segunda-feira, 27 de julho de 2015

Somos todos cachorros, sim — o ódio e a tristeza.


Acima de qualquer coisa, o livro de PCA me deu uma enorme sensação de humanidade. A humanidade do erro, da contradição, da incoerência e da desigualdade.

A obra aumenta muito o escopo do que se pretende inicialmente a avaliar — a música cafona dos anos de chumbo — para um panorama amplo do que significa ser brasileiro.

A primeira porta que, a partir dessa obra, se abriu no meu pensamento, foi a demonstração clara de que o golpe, o autoritarismo, a tortura e os abusos encontraram largo apoio popular. Não era apenas o aparelho repressor do Estado que censurava e julgava. Isto estava presente em toda a sociedade brasileira. E, ouso dizer, a imensa maioria dos cidadãos, dados a oportunidade, usaria de expedientes semelhantes — como o cemitério dos mortos-vivos do Henfil, guardadas as devidas proporções. A sequência de “pichações”, passagem em que PCA relata mais ou menos que todo mundo falava mal de todo mundo — menos de quem empunhava o porrete — mostra uma agressividade muito forte de todos. Eu costumava achar que a principal razão para a aceitação da tortura atualmente, por exemplo a praticada pela polícia extraoficialmente, era o fato de não termos tido, até bem recentemente, uma mobilização de verdade e reconciliação, como aconteceu em outras ditaduras sul-americanas. Hoje percebo que me enganei parcialmente. A tortura, e sua aceitação e incentivo, não são apenas um “legado” da ditadura; é um fruto brasileiro, um produto da nossa sociedade. E, acrescento, infelizmente, não é um filho só da nossa terra, mas de muitas outras.

Pensando um pouco no que aprendi na escola — última vez que estudei história sistematicamente antes do GEB —, não me lembro de ter lido sobre esse entusiasmo em relação ao Garrastazu. Sempre tive a ideia, um tanto maniqueísta, portanto imatura, de que todos se sentiam reprimidos com a censura, os desaparecimentos e mortes. Sempre ouvi muito Chico Buarque, talvez isso tenha enviesado meus conceitos. De fato, um regime se sustentar por tanto tempo sem grande apoio popular e dos poderosos seria estranho, especialmente se considerarmos que a ditadura brasileira não teve culto à personalidade, e que, curiosamente, os presidentes militares tinham mandatos pré-determinados.

O livro abriu também meus olhos para outra questão. Quando relata que os cafonas abasteciam de dinheiro as gravadoras para que estas pudessem dar liberdade aos MPB, desvela-se mais um dos incontáveis mecanismos concentradores de renda. O pobre compra disco do Odair José. Ele recebe uma pequena parte dessa grana, porque autor em geral não ganha muito mesmo, a gravadora retém a maior parte. Dessa parte da gravadora sai a tranquilidade para Caetano gravar o que quiser como quiser. O dinheiro sai do pobre e vai para o rico. O artista mais pobre, que depende mais da arte para viver, tem sua criatividade atrelada a ganhos pecuniários, e qualquer aventura fora disso é desconsiderada, como foi a ópera-rock de Odair José. Essa ópera foi como um pobre preto tentar entrar pela porta da frente. Não pode. O MPB pode fazer um disco “experimental”. Obviamente, hoje, depois da ruína das gravadoras e do mercado fonográfico em geral, o processo deve ser diferente, mas durante muito tempo foi assim.

Ele mostra ainda como a História pode ser manipulada, e é saudável desconfiar de toda unanimidade, e PCA apresenta este argumento sem citar o cliché de Nelson Rodrigues. Mostra como uma parte importantíssima da produção cultural brasileira — tão legítima quanto qualquer outra — é pura e simplesmente ignorada dos anais. É um enorme não-reconhecimento, um desmentido da vivência de milhões de brasileiros. E esta desconsideração vai além da pobreza; alguns desses cantores conseguiram sair da pobreza de onde quase todos vieram. No entanto, nem com grana conseguiram garantir seu verbete na História Oficial da música brasileira. O preconceito vai bem além da questão do dinheiro.

O momento político que vivemos também é prenhe de ódio.  Inúmeras explicações podem ser dadas para este recrudescimento, mas devemos entender que é isso, é apenas um recrudescimento, não é a invenção do ódio.  Não conseguimos criar uma sociedade significativamente menos desigual. Eu acredito que muito do ódio vem daí. É a desvalorização do “cantor das empregadas”, essas neomucamas. O contato que a classe média tem com a pobreza é justamente o da servidão. O ódio recrudesce no momento em que alternativas são, muito timidamente, criadas à servidão.

Quanto mais avanço nas nossas leituras, mais claro fica que, como disse PCA, se é discutível que sejamos um povo triste por determinismo de raça, é inegável a presença profunda da tristeza no nosso modo de vida. Não sei fazer comparações com outros povos, nem sei falar exatamente da presença da tristeza como motor da produção cultural alhures, mas examinando o que conheço, vejo muita coisa triste. Linda e triste. Presente tanto no cafona como na MPB; na pobreza e na falta de acesso a direitos básicos e justiça.


PCA mostra que, além de esquecida e excluída dos processos decisórios, do mercado de trabalho e consumo, a massa pobre do Brasil dos anos de chumbo — e também hoje — foi ignorada nos seus gostos musicais, baladas, boleros, lamentos. Apesar desta e de inúmeras outras provas de que a História é múltipla, falível, imprecisa, contraditória, enfim, humana, podemos nos considerar, mais uma vez, privilegiados, por termos acesso a diferentes maneiras de se ver/contar uma época. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário