É quase covarde ter que comentar
alguma coisa sobre “Casa-Grande & Senzala”, do Gilberto Freyre, uma vez que
parece que tudo que precisa ser dito já o foi, neste livro. Mesmo assim,
prometo fazer um esforço, especialmente no sentido de elucidar alguns elementos
que aparecem de forma um pouco mais turva.
“Casa-Grande & Senzala” é um
livro incontornável. Não dá para passar sem ele. Sinto, inclusive, uma certa
vergonha de ter defendido uma tese de doutorado sem que Casa-Grande &
Senzala não tivesse tido de mim nem uma olhadela de soslaio. Li, portanto, e
após a certeza de que este deveria ser um livro obrigatório, fiquei feliz em
saber que em algum momento de nossa história recente, houve uma lei estadual
pernambucana (a Lei nº 4.666, de 20 de agosto de 1963) que autorizava uma
edição popular de “Casa-Grande & Senzala”, a preços acessíveis, edição que
veio a público em 1967.
É evidente que em história não há
nada definitivo, mas algumas coisas se superam mais rápido do que outras. “Casa-Grande
& Senzala” é um livro vivo, cujas ideias centrais ainda dão de conta de
explicar muita, mas muita coisa mesmo a respeito da nossa realidade social.
Fico feliz, por um lado, de poder
lê-lo na pós-aurora do século XXI, em que é, possível, com algum grau de
criticidade, separar alguns aspectos menos corretos, menos precisos ou menos
adequados desta obra, em oposição às muitas virtudes que o livro apresenta.
Antes de nos aprofundarmos em
algumas análises, é preciso expor a lógica de funcionamento de “Casa-Grande
& Senzala”. Trata-se de um livro corajoso, publicado em 1933, isto é, época
em que o discurso racialista encrudescia, que exalta a mestiçagem do povo
brasileiro. Estruturado em cinco capítulos (um introdutório, um sobre os
índios, outro sobre os portugueses e os dois finais sobre os negros, todos
mostrando como cada uma dessas ‘raças’ contribuiu para a formação dos
brasileiros), o livro defende a tese de que as relações patriarcais dos
engenhos, isto é, a lógica opressora dos senhores de engenho das casas-grandes
sobre os negros nas senzalas, e também sobre os índios, é capaz de explicar
muito de nossas vivências e de nossa estruturação social.
O tom ensaístico e literário do
livro torna-o agradável à leitura. Gilberto Freyre, que em suas notas de rodapé
parece ter lido o equivalente a cinco bibliotecas de Alexandria, nos mostra que
é possível ser ao mesmo profundo e prazeroso, denso e leve. Ao borrar a
fronteira entre a literatura e o texto acadêmico duro, anguloso, e ao mostrar
também que é possível transgredir a fronteira entre o ascetismo científico que
não se compromete e o texto-panfleto, Gilberto Freyre escreve um texto absolutamente
libertador.
Um dos elementos nos quais essa
liberdade pode ser percebida é na abordagem da relação entre os índios e os
jesuítas. É razoavelmente comum na literatura acadêmica sobre a história do
Brasil a existência de textos que valorizam a importância da catequização dos
índios brasileiros pelos jesuítas. Esses autores, citados em abundância pelo
autor ao longo do segundo capítulo de seu livro, apresentam a ação jesuítica
sob um olhar muito positivo, ora por uma questão de simpatia apologética, ora
porque, de certa forma, a ação jesuítica representou um processo grande de
proteção aos índios no Brasil, em especial no que diz respeito à proteção
desses índios quanto à escravização. Nesse aspecto, o ponto de vista extremamente
crítico de Gilberto Freyre sobre os jesuítas, abordando-os sob um ponto de
vista mais negativo, segue pela linha de que, por vezes, proteger também
oprime. Em suas próprias palavras: “(...) Por onde se vê que o sistema jesuítico de
catequese e civilização impondo uma nova moral de família aos indígenas sem
antes lançar uma permanente base econômica, fez trabalho artificial, incapaz de sobreviver ao esquema de estufa das missões; e concorreu poderosamente para a
degradação da raça que pretendeu salvar. Para o despovoamento do Brasil de sua
gente autóctone.” Os argumentos apresentados por Gilberto Freyre reforçam a
ideia de que recai, em parte, sobre os jesuítas, o peso do esvaziamento
territorial dos sertões brasileiros aos agrupar os indígenas em ‘missões’, e
também o fato de os mesmos terem permanecido à margem de uma maior integração
com a sociedade brasileira, na ideia de que este excesso de proteção exercia
uma função castradora de suas autodeterminações como indivíduos e como povos. É
curioso como, certa vez, utilizei conceituação similar (esta da proteção que
oprime) em um texto do meu bog pessoal, sem jamais ter lido Gilberto Freyre. É
agradável encontrar estas similitudes de pensamento em um autor que admiramos.
Ainda sobre este mesmo capítulo, outros
dois elementos me chamaram a atenção. Em primeiro lugar, a existência de
homossexualidade entre os índios brasileiros, cujo exercício estava fortemente
associada a ritos locais, em especial aos ritos de passagem. A prática
homossexual indígena ocorria em locais exclusivos para os homens, em um local
com certa distância das aldeias. Estes locais eram chamados de baitos. Creio
ser daí, portanto, a origem da palavra ‘baitola’, que existe na língua
portuguesa como forma depreciativa de se referir aos gays.
O segundo elemento interessante
neste mesmo capítulo é a respeito da mandioca. Durante muitos e muitos anos,
nos primeiros períodos da colonização, a mandioca foi a base da alimentação dos
colonos. Não sou capaz de precisar o momento da história em que o ‘arroz e
feijão’ foi alçado à categoria de alimento tipicamente brasileiro. Mas nos
primeiros trezentos anos de colonização, eram a mandioca e seus derivados o que
se comia em terras tupiniquins. Isto é particularmente interessante quando
levamos em consideração que a presidenta Dilma Rousseff, em um discurso recente,
foi achincalhada nas redes sociais após ter feito uma declaração em que que
fazia uma saudação à mandioca. De minha opinião, achei magnifica esta saudação à
mandioca. É a ela que devemos a sobrevivência dos primeiros colonos que
chegaram ao Brasil. A mandioca foi o substrato físico e material que, em última
instância, tornou possível o povoamento do território brasileiro nos primeiros
anos de colonização. Nas palavras de Gilberto Freyre: “Foi completa a vitória
do complexo indígena da mandioca sobre o trigo: tornou-se a base do regime
alimentar do colonizador (é pena que sem se avantajar ao trigo em valor nutritivo
e em digestibilidade, como supôs a ingenuidade de Gabriel Soares). Ainda hoje a
mandioca é o alimento fundamental do brasileiro e a técnica do seu fabrico
permanece, entre grande parte da população, quase que a mesma dos indígenas.”
Ainda no mesmo capítulo, Gilberto
Freyre faz uma afirmação categórica: “O açúcar matou o índio.” Esta frase,
associada à questão da mandioca levantada no parágrafo anterior, e associada
também à questão da fome que rondava os engenhos e os centros urbanos nos
primeiros anos da colonização (uma vez que o modelo latifundiário preteria as
culturas de subsistência em prol da monocultura) nos remete a uma terceira
questão/hipótese, que não chegou a ser levantada por Gilberto Freyre de forma
mais escrutinada: a questão das drogas.
