sexta-feira, 31 de julho de 2015

Memórias Subterrâneas



Existe um ditado popular que diz: “Enquanto a história da caça ao leão for contada pelos caçadores, os leões serão sempre os perdedores”. A leitura do livro “Eu não sou cachorro, não” de Paulo Cesar Araújo basicamente nos mostra isso ao trazer à tona a trajetória da música popular romântica considerada “brega”. Essa análise é feita no período de 1968 a 1978 juntamente com a MPB, vertentes musicais que predominavam nessa época. A MPB que, embora seja considerada a música de Brasil como um todo, na verdade trata-se de uma produção musical urbana surgida no eixo Rio - São Paulo na década de 60, feita principalmente por e para uma elite branca universitária. Enquanto a música considerada cafona era a música que tinha origem popular, mas que era rejeitada por essa mesma elite. A obra investiga o percurso dos dois gêneros na época da ditadura, período extremista, dominado pelo radicalismo, intolerância, patrulha ideológica, violência e pela a repressão política que caminhava junto com repressão moral.
Os artistas que produziam essa música popular romântica considerada cafona ficaram estigmatizados como artistas que produziam uma música inferior além de serem alienados, conformistas e procurarem apenas o sucesso comercial. A maioria das músicas compostas por esses artistas considerados brega foram produzidas por indivíduos de origem humilde. Muitos passaram fome na infância e tiveram que trabalhar desde cedo. Enquanto a classe média lutava contra a ditadura, esses músicos estavam trabalhando buscando garantir o sustento diário.  A verdade é que no fundo, a ditadura afetou principalmente a classe média e a classe intelectualizada. A repressão e a supressão de direitos que essa parcela da sociedade sofreu nessas décadas sempre foi algo comum no cotidiano das classes menos favorecidas.
Assim, é inegável que havia um compromisso com o mercado e o sucesso comercial. Devido à origem social, a carreira musical era uma forma de ascender economicamente. "Em um país marcado pela desigualdade social, carência na educação e falta de oportunidades iguais para todos, a carreira musical, como também a do futebol, torna-se um dos poucos meios de ascensão social para uma legião de jovens oriundos dos baixos estratos da população. E isto se reflete no discurso e no compromisso comercial dos artistas "cafonas". Enquanto "já o discurso dos cantores da MPB é diferente. Filhos da classe média, a maioria de formação universitária, eles procuram enfatizar que estão na música por idealismo e vocação artística, não por sucesso ou riqueza. O cantor Ivan Lins, por exemplo, na fase inicial da carreira, afirmava a sua disposição de não fazer concessões à máquina de consumo. “Não estou preocupado em ganhar dinheiro, em vender disco, pois acredito muito mais na qualidade de um trabalho.” Lugar de fala de quem faz parte de uma parcela privilegiada da sociedade que nunca passou necessidade.
Ainda assim, é falácia afirmar que esses artistas não produziram música com conteúdo político. Paulo César de Araújo desconstrói essa visão e demonstra como esses artistas fizeram sim música política. Denunciavam o autoritarismo vivenciado pelos setores mais populares do Brasil. Tanto isso é verdade, que muito desses artistas sofreram censura em suas músicas, porque desagradavam os interesses e ideologias do governo ditatorial. Esses artistas falavam de tabus da sociedade como homossexualidade, prostituição, manifestação contra métodos anticoncepcionais, sobre opressores e oprimidos, desigualdade na distribuição agrária, críticas à igreja, divórcio, analfabetismo e até mesmo contra a própria ditadura (vide samba "13 anos" de Luis Ayrão, por exemplo).
                Um ponto interessante a ser observado sobre os músicos da chamada música cafona, é que, embora apenas os músicos da MPB fossem considerados artistas de prestígio, que davam status as gravadoras a agregavam a sua imagem a fama de produtoras culturais, eram os cantores populares que sustentavam esses cantores e compositores. Considerados hoje grandes artistas, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Gonzaguinha só permaneceram nas gravadoras porque os músicos de apelo mais comercial vendiam o suficiente para que esses artistas continuassem gravando. E não era por falta de vontade que esses músicos não faziam algo diferente da “faixa comercial”. Somente os cantores e compositores de "prestígio" tinham liberdade para gravarem o que quisessem, enquanto os músicos populares deveriam fazer sempre produções comerciais. Apenas mais um reflexo do abismo da desigualdade no nosso país refletido na música.
