sexta-feira, 31 de julho de 2015

Era só mais um Silva

No excelente - e saborosíssimo de se ler - livro "Eu Não Sou Cachorro Não", Paulo César de Araújo nos ensina o quanto nosso gosto musical - que enganosamente consideramos "intuitivo" e sujeito ao nosso livre arbítrio - pode ser moldado por escolhas políticas, discursos historiográficos e ideologias de críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos - e como nem sequer sonhamos com isso.

Ao analisar os cantores "bregas" que fizeram sucesso ao  longo dos anos 60, 70 e 80, Araújo nos faz refletir sobre temas muito ligados não apenas à formação cultural do nosso país, mas também às escolhas que fazemos, como sociedade democrática que sonhamos ser, dos discursos históricos que irão prevalecer para as atuais e futuras gerações.

A primeira reflexão é de como a História se transforma em histórias. Cito um breve trecho do livro:    

"Como enfatiza o sociólogo francês Michael Pollak, a História está se transformando em histórias - plurais e diferenciadas - até mesmo sob o aspecto da cronologia. O autor destaca que trabalhos de história oral na Alemanha têm apontado que cortes políticos consagrados pela historiografia tradicional, como a tomada do poder pelo Terceiro Reich em 1933, ou a criação da República Federal Alemã em 1949, não tinham sido vividos como tão marcantes pelos segmentos populares daquele país. Nas histórias individuais do povo alemão aparecem com muito mais destaque as datas de 1935 - quando pela primeira vez se assistiu à estabilização do emprego e da renda familiar - , e 1948 - ano da reforma monetária. (...) Portanto, afirma Pollak, devemos estar atentos à existência de histórias plurais, de cronologias plurais em função de uma vivência diferenciado das realidades. (53) Isto ajuda a explicar, no caso brasileiro, a pouca identificação dessa geração de cantores românticos com os acontecimentos políticos de 1968. É possível até dizer que eles assistiram à decretação do AI-5 também "bestializados”, sem compreender o seu significado.(54) E, no entanto, mesmo estando "desligados" da questão política - que é uma das esferas, entre tantas outras, da vida cotidiana - , a produção musical desses artistas vai denunciar o autoritarismo vivenciado pelos segmentos populares em nosso país."

O debate História x ficção (e será mesmo uma oposição necessária?) assombra historiadores e cientistas políticos, mas passa ao largo dos nossos estudantes secundaristas de história, que apenas querem decorar os fatos dos livros didáticos de História para tirarem uma boa nota no vestibular. Mas qual será o discurso histórico que permanecerá neste jovem estudante depois que ele se formar - e de que modo este discurso pouco pluralista (e excludente de diversos aspectos culturais importantes da nossa formação cultural) iá influenciar nas decisões políticas, sociais e mesmo culturais que estes jovens tomarão como futuros advogados, engenheiros, arquitetos, economistas, políticos, professores, gestores públicos? Não seria mais produtivo, desde o início da nossa formação, sabermos que existe uma pluralidade de discursos históricos - abrindo ao arbítrio de cada um a possibilidade de descobrir o seu próprio discurso histórico?

Outra reflexão importante levantada pelo autor é a construção da memória individual através da elaboração da memória coletiva - e o papel dos "enquadradores" nesta construção. Cito novamente um breve trecho do livro:

"Em estudo clássico sobre a memória, o francês Maurice Halbwachs destaca a relação direta existente entre as recordações de cada pessoa e as experiências vividas no grupo social, desenvolvendo um conceito de memória que, para além do fenômeno individual e psicológico, a privilegia como um fenômeno coletivo e social. "Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, na realidade, nunca estamos sós." (571) Isto significa que as recordações de cada indivíduo dependem de seu relacionamento com a classe social, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a este indivíduo. É o universo no qual nós estamos inseridos que determina o desempenho da nossa memória e fornece as categorias com as quais cada um de nós elabora o seu pensamento. E é esta comunhão de valores que compartilhamos com os membros do grupo social e o entendimento comum dos símbolos e dos significados que definem o caráter social das memórias individuais. Portanto, se evocamos determinadas canções - e esquecemos outras - , é porque o nosso grupo social, a situação presente, nos fazem recordar ou esquecer.

Le Goff destaca que a memória coletiva não é somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder, configurando-se um dos mais sólidos alicerces da dominação Da mesma forma que os fatos são conservados e comemorados, diz o autor, "os esquecimentos e os silêncios da História são reveladores deste mecanismo de manipulação da memória coletiva". (573) Assim, o ato de esquecer não está relacionado apenas ao aspecto voluntário, estratégico e harmônico; pode ser também fruto de conflitos e divergências, de manipulação exercida por grupos dominantes sobre dominados, ou de vencedores frente a vencidos. 

No campo específico da música popular brasileira - tema deste livro - a memória é também um objeto de disputa e da mesma forma apresenta os seus "enquadradores" (críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos). Trata-se então de analisar agora que grupos sociais eles representam e de que critérios se valem para determinar quais as canções ou compositores que devem ser esquecidos ou preservados na memória nacional."

Se a memória coletiva - parte estruturante da memória individual - é objeto de disputa e construída, de maneira estruturante por críticos, pesquisadores, historiadores, musicólogos, a importância destes profissionais aumenta e cresce em grandeza. O debate sobre a formação destes profissionais é fundamental - muito embora apenas recentemente a profissão de historiador tenha sido regulamentada. Ademais, os financiamentos públicos para obras do tipo "enciclopédicas" precisa ser cuidadosamente analisado, principalmente sob a luz da pluralidade de discursos necessária para que não tenhamos uma memória coletiva extremamente seletiva *(creio ser impossível não ser seletiva)* e excludente. E isso também é um exercício de democracia. 

