segunda-feira, 6 de julho de 2015

Brasil, o país das drogas: um olhar a partir de Gilberto Freyre



É quase covarde ter que comentar alguma coisa sobre “Casa-Grande & Senzala”, do Gilberto Freyre, uma vez que parece que tudo que precisa ser dito já o foi, neste livro. Mesmo assim, prometo fazer um esforço, especialmente no sentido de elucidar alguns elementos que aparecem de forma um pouco mais turva.

“Casa-Grande & Senzala” é um livro incontornável. Não dá para passar sem ele. Sinto, inclusive, uma certa vergonha de ter defendido uma tese de doutorado sem que Casa-Grande & Senzala não tivesse tido de mim nem uma olhadela de soslaio. Li, portanto, e após a certeza de que este deveria ser um livro obrigatório, fiquei feliz em saber que em algum momento de nossa história recente, houve uma lei estadual pernambucana (a Lei nº 4.666, de 20 de agosto de 1963) que autorizava uma edição popular de “Casa-Grande & Senzala”, a preços acessíveis, edição que veio a público em 1967.

É evidente que em história não há nada definitivo, mas algumas coisas se superam mais rápido do que outras. “Casa-Grande & Senzala” é um livro vivo, cujas ideias centrais ainda dão de conta de explicar muita, mas muita coisa mesmo a respeito da nossa realidade social.

Fico feliz, por um lado, de poder lê-lo na pós-aurora do século XXI, em que é, possível, com algum grau de criticidade, separar alguns aspectos menos corretos, menos precisos ou menos adequados desta obra, em oposição às muitas virtudes que o livro apresenta.

Antes de nos aprofundarmos em algumas análises, é preciso expor a lógica de funcionamento de “Casa-Grande & Senzala”. Trata-se de um livro corajoso, publicado em 1933, isto é, época em que o discurso racialista encrudescia, que exalta a mestiçagem do povo brasileiro. Estruturado em cinco capítulos (um introdutório, um sobre os índios, outro sobre os portugueses e os dois finais sobre os negros, todos mostrando como cada uma dessas ‘raças’ contribuiu para a formação dos brasileiros), o livro defende a tese de que as relações patriarcais dos engenhos, isto é, a lógica opressora dos senhores de engenho das casas-grandes sobre os negros nas senzalas, e também sobre os índios, é capaz de explicar muito de nossas vivências e de nossa estruturação social.

O tom ensaístico e literário do livro torna-o agradável à leitura. Gilberto Freyre, que em suas notas de rodapé parece ter lido o equivalente a cinco bibliotecas de Alexandria, nos mostra que é possível ser ao mesmo profundo e prazeroso, denso e leve. Ao borrar a fronteira entre a literatura e o texto acadêmico duro, anguloso, e ao mostrar também que é possível transgredir a fronteira entre o ascetismo científico que não se compromete e o texto-panfleto, Gilberto Freyre escreve um texto absolutamente libertador.

Um dos elementos nos quais essa liberdade pode ser percebida é na abordagem da relação entre os índios e os jesuítas. É razoavelmente comum na literatura acadêmica sobre a história do Brasil a existência de textos que valorizam a importância da catequização dos índios brasileiros pelos jesuítas. Esses autores, citados em abundância pelo autor ao longo do segundo capítulo de seu livro, apresentam a ação jesuítica sob um olhar muito positivo, ora por uma questão de simpatia apologética, ora porque, de certa forma, a ação jesuítica representou um processo grande de proteção aos índios no Brasil, em especial no que diz respeito à proteção desses índios quanto à escravização. Nesse aspecto, o ponto de vista extremamente crítico de Gilberto Freyre sobre os jesuítas, abordando-os sob um ponto de vista mais negativo, segue pela linha de que, por vezes, proteger também oprime. Em suas próprias palavras: “(...) Por onde se vê que o sistema jesuítico de catequese e civilização impondo uma nova moral de família aos indígenas sem antes lançar uma permanente base econômica, fez trabalho artificial, incapaz de sobreviver ao esquema de estufa das missões; e concorreu poderosamente para a degradação da raça que pretendeu salvar. Para o despovoamento do Brasil de sua gente autóctone.” Os argumentos apresentados por Gilberto Freyre reforçam a ideia de que recai, em parte, sobre os jesuítas, o peso do esvaziamento territorial dos sertões brasileiros aos agrupar os indígenas em ‘missões’, e também o fato de os mesmos terem permanecido à margem de uma maior integração com a sociedade brasileira, na ideia de que este excesso de proteção exercia uma função castradora de suas autodeterminações como indivíduos e como povos. É curioso como, certa vez, utilizei conceituação similar (esta da proteção que oprime) em um texto do meu bog pessoal, sem jamais ter lido Gilberto Freyre. É agradável encontrar estas similitudes de pensamento em um autor que admiramos.