            A história é contada pelos vencedores. Ou ainda, por aqueles de detêm o poder. Se, há tantas memórias quantos grupos existem, a memória social que prevalece, a memória social que permanece visível na superfície e é mantida dessa forma é a pertencente às elites. Sem dúvida, essa memória é permeada pelos valores e conceitos dessa classe dominante. Numa sociedade preconceituosa, marcada pela desigualdade social, racista, elitista, reacionária, sempre existirá um enquadramento estéticos organizado por essa minoria baseada nos seus valores. Aquilo que não passa na peneira, não segue adiante. Assim aconteceu com a música considerada cafona. Esse estilo de música sempre foi considerado música inferior e de mau gosto. Música de origem popular. Gênero que ficou rotulada como "música de empregada". Estereótipo que muito nos revela.
            Como Paulo César Araújo bem colocou sobre as empregadas, elas foram "Sucessora das antigas mucamas - que realizavam o trabalho doméstico durante a escravidão no Brasil -, desde o fim do século XIX a empregada doméstica aluga sua força de trabalho nas casas de família de classe média, mas a categoria foi excluída dos benefícios da legislação social e trabalhista estabelecidos no governo Vargas através da CLT". Categoria profissional que  apenas em 1973 alcançou o direito de ser regida pela Consolidação das Leis Trabalhistas que já contemplavam a maioria das profissões desde maio de 1943. E mesmo assim, inacreditavelmente, apenas em 2013, a categoria alcançou a conquista de direitos básicos como: definição do limite da jornada máxima de trabalho, pagamento de hora extra, obrigatoriedade de recolhimento do FGTS, adicional noturno, seguro desemprego, dentre outras. “A marca essencial das habitações das famílias de classe média do país, o diminuto cômodo reservado às empregadas domésticas, assim como a segregação destas moças em espaços de circulação apartados daqueles dos patrões - as chamadas "área de serviço" e "elevador de serviço" denunciam por si só o alto grau de autoritarismo da nossa sociedade. Este traço peculiar da nossa arquitetura residencial contemporânea traz, a influência da antiga casa-grande, porque, no subconsciente dos patrões, a empregada doméstica "ainda é a escrava de presença desagradável" e "o seu quartinho abrindo porta para o tanque de lavagens ainda é a senzala". Logo, a música considerada “cafona” passou a ser rotulada de música de empregada, pois tamanha é a desigualdade no nosso país, que a elite responsável por esse funil cultural só tem maior contato com a música considerada “brega”, através do rádio das empregadas domésticas que trabalham em suas residências. Ainda que essa música seja ouvida por todos os setores populares e não apenas essas profissionais domésticas.
Paulo Cesar Araújo cita o conceito de Michel Pollak, sociólogo e pesquisador austríaco, sobre “enquadramento da memória”. Segundo Pollak, a luta pela construção de uma versão única e homogênea do passado levaria os setores dominantes de um grupo social a promover este trabalho de "enquadramento de memória", que é realizado parcialmente por historiadores, sociólogos, jornalistas. E é este trabalho de "enquadramento" de uma memória coletiva em um nível mais global o que permite que a história de uma determinada sociedade passe a ser frequentemente oficializada e contada a partir da perspectiva dos vencedores e líderes, deixando a memória das minorias ou vencidos relegada ao esquecimento.  
Assim, no fim dos anos 50, quando a música popular passou a ser objeto de debate e análise por parte das elites culturais - , desenvolveram-se duas principais vertentes interpretativas da nossa música: a vertente da "tradição” e a vertente da "modernidade". Dualismo que não surgiu nesta época e nem se restringe ao tema da produção musical. Desde pelo menos 1922, a tensão entre “tradicional" e "moderno" ocupa o centro do debate político-cultural no país, refletindo o dilema de uma elite em busca de sua identidade nacional.