Por fim, a discussão sobre tradição e modernidade. Ótimo debate trazido por Araújo para nos ajudar a entender porque conseguimos identificar facilmente certos cantores nacionais enquanto os outros são esquecidos - ou nem mesmo considerados em coletâneas e arquivos públicos de instituições como o Museu da Imagem e do Som (MIS):

"Enquanto isso, toda uma outra vasta produção musical popular que não está identificada nem à "tradição" nem à "modernidade" encontra serias dificuldades para obter reconhecimento da crítica ou espaço na historiografia. (590) E é o que acontece com esta geração de cantores/compositores considerados "cafonas". Afinal, nomes como Waldik Soriano, Nelson Ned ou Agnaldo Timóteo estão muito longe de qualquer coisa do que se considera de "raiz" e "tradição" ou "modernidade" e "evolução". Ao contrário, são geralmente associados a "atraso", "subdesenvolvimento" e "pobreza". Na visão positivista de "linha evolutiva da música popular", estes artistas estariam muitos rolos atrás daqueles identificados à "modernidade".  Portanto, fora da "tradição" ou da "modernidade", não há salvação. Compreende-se assim porque esta geração de cantores/compositores tem sido relegada na maioria das "memórias enquadradas" da nossa música popular e não tenha tido - até agora nenhuma voz na historiografia.

E nisto reside todo o mistério do "brega” ou "cafona": recebem estes adjetivos aqueles artistas e aquela produção musical que o público de classe média não identifica, ou encontra dificuldade de identificar, à "tradição" ou à "modernidade". Quanto mais longe dessas duas vertentes, mais perto do "brega", e vice-versa. Creio que esta explicação acaba de uma vez por todas com aquela máxima de que brega é uma coisa que todo mundo reconhece quando ouve mas não sabe definir o que é. Até porque, algumas tentativas de definição não me pareceram muito satisfatórios. 

(...)

O cantor ou compositor deste país que não tiver a sua obra musical identificada à "tradição" ou à "modernidade" está condenado ao desprezo da crítica e ao esquecimento por parte dos "enquadradores" da memória da nossa música popular. E é o que acontece hoje com artistas como Agnaldo Timóteo, Nelson Ned, Waldik Soriano, Odair José e vários outros que não se enquadram em nenhuma daquelas duas vertentes - vão todos para o ralo comum do "brega" ou do "cafona". Mas de que maneira esta geração de cantores/compositores analisa este fato? "Não existe música brega; o que existe são analistas preconceituosos", define Agnaldo Timóteo."

A proposta trazida pelo autor de Eu Não Sou Cachorro Não para explicar o limbo em que se encontram autores como Waldick Soriano, Agnaldo timóteo, Nelson Ned, Luiz Ayrão é uma ótima tese e nos faz pensar se também não fazemos com autores contemporâneos um exercício de seletividade semelhante. Vamos fazer um rápido exercício de memória:

"Era só mais um Silva
Que a estrela não brilha 
Ele era funkeiro mas era pai de família
É só mais um Silva
Que a estrela não brilha 
Ele era funkeiro mas era pai de família

Logo nas primeiras palavras você identificou que se trata do Rap do Silva, composto e gravado há quase 20 anos atrás pelo Mc Marcinho. Relegado ao gueto do funk à época do seu lançamento, as produções musicais do tipo "charme" e "funk melódico" ganharam recentemente um enorme espaço nas festas, casamentos, aniversários e boates, superando a seletividade do mundo funk ao qual foi confinada à época do seu lançamento. Mas e se o trecho de música fosse esse aqui:

"Em meio aos holofortes vai assistir eu dançar e beber
Todos me olham sem eu perceber
Dona da noite sou eu, deu pra ver

E no meu camarote é assim
A mídia e o Ibope focados em mim
São vários celulares virados pra cá
E eu vou descendo na intenção de provocar

Desço com o copo na mão, assediada
Uma selfie no Instagram, tô estourada
As inimigas ficam pra morrer
Quando me ver descer, descer, descer"

Aí você não faz a menor ideia, né? Bem, eu também não fazia. É uma letra da Mc Marcelly, atualmente restrita ao nicho do funk, mas já considerado por alguns como representante de uma nova vertente de autoras femininas que produzem letras voltadas para a autonomia e empoderamento femininos - com o vocabulário típico do "funk batidão", é claro. Em quais festas, casamentos, aniversários e boates as músicas da Mc Marcelly tocarão - agora ou daqui a alguns anos? E quais "enquadradores" irão se lembrar dela no momento de compor a historiografia da música brasileira, no futuro?

O exercício de reflexão - pessoal, ams também como sociedade democrática que desejamos ser - é muito importante, e sem sombra de dúvida o maior mérito da obra de Araújo é o de nos mostrar que democracia não se constrói só com leis, instituições e articulações políticas, mas também nos aspectos culturais mais cotidianos e na construção dos discursos históricos que passaremos para as futuras gerações.

Talvez seja uma questão de tempo. Como bem o disseram Agnaldo Timóteo e Luiz Ayrão: o reconhecimento de uma obra artística encontra certa base no processo social; a avaliação da obra de um compositor de música popular no Brasil pode mudar e tem mudado com o tempo. Mas o tempo, por si só, não fará muito se não fizermos o esforço - individual e coletivo - de repensarmos aspectos importantes da nossa cultura, da nossa história e até mesmo do que queremos ser como democracia. Não somos cachorro não: somos uma jovem democracia, buscando ser cada vez mais democrática e inclusiva.

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