimento"
e "pobreza". Na visão positivista de "linha evolutiva da música popular",
estes artistas estariam muitos rolos atrás daqueles identificados à
"modernidade". Portanto, fora da "tradição" ou da "modernidade", não há
salvação. Compreende-se assim porque esta geração de
cantores/compositores tem sido relegada na maioria das "memórias
enquadradas" da nossa música popular e não tenha tido - até agora
nenhuma voz na historiografia.
E nisto reside todo o mistério do "brega” ou "cafona": recebem estes
adjetivos aqueles artistas e aquela produção musical que o público de
classe média não identifica, ou encontra dificuldade de identificar, à
"tradição" ou à "modernidade". Quanto mais longe dessas duas vertentes,
mais perto do "brega", e vice-versa.
Creio que esta explicação acaba de uma vez por todas com aquela máxima
de que brega é uma coisa que todo mundo reconhece quando ouve mas não
sabe definir o que é. Até porque, algumas tentativas de definição não me
pareceram muito satisfatórios.
(...)
O cantor ou compositor deste país que não tiver a sua obra
musical identificada à "tradição" ou à "modernidade" está condenado ao
desprezo da crítica e ao esquecimento por parte dos "enquadradores" da
memória da nossa música popular. E é o que acontece hoje com artistas
como Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Waldik Soriano, Odair José e vários
outros que não se enquadram em nenhuma daquelas duas vertentes - vão
todos para o ralo comum do "brega" ou do "cafona".
Mas de que maneira esta geração de cantores/compositores analisa este
fato? "Não existe música brega; o que existe são analistas
preconceituosos", define Agnaldo Timóteo."
A
proposta trazida pelo autor de Eu Não Sou Cachorro Não para explicar o
limbo em que se encontram autores como Waldick Soriano, Agnaldo timóteo,
Nelson Ned, Luiz Ayrão é uma ótima tese e nos faz pensar se também não
fazemos com autores contemporâneos um exercício de seletividade
semelhante. Vamos fazer um rápido exercício de memória:
"Era só mais um Silva
Que a estrela não brilha Ele era funkeiro mas era pai de família
É só mais um Silva
Que a estrela não brilha
Ele era funkeiro mas era pai de família"
Logo
nas primeiras palavras você identificou que se trata do Rap do Silva,
composto e gravado há quase 20 anos atrás pelo Mc Marcinho. Relegado ao
gueto do funk à época do seu lançamento, as produções musicais do tipo
"charme" e "funk melódico" ganharam recentemente um enorme espaço nas
festas, casamentos, aniversários e boates, superando a seletividade do
mundo funk ao qual foi confinada à época do seu lançamento. Mas e se o
trecho de música fosse esse aqui:
"Em meio aos holofortes vai assistir eu dançar e beber
Todos me olham sem eu perceberDona da noite sou eu, deu pra ver
E no meu camarote é assim
A mídia e o Ibope focados em mim
São vários celulares virados pra cá
E eu vou descendo na intenção de provocar
Desço com o copo na mão, assediada
Uma selfie no Instagram, tô estourada
As inimigas ficam pra morrer
Quando me ver descer, descer, descer"
Aí
você não faz a menor ideia, né? Bem, eu também não fazia. É uma letra
da Mc Marcelly, atualmente restrita ao nicho do funk, mas já considerado
por alguns como representante de uma nova vertente de autoras femininas
que produzem letras voltadas para a autonomia e empoderamento femininos
- com o vocabulário típico do "funk batidão", é claro. Em quais festas,
casamentos, aniversários e boates as músicas da Mc Marcelly tocarão -
agora ou daqui a alguns anos? E quais "enquadradores" irão se lembrar
dela no momento de compor a historiografia da música brasileira, no
futuro?
O exercício de reflexão - pessoal, ams
também como sociedade democrática que desejamos ser - é muito
importante, e sem sombra de dúvida o maior mérito da obra de Araújo é o
de nos mostrar que democracia não se constrói só com leis, instituições e
articulações políticas, mas também nos aspectos culturais mais
cotidianos e na construção dos discursos históricos que passaremos para
as futuras gerações.
Talvez seja uma questão de
tempo. Como bem o disseram Agnaldo Timóteo e Luiz Ayrão: o
reconhecimento de uma obra artística encontra certa base no processo
social; a avaliação da obra de um
compositor de música popular no Brasil pode mudar e tem mudado com o
tempo. Mas o tempo, por si só, não fará muito se não fizermos o esforço -
individual e coletivo - de repensarmos aspectos importantes da nossa
cultura, da nossa história e até mesmo do que queremos ser como
democracia. Não somos cachorro não: somos uma jovem democracia,
buscando ser cada vez mais democrática e inclusiva.