Com base nessas duas vertentes interpretativas - a da "tradição" e a da "modernidade" - que, a partir de meados dos anos 60, o público de classe média e formação universitária passa a eleger os cantores/ compositores de sua preferência. Os agentes responsáveis pela consolidação e perpetuação desse pensamento são justamente os membros dessa mesma classe média e universitária: os críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos. São os indivíduos responsáveis por criar uma peneira, definindo o que pode ou não ser considerado e banindo aquilo que foge aos padrões estéticos. Assim, uma vasta produção musical popular que não está identificada nem à "tradição" nem à "modernidade" encontra serias dificuldades para obter reconhecimento da crítica ou espaço na historiografia. E é o que acontece com esta geração de cantores/compositores considerados "cafonas".
Embora o livro seja farto de exemplos de artista que sofreram com esse enquadramento, existe um caso emblemático que diz muito sobre o Brasil. O caso de Wilson Simonal. Como se sabe, na década de 70, Simonal estava no auge da fama.  Era milionário, morava em coberturas luxuosas, vendia discos e enchia shows em estádios. Até que descobriu ter sido vítima de um desfalque. Demitiu seu contador, Raphael Viviani, o suposto culpado. Este moveu uma ação trabalhista contra o cantor. Em agosto de 1971, Simonal recrutou dois amigos (um deles seu segurança) militares para dar “uma lição” no contador. O contador foi agredido e torturado nos porões da ditadura, até que assinasse uma confissão de desfalque. Viviani processou Simonal. O cantor foi julgado. Na coleta de depoimentos, um dos seguranças que trabalhava para Simonal o denuncia como informante do órgão. Simonal foi condenado a cinco anos e quatro meses por crime de extorsão pela mesma Justiça da ditadura de quem, supostamente, seria colaborador. O documentário “Simonal - Ninguém sabe o duro que dei” filmado em 2009, sobre a vida do cantor, entrevista o seu antigo contador, e o encontra em situação humilde num bairro do subúrbio paulistano. Existe uma hipótese de que talvez o contador nessa história fosse o menos culpado. Circula uma teoria, sem provas e nunca investigada, da jornalista Léa Penteado, publicada em seu livro “Um instante, maestro!” de que Simonal teria sido roubado pelo seu sócio, João Carlos Magaldi (que posteriormente tornou-se o poderoso diretor-geral de Comunicações da TV Globo). Na peça “S'imbora, o musical - a história de Wilson Simonal”, escrita por Nelson Motta, o lamentável episódio do contador é precedido por um desentendimento com o Boni, da TV Globo, ocasião em que Simonal o desafia exigindo um contrato mais vantajoso, caso contrário pediria rescisão do mesmo. Em parte, talvez isso explique o motivo do seu banimento da TV. Embora seja de conhecimento geral que, independente de ter sido um desafeto ou não, por ser um homem negro, Simonal não entraria na programação e se entrasse, logo seria expulso, assim como fizeram depois com Chacrinha (no caso, por sua excentricidade). A TV Globo firmava sua hegemonia e começava a adotar um padrão. “Valia-se do design limpo e pasteurizado para vender ao espectador a ideia de um país moderno, bonito, bem-sucedido e desenvolvido. A extrema pobreza e o escândalo dos baixos padrões de vida das classes populares urbanas brasileiras eram ocultados no vídeo pela imagem glamourizada e luxuosa da emissora. O padrão Globo de qualidade: tornou parâmetro de "perfeição", de "eugenia", de "limpeza de imagem" e essa imagem glamourizada, luxuosa ou na, pior das hipóteses, anti-séptica (quando é imprescindível mostrar a pobreza convém ao menos desinfetá-la: em vez de classes miseráveis, um povo 'humilde porém decente' para não chocar ninguém), contaminou a linguagem visual de todos os setores da produção cultural e artística que se propõem a atingir o grande público”.
