segunda-feira, 6 de julho de 2015

Todos os Senhores de Engenho Finíssimos Fumando Maconha

Difícil imaginar como comentar Casa Grande e Senzala (doravante CGS). Uma pesquisa imensa e cuidadosa gerou esta obra fantástica. Garrei paixão. Uma narrativa fluida, bela e sólida. Realista porque complexa, mostra reducionismos sem aderir totalmente a eles, traz contradições com as quais temos de conviver.

Dito isto, faço algumas críticas, menores, se considerarmos a grandeza e a absoluta incontornabilidade da obra. De forma geral, o livro abriu muito meu pensamento, no sentido de refletir sobre a minha posição na sociedade e sobre as relações humanas no país, consciência de classe e de raça. Não consegui achar ponto cego nesta obra, dentro do que ela se propôs.

O principal problema do livro é ele ser datado, e revelar o pensamento da época. Um pensamento com muitos traços higienistas. Também impregnado de algum determinismo biológico, mais presente nas fontes a que ele se refere, mas inegável nas próprias páginas. Mas PP também dá sinais de compartilhar este pensamento, e não garrei paixão dele. Fiquei me perguntando o porquê disso. Primeiro, porque, apesar de uma narrativa nem um pouco árida, GF não pretende sua obra como retrato impressionista, mas se fundamenta muito bem, cita várias fontes e mostra pesquisa exaustiva e delicada, mesmo se posicionando quando encontra fontes conflitantes. Também porque em CGS GF propõe as características que analisa de maneira bem mais complexa e nuançada, por mais que contenha uma tese, e não é tão reducionista como “um ensaio sobre a tristeza”, não coloca os elementos raciais como explicação para uma derrota do povo, como PP parece propor. E também porque não se põe a cavaleiro na situação, analisa profundamente e se inclui nisso.

Em vez de espinafrar seu povo e o colonizador, GF encontra o expediente e pioneirismo portugueses na reinvenção da colonização, rompendo com o modelo de feitorias, instalando uma cadeia produtiva, ainda que, aos nossos olhos de hoje, predatória. Predatória por ser monocultura, por ser escravagista, por ser latifundiária. Ouso dizer que a questão do negro avançou mais na nossa sociedade que a questão agrária e da distribuição de terras.

Tive a impressão que GF sorria na hora de escrever sobre a importância das amas pretas para a difusão da cultura e no carinho e contato com os jovens senhores. Refletindo sobre isso, pensei como a história é seletiva. Pouquíssimas pessoas deveriam ter amas para amamentar seus bebês, e, no entanto, este protótipo permanece praticamente intocado.

Em alguns momentos as descrições das raças e de seus encontros pareceram tocar de leve a tese de que não há racismo no Brasil. Apesar de ressaltar o tempo todo a importância da escravidão, e mais do que isso, da relação senhor-escravo na gênese de uma série de problemas brasileiros, GF sublinha um pacifismo na convivência entre as raças. Talvez isto fosse mais aceitável em 1933, mas hoje não passa.  O convívio entre as raças, entre as classes no Brasil só é pacífico na medida em que não haja mobilidade entre elas. E, mesmo esta paz, está recheada de cordialidade. Apenas recentemente, no momento em que o Brasil se põe, na contramão do mundo , em um ciclo de redução da desigualdade social e promoção de uma verdadeira mobilidade social vertical, dito de outra maneira, com a saída dos pretos da senzala, com outras classes sociais estando disponíveis para descendentes de escravos, ou ainda, com a chegada de negros à sociedade de consumo, trabalho formal e educação, ou, finalmente, com a ampliação do acesso à cidadania para negros, é que surge, como uma regurgitação raivosa, a reação violentamente racista dos senhores de engenho que moram dentro de cada um de nós. A regurgitação da indigestão dos ricos versus a fome dos pobres, que já não têm tanta fome. Inspirado em uma fala de Maria Rita Kehl na última FLIP esta regurgitação violenta em forma de intolerância seria o retorno do recalcado para tantas concessões e tantas tolerâncias com malfeitos, tantas acomodações e jeitinhos, sempre mantendo privilégios.

Nosso povo não escapou ainda da maldita chaga da escravidão. Não apenas por manter indivíduos em condições degradantes, extirpados de subjetividade – para citar apenas alguns dos pontos inaceitáveis da escravidão -, o regime escravocrata criou uma incurável legião de senhores de engenho. Quem não é escravo é senhor, quem é escravo quer ser senhor. No nosso mundo em que as relações de consumo norteiam praticamente todas as relações, a existência desta marca, deste trilho, deste caminho senhor-escravo funciona morbidamente bem.

Não iria tão longe quanto GF a ponto de dizer que neste modelo de relação senhor-escravo seria o responsável pelo quão alto algumas pessoas se dirigem a outras hoje em dia. Mas é impossível negar a presença perniciosa dessa relação. Perniciosa e ubíqua. Vejo muito o escravo aspirando a tornar-se senhor. Ou converter-se em senhor de acordo com o ambiente em que está. Estamos treinados a esta alternância de papeis. O senhor sempre despreza o escravo. O olhar do julgamento da sociedade que cultiva esse abismo vem daí. Quando todos são mais ou menos iguais, não há escravos nem senhores, todos podemos nos tratar melhor, somos próximos. Se o sucesso significa tornar-me senhor, ou seja, tornar todos os outros escravos, ou me rodear deles, a vida do outro perde importância. As diferenças remetem todas ao “ele é o escravo, logo não tem valor humano”. O outro não vale. Pode morrer, pode apodrecer na prisão, não é dos meus, isto não acontece com gente como eu.

Nessa linha ele fala ainda do fenômeno das antigas famílias proprietárias de terra de dar grande importância a sinais externos de riqueza, mesmo que o lar fosse empobrecido. Vemos que a sociedade de consumo e de valorização das aparências não é uma invenção recente. Quando duas pessoas se respeitam, não importa muito o que vestem ou como seguram o garfo. Se uma delas quer mostrar que é senhor (ou seja, mostrar que o outro é escravo), vai julgar o outro de todas as formas disponíveis. Pela roupa, pelo sotaque, pelo comportamento, pelo número de parceiros etc.

Se dentro de cada civilizado vive um selvagem, dentro de cada um de nós está um senhor de engenho que tem medo de uma revolta de escravos, da invasão de seu depósito por corsários ou índios não domesticados. Condomínios fechados, carros blindados, senhas, trancas redundantes, carregamos nossa Casa Grande onde quer que vamos. Alguém disposto a dar ordens e a ser atendido imediatamente, a pegar o que e quem quiser. 

Quem não acumula açúcar ou ouro deve se conformar com a posição de escravo e respeitar a ordem das coisas, sob pena de apanhar da polícia ou do vizinho. A vida do escravo não é valorizada, ele tampouco a valoriza, salvo os heróis. O pobre e preto, quando arrisca sua vida, não arrisca muito. Vai morrer pela mão da polícia ou do bandido, entidades entre as quais a diferença é uma formalidade. É a tristeza.


A estrutura social em que vivemos é, a um só tempo, produto e produtora de desigualdades.  Vivemos esta luta.

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