Ainda sobre este mesmo capítulo, outros dois elementos me chamaram a atenção. Em primeiro lugar, a existência de homossexualidade entre os índios brasileiros, cujo exercício estava fortemente associada a ritos locais, em especial aos ritos de passagem. A prática homossexual indígena ocorria em locais exclusivos para os homens, em um local com certa distância das aldeias. Estes locais eram chamados de baitos. Creio ser daí, portanto, a origem da palavra ‘baitola’, que existe na língua portuguesa como forma depreciativa de se referir aos gays.

O segundo elemento interessante neste mesmo capítulo é a respeito da mandioca. Durante muitos e muitos anos, nos primeiros períodos da colonização, a mandioca foi a base da alimentação dos colonos. Não sou capaz de precisar o momento da história em que o ‘arroz e feijão’ foi alçado à categoria de alimento tipicamente brasileiro. Mas nos primeiros trezentos anos de colonização, eram a mandioca e seus derivados o que se comia em terras tupiniquins. Isto é particularmente interessante quando levamos em consideração que a presidenta Dilma Rousseff, em um discurso recente, foi achincalhada nas redes sociais após ter feito uma declaração em que que fazia uma saudação à mandioca. De minha opinião, achei magnifica esta saudação à mandioca. É a ela que devemos a sobrevivência dos primeiros colonos que chegaram ao Brasil. A mandioca foi o substrato físico e material que, em última instância, tornou possível o povoamento do território brasileiro nos primeiros anos de colonização. Nas palavras de Gilberto Freyre: “Foi completa a vitória do complexo indígena da mandioca sobre o trigo: tornou-se a base do regime alimentar do colonizador (é pena que sem se avantajar ao trigo em valor nutritivo e em digestibilidade, como supôs a ingenuidade de Gabriel Soares). Ainda hoje a mandioca é o alimento fundamental do brasileiro e a técnica do seu fabrico permanece, entre grande parte da população, quase que a mesma dos indígenas.

Ainda no mesmo capítulo, Gilberto Freyre faz uma afirmação categórica: “O açúcar matou o índio.” Esta frase, associada à questão da mandioca levantada no parágrafo anterior, e associada também à questão da fome que rondava os engenhos e os centros urbanos nos primeiros anos da colonização (uma vez que o modelo latifundiário preteria as culturas de subsistência em prol da monocultura) nos remete a uma terceira questão/hipótese, que não chegou a ser levantada por Gilberto Freyre de forma mais escrutinada: a questão das drogas.

Gilberto Freyre, em suas notas ao final do capítulo 4, menciona muito rapidamente a questão da maconha, consumida pelos negros nas senzalas, mas que ainda não tinha um papel relevante na sociedade brasileira: “Entre outras, a erva conhecida no Rio de Janeiro – segundo Manuel Querino – por pungo e por macumba na Bahia; e em Alagoas por maconha.Em Pernambuco é conhecida por maconha; e também, segundo temos ouvido entre seus aficionados por diamba, ou liamba. (...) Já fumamos a macumba ou diamba. Produz realmente visões e um como cansaço suave; a impressão de quem volta cansado de um baile, mas com a música ainda nos ouvidos.”.

Todos entendem, hoje, que a maconha é uma droga. Embora as opiniões possam divergir quanto à regulamentação e à proibição de pessoa para pessoa, de acordo com suas posições no espectro político, não há dúvidas quanto ao enquadramento da maconha na categoria de droga. Neste caso, droga ilícita. O conceito de droga ilícita é, em geral, colocado em oposição ao conceito de drogas lícitas: o álcool e o tabaco, por exemplo. Drogas, em uma definição muito superficial, podem ser entendidas como substâncias que promovem algum tipo de prazer nos seus usuários, em geral por alteração de estados de consciência (exceção feita para o tabaco, neste caso), e com um potencial de vício, que varia de pessoa para pessoa de acordo com suas condições genéticas e ambientais. Neste conceito de droga, é razoavelmente fácil perceber o álcool e o tabaco como drogas, ainda que lícitas.

Mas existem outros produtos agrícolas que não temos tanto tanta facilidade em reconhecer como drogas, mas que podem ser admitidos nesta mesma categoria. Apresento dois deles: o açúcar e o café.

Neste ponto, voltamos a Gilberto Freyre. A questão das drogas, colocada pelo autor de forma muito emaranhada em meio a outros conceitos, emerge como uma questão indispensável a um entendimento claro da sociedade brasileira.

As duas grandes monoculturas em que se apoiou o latifúndio no Brasil foram o açúcar e o café, ou seja, drogas. Não é uma coincidência em que justo nesta culturas agrícolas tenha aflorado o regime patriarcal de casa-grande & senzala.

É próprio das culturas de droga (neste caso, cultura no sentido de sociedade) a existência de hierarquias rígidas entre os seus membros, posturas territorialistas dos chefes, abordagem beligerante em relação a facções rivais, algum grau de controle entre a oferta e a demanda, e o uso extremado da violência reforçando estas hierarquias.

Neste sentido, o regime patriarcal na cultura brasileira ocorrida nos latifúndios de açúcar (de forma mais marcada, por causa da escravidão) e de café não é essencialmente diferente do regime de relações encontrado em uma boca de fumo ou em uma plantação de papoula (ópio) ou coca.