Gilberto Freyre, em suas notas ao
final do capítulo 4, menciona muito rapidamente a questão da maconha, consumida
pelos negros nas senzalas, mas que ainda não tinha um papel relevante na
sociedade brasileira: “Entre outras, a erva conhecida no Rio de Janeiro –
segundo Manuel Querino – por pungo e por macumba na Bahia; e em Alagoas por
maconha.Em Pernambuco é conhecida por maconha; e também, segundo temos ouvido
entre seus aficionados por diamba, ou liamba. (...) Já fumamos a macumba ou
diamba. Produz realmente visões e um como cansaço suave; a impressão de quem
volta cansado de um baile, mas com a música ainda nos ouvidos.”.
Todos entendem, hoje, que a maconha
é uma droga. Embora as opiniões possam divergir quanto à regulamentação e à
proibição de pessoa para pessoa, de acordo com suas posições no espectro
político, não há dúvidas quanto ao enquadramento da maconha na categoria de
droga. Neste caso, droga ilícita. O conceito de droga ilícita é, em geral, colocado em oposição ao conceito de drogas lícitas: o álcool e o
tabaco, por exemplo. Drogas, em uma definição muito superficial, podem ser
entendidas como substâncias que promovem algum tipo de prazer nos seus usuários,
em geral por alteração de estados de consciência (exceção feita para o tabaco,
neste caso), e com um potencial de vício, que varia de pessoa para pessoa de
acordo com suas condições genéticas e ambientais. Neste conceito de droga, é
razoavelmente fácil perceber o álcool e o tabaco como drogas, ainda que
lícitas.
Mas existem outros produtos agrícolas
que não temos tanto tanta facilidade em reconhecer como drogas, mas que podem
ser admitidos nesta mesma categoria. Apresento dois deles: o açúcar e o café.
Neste ponto, voltamos a Gilberto
Freyre. A questão das drogas, colocada pelo autor de forma muito emaranhada em
meio a outros conceitos, emerge como uma questão indispensável a um
entendimento claro da sociedade brasileira.
As duas grandes monoculturas em
que se apoiou o latifúndio no Brasil foram o açúcar e o café, ou seja, drogas.
Não é uma coincidência em que justo nesta culturas agrícolas tenha aflorado o
regime patriarcal de casa-grande & senzala.
É próprio das culturas de droga
(neste caso, cultura no sentido de sociedade) a existência de hierarquias
rígidas entre os seus membros, posturas territorialistas dos chefes, abordagem
beligerante em relação a facções rivais, algum grau de controle entre a oferta
e a demanda, e o uso extremado da violência reforçando estas hierarquias.
Neste sentido, o regime
patriarcal na cultura brasileira ocorrida nos latifúndios de açúcar (de forma
mais marcada, por causa da escravidão) e de café não é essencialmente diferente
do regime de relações encontrado em uma boca de fumo ou em uma plantação de
papoula (ópio) ou coca.
Este tipo de produção, que
caracterizamos como produção de droga, está associado a um mercado muito
instável. Ao mesmo tempo em que existe um mercado europeu cada vez mais ávido
por açúcar (no caso brasileiro), trata-se de um bem, de uma certa maneira,
dispensável. Poder-se-ia utilizar a palavra ‘supérfluo’ para descrever a
relação de consumo dos europeus em relação ao açúcar e ao café, mas creio que ela
não é adequada. A relação dos consumidores com estas drogas é mediada de forma
muito intensa pelo desejo e pouco pela necessidade. No caso do açúcar e do
café, especificamente (não se poderia dizer o mesmo da metanfetamina ou da
cocaína, por exemplo), estamos falando de um tipo de consumo que se caracteriza
por um aumento de demanda quando as condições econômicas são favoráveis (uma vez que todo
mundo quer uma comida mais doce ou uma dose extra de concentração) e por uma
queda acentuada e brusca em tempos de crise (lembro-me bem de uma aula de
história no colégio Pedro II com a Prof.
