Acima de qualquer coisa, o livro
de PCA me deu uma enorme sensação de humanidade. A humanidade do erro, da
contradição, da incoerência e da desigualdade.
A obra aumenta muito o escopo do que
se pretende inicialmente a avaliar — a música cafona dos anos de chumbo — para um
panorama amplo do que significa ser brasileiro.
A primeira porta que, a partir
dessa obra, se abriu no meu pensamento, foi a demonstração clara de que o
golpe, o autoritarismo, a tortura e os abusos encontraram largo apoio popular.
Não era apenas o aparelho repressor do Estado que censurava e julgava. Isto estava presente em toda a sociedade brasileira. E, ouso dizer, a imensa maioria dos cidadãos,
dados a oportunidade, usaria de expedientes semelhantes — como o cemitério dos
mortos-vivos do Henfil, guardadas as devidas proporções. A sequência de “pichações”,
passagem em que PCA relata mais ou menos que todo mundo falava mal de todo
mundo — menos de quem empunhava o porrete — mostra uma agressividade muito
forte de todos. Eu costumava achar que a principal razão para a aceitação da
tortura atualmente, por exemplo a praticada pela polícia extraoficialmente, era
o fato de não termos tido, até bem recentemente, uma mobilização de verdade e
reconciliação, como aconteceu em outras ditaduras sul-americanas. Hoje percebo
que me enganei parcialmente. A tortura, e sua aceitação e incentivo, não são
apenas um “legado” da ditadura; é um fruto brasileiro, um produto da nossa
sociedade. E, acrescento, infelizmente, não é um filho só da nossa terra, mas
de muitas outras.
Pensando um pouco no que aprendi
na escola — última vez que estudei história sistematicamente antes do GEB —,
não me lembro de ter lido sobre esse entusiasmo em relação ao Garrastazu. Sempre
tive a ideia, um tanto maniqueísta, portanto imatura, de que todos se sentiam
reprimidos com a censura, os desaparecimentos e mortes. Sempre ouvi muito Chico
Buarque, talvez isso tenha enviesado meus conceitos. De fato, um regime se
sustentar por tanto tempo sem grande apoio popular e dos poderosos seria
estranho, especialmente se considerarmos que a ditadura brasileira não teve
culto à personalidade, e que, curiosamente, os presidentes militares tinham
mandatos pré-determinados.
O livro abriu também meus olhos
para outra questão. Quando relata que os cafonas abasteciam de dinheiro as
gravadoras para que estas pudessem dar liberdade aos MPB, desvela-se mais um
dos incontáveis mecanismos concentradores de renda. O pobre compra disco do Odair
José. Ele recebe uma pequena parte dessa grana, porque autor em geral não ganha
muito mesmo, a gravadora retém a maior parte. Dessa parte da gravadora sai a
tranquilidade para Caetano gravar o que quiser como quiser. O dinheiro sai do
pobre e vai para o rico. O artista mais pobre, que depende mais da arte para
viver, tem sua criatividade atrelada a ganhos pecuniários, e qualquer aventura
fora disso é desconsiderada, como foi a ópera-rock de Odair José. Essa ópera
foi como um pobre preto tentar entrar pela porta da frente. Não pode. O MPB
pode fazer um disco “experimental”. Obviamente, hoje, depois da ruína das
gravadoras e do mercado fonográfico em geral, o processo deve ser diferente,
mas durante muito tempo foi assim.
Ele mostra ainda como a
História pode ser manipulada, e é saudável desconfiar de toda unanimidade, e PCA
apresenta este argumento sem citar o cliché de Nelson Rodrigues. Mostra como
uma parte importantíssima da produção cultural brasileira — tão legítima quanto
qualquer outra — é pura e simplesmente ignorada dos anais. É um enorme
não-reconhecimento, um desmentido da vivência de milhões de brasileiros. E esta
desconsideração vai além da pobreza; alguns desses cantores conseguiram sair da
pobreza de onde quase todos vieram. No entanto, nem com grana conseguiram
garantir seu verbete na História Oficial da música brasileira. O preconceito
vai bem além da questão do dinheiro.
O momento político que vivemos
também é prenhe de ódio. Inúmeras explicações
podem ser dadas para este recrudescimento, mas devemos entender que é isso, é
apenas um recrudescimento, não é a invenção do ódio. Não conseguimos criar uma sociedade
significativamente menos desigual. Eu acredito que muito do ódio vem daí. É a
desvalorização do “cantor das empregadas”, essas neomucamas. O contato que a
classe média tem com a pobreza é justamente o da servidão. O ódio recrudesce no
momento em que alternativas são, muito timidamente, criadas à servidão.
Quanto mais avanço nas nossas
leituras, mais claro fica que, como disse PCA, se é discutível que sejamos um
povo triste por determinismo de raça, é inegável a presença profunda da
tristeza no nosso modo de vida. Não sei fazer comparações com outros povos, nem
sei falar exatamente da presença da tristeza como motor da produção cultural
alhures, mas examinando o que conheço, vejo muita coisa triste. Linda e triste.
Presente tanto no cafona como na MPB; na pobreza e na falta de acesso a
direitos básicos e justiça.
PCA mostra que, além de esquecida
e excluída dos processos decisórios, do mercado de trabalho e consumo, a massa
pobre do Brasil dos anos de chumbo — e também hoje — foi ignorada nos seus
gostos musicais, baladas, boleros, lamentos. Apesar desta e de inúmeras outras
provas de que a História é múltipla, falível, imprecisa, contraditória, enfim,
humana, podemos nos considerar, mais uma vez, privilegiados, por termos acesso
a diferentes maneiras de se ver/contar uma época.
Nenhum comentário:
Postar um comentário