            Provavelmente essa história nunca será passada a limpo, uma vez que os principais envolvidos atualmente estão mortos. Mas o fato é que divulgaram, sem apuração, que o Simonal era um colaborador do regime militar. Logo, o cantor não conseguiu fazer mais shows, não cantava em auditórios, suas músicas não tocavam nas rádios. A classe artística virou as costas para ele. O Pasquim, composto por Henfil, Sergio Cabral, Jaguar, Ziraldo entre outros, o esmagava impiedosamente, difamando sua imagem entre artistas e intelectuais. A grande imprensa não ficava atrás. Era considerado pela patrulha ideológica como ufanista e instrumento da ditadura. Conforme Paulo Cesar Araújo coloca: “O intrigante é que até hoje a acusação contra Simonal não foi comprovada. Ao contrário, em 1991 a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República emitiu um habeas data, um documento oficial que nega que o cantor tenha colaborado para qualquer órgão da polícia política, seja o Dops ou o Serviço Nacional de Informações – SNI”. Assim, relegado ao ostracismo, Simonal viveu mais de 30 anos de exílio no Brasil. No documentário “Simonal - Ninguém sabe o duro que dei”, Ziraldo, membro do Pasquim, admite que “O êxito de um crioulo, nesse nível, naquelas circunstâncias, também incomodava um pouco”, “Ele fazia um sucesso tão grande! Uma pessoa tão carismática! Ele era um talento tão gigantesco, que ele achou que era o rei da cocada preta”, “Aquela coisa do lutador de capoeira, quer dizer, eu não queria dar pernada no cara, mas ele se plantou pra mim, sentei-lhe a perna na cara”. Como se sabe, Ziraldo é autor da brilhante frase "Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo". Certamente foi uma pernada desprovida de raiva. Em determinado momento do documentário, Jaguar comenta sobre a morte de Simonal, diz (entre risadas) “Ele morreu de cirrose, poderia ter sido eu, mas em suma, sem rancor, sem rancores, entende? Eu não acho que há motivo nenhum de ficar alimentando um negócio que foi feito numa época de radicalização...”. Talvez diga isso porque em 2008 a partir da Comissão de Anistia, foi pago R$ 1.000.253,24 a Ziraldo e R$ 1.027.383,29 a Jaguar, além do direito a uma pensão mensal permanente de R$ 4.375,88, por terem sido perseguidos pelo regime militar devido a sua atuação no Pasquim. A verdade é que Simonal era muito talentoso e aproveitou o máximo possível sua conquista. Mas suas atitudes incomodavam. Um país racista como o Brasil nunca aceitaria ter um ídolo negro. Não um que “não soubesse ficar no seu lugar”.
Infelizmente, casos como o de Wilson Simonal acontecem o tempo todo. “A cultura negra é extremamente popular, mas as pessoas negras não”. Existe uma indústria cultural que ganha muito dinheiro em cima disso através do mecanismo da apropriação cultural, da assimilação de uma cultura por outra cultura dominante - no intuito de excluir mesmo. Talvez, apenas uma outra faceta do “enquadramento da memória”. A grande questão é que a indústria de entretenimento vende um artista branco muito mais fácil do que um artista negro. Elvis Presley é um exemplo clássico disso, embora seu talento seja inegável, ele era uma alternativa branca ao real pioneiro do estilo do rock, Chuck Berry. E assim como o “brega”, temos o funk, o rap, o jongo, isso pra não falar das outras manifestações culturais produzidas fora da região sudeste do país que fogem a esse enquadramento.            Hoje em dia, sabe-se que os antigos navios que traziam homens escravizados da África para o Brasil possuíam nomes como: Boa Esperança, Boa Intenção, Caridade, Feliz Destino, dentre outros. Segundo a lógica dos donos desses navios, o traficante estava “salvando” esses homens e mulheres na certeza que “seria melhor para eles” sair de uma terra pagã e conhecer o reino de Deus. A verdade é que, enquanto os oprimidos não contarem a própria história, enquanto não houver alguém que traga a tona as memórias submersas soterradas pela memória oficial, o tal do dia que já vem vindo, o tal dia da volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar não está nem perto de chegar.




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