Este tipo de produção, que caracterizamos como produção de droga, está associado a um mercado muito instável. Ao mesmo tempo em que existe um mercado europeu cada vez mais ávido por açúcar (no caso brasileiro), trata-se de um bem, de uma certa maneira, dispensável. Poder-se-ia utilizar a palavra ‘supérfluo’ para descrever a relação de consumo dos europeus em relação ao açúcar e ao café, mas creio que ela não é adequada. A relação dos consumidores com estas drogas é mediada de forma muito intensa pelo desejo e pouco pela necessidade. No caso do açúcar e do café, especificamente (não se poderia dizer o mesmo da metanfetamina ou da cocaína, por exemplo), estamos falando de um tipo de consumo que se caracteriza por um aumento de demanda quando as condições econômicas são favoráveis (uma vez que todo mundo quer uma comida mais doce ou uma dose extra de concentração) e por uma queda acentuada e brusca em tempos de crise (lembro-me bem de uma aula de história no colégio Pedro II com a Prof. Eulália explicando o declínio do consumo de café brasileiro na Europa após a crise de 1929: “Quando todo mundo se viu sem dinheiro, quem é que iria parar pra tomar um cafezinho?”). Portanto, se por um lado, o aumento do consumo em condições normais da economia estimula a ganância por parte dos produtores (senhores de engenho) que se reflete no aumento de mão-de-obra (escravos) para aumentar a área ou a produtividade das terras cultivadas com monoculturas, por outro, a instabilidade advinda de uma possível crise exerce o papel de uma assombração em relação ao mercado, que contribui para que as relações de poder nesses meios sejam mais violentas. Resumidamente, pode-se dizer que o aumento contínuo da demanda e a instabilidade desta mesma demanda em virtude de crises econômicas são responsáveis, respectivamente, pela ganância e pela violência que aparecem nestas relações.

Ocorre que, embora o processo de colonização brasileira tenha uma série de características singulares em relação ao de outros povos latinoamericanos, conforme reiteradamente apontado por Gilberto Freyre em “Casa-Grande & Senzala”, neste aspecto, o que encontramos em relação aos nossos povos irmãos são mais semelhanças do que diferenças.

Toda a colonização latinomaericana é baseada na monocultura de drogas: açúcar, álcool (o melaço das Antilhas), café, tabaco. A exceção parece ser o algodão.

É interessante notar, se formos capazes de esticar ainda mais o conceito de drogas, que, em ultima instância, também o ouro da América espanhola e das Minas Gerais, também os temperos trazidos das índias, também a riqueza mineral do continente africano, como as terras raras e os diamantes, e também, em uma análise ainda mais permissiva, os próprios negros trazidos da África como escravos, todos eles são elementos que contribuem para um enriquecimento hedônico das metrópoles europeias, no sentido de que estas metrópoles importam, a partir de seus portos coloniais, elementos prazerosos, muito prazerosos muitas das vezes, mas jamais necessários, que servem ao deleite e ao regozijo dos povos colonizadores.

Os colonizadores não terceirizaram às suas colônias a produção de alimentos. Isto significa que, além da dominação pela força, também os colonizadores ampliaram seu domínio  sobre as colônias em virtude da ausência da necessidade dos produtos agrícolas que provinham de além-mar. Os produtos produzidos pelas colônias não eram necessários às metrópoles, (embora houvesse um desejo grande de se os consumir), o que reduzia a quase nada o poder de barganha das colônias. Eram drogas, apenas drogas.

E ainda as são. Muito se diz por aí que o Brasil é, ou de que será em breve, o ‘celeiro do mundo’. Não se iludam. Em que pesem as extraordinariamente diferentes condições apresentadas pelo mercado de hoje em relação ao de trezentos anos atrás, é importante observar que a estrutura latifundiária do agronegócio nos dias atuais no Brasil está centrada na cultura da soja e da cana-de-açúcar.

Se fomos capazes de, até aqui, entender o álcool e o açúcar como drogas, certamente não será difícil entender que a soja, que se vende a partir do Brasil para ser usada no formato de óleo, é apenas a droga da vez. A soja, como commodity, serve apenas para estimular e disseminar o hábito da fritura, prazeroso e dispensável, aos outros países.

Embora já não seja possível dizer que vivemos sob a égide de uma relação colônia-metrópole, o fato é que do açúcar ao café, do café à soja, e incluindo aí também as mulatas, o samba e o futebol, nos constituímos essencialmente como um país exportador de prazer, fornecedor de coisas que são, a um só tempo, prazerosas e prescindíveis.

Seria forçoso admitir a hipótese de Paulo Prado, de que somos um povo triste. Mas se conseguirmos provar, de algum modo, que entre nós impera a tristeza, poderemos então ter a certeza de que a nossa alegria vai indo embora do país pelos portos, em contêineres, para alegrar os povos do outro lado do oceano, como sempre fomos acostumados a fazer.

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