Eulália explicando o declínio do consumo de café brasileiro na Europa após a
crise de 1929: “Quando todo mundo se viu sem dinheiro, quem é que iria parar
pra tomar um cafezinho?”). Portanto, se por um lado, o aumento do consumo em
condições normais da economia estimula a ganância por parte dos produtores
(senhores de engenho) que se reflete no aumento de mão-de-obra (escravos) para
aumentar a área ou a produtividade das terras cultivadas com monoculturas, por
outro, a instabilidade advinda de uma possível crise exerce o papel de uma assombração
em relação ao mercado, que contribui para que as relações de poder
nesses meios sejam mais violentas. Resumidamente, pode-se dizer que o aumento contínuo
da demanda e a instabilidade desta mesma demanda em virtude de crises
econômicas são responsáveis, respectivamente, pela ganância e pela violência
que aparecem nestas relações.
Ocorre que, embora o processo de
colonização brasileira tenha uma série de características singulares em relação
ao de outros povos latinoamericanos, conforme reiteradamente apontado por
Gilberto Freyre em “Casa-Grande & Senzala”, neste aspecto, o que
encontramos em relação aos nossos povos irmãos são mais semelhanças do que
diferenças.
Toda a colonização
latinomaericana é baseada na monocultura de drogas: açúcar, álcool (o melaço
das Antilhas), café, tabaco. A exceção parece ser o algodão.
É interessante notar, se formos capazes
de esticar ainda mais o conceito de drogas, que, em ultima instância, também o
ouro da América espanhola e das Minas Gerais, também os temperos trazidos das
índias, também a riqueza mineral do continente africano, como as terras raras e
os diamantes, e também, em uma análise ainda mais permissiva, os próprios negros
trazidos da África como escravos, todos eles são elementos que contribuem para
um enriquecimento hedônico das metrópoles europeias, no sentido de que estas metrópoles importam, a partir de seus portos coloniais, elementos prazerosos, muito prazerosos muitas
das vezes, mas jamais necessários, que servem ao deleite e ao regozijo dos povos
colonizadores.
Os colonizadores não
terceirizaram às suas colônias a produção de alimentos. Isto significa que,
além da dominação pela força, também os colonizadores ampliaram seu domínio sobre as colônias em virtude da ausência da
necessidade dos produtos agrícolas que provinham de além-mar. Os produtos
produzidos pelas colônias não eram necessários às metrópoles, (embora houvesse
um desejo grande de se os consumir), o que reduzia a quase nada o poder de
barganha das colônias. Eram drogas, apenas drogas.
E ainda as são. Muito se diz por
aí que o Brasil é, ou de que será em breve, o ‘celeiro do mundo’. Não se
iludam. Em que pesem as extraordinariamente diferentes condições apresentadas
pelo mercado de hoje em relação ao de trezentos anos atrás, é importante observar
que a estrutura latifundiária do agronegócio nos dias atuais no Brasil está
centrada na cultura da soja e da cana-de-açúcar.
Se fomos capazes de, até aqui,
entender o álcool e o açúcar como drogas, certamente não será difícil entender
que a soja, que se vende a partir do Brasil para ser usada no formato de óleo, é
apenas a droga da vez. A soja, como commodity, serve apenas para estimular e disseminar
o hábito da fritura, prazeroso e dispensável, aos outros países.
Embora já não seja possível dizer
que vivemos sob a égide de uma relação colônia-metrópole, o fato é que do
açúcar ao café, do café à soja, e incluindo aí também as mulatas, o samba e o
futebol, nos constituímos essencialmente como um país exportador de prazer,
fornecedor de coisas que são, a um só tempo, prazerosas e prescindíveis.
Seria forçoso admitir a hipótese
de Paulo Prado, de que somos um povo triste. Mas se conseguirmos provar, de
algum modo, que entre nós impera a tristeza, poderemos então ter a certeza de
que a nossa alegria vai indo embora do país pelos portos, em contêineres, para
alegrar os povos do outro lado do oceano, como sempre fomos acostumados a
fazer.
Acho que o Gabriel Soares era celíaco.
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