segunda-feira, 6 de março de 2017

Mérito pra quem?



Após assistir o ótimo seriado 3% no Netflix (a despeito das críticas negativas feitas sobre a série, que podem ser conferidas aqui, aqui e aqui, ainda a considero um bom entretenimento e ótima para o orçamento que tinha, que era bem mais modesto do que as demais séries estrangeiras, como se pode ver aqui) , fiquei pensando sobre o tema central da série, a bendita da meritocracia.

Frases como "Você é o que você merece ser", repetidas pelo vilão Ezequiel, fazem com que o "Processo" se transforme na materialização do discurso da "meritocracia", tão em voga em alguns círculos políticos atualmente. Segundo a wikipedia (porque citar a wikipedia não é crime), meritocracia é um sistema de gestão que considera o mérito como a razão principal para se atingir posições de topo, sendo um sistema no qual as posições hierárquicas devem ser conquistadas com base no merecimento, considerando valores como educação, moral e aptidão específica para determinada atividade. Mas quais seriam estes valores que formam a base do merecimento? E como fazer uma valoração "meritória" se o ponto de partida dos "competidores" não é o mesmo para todos? Por fim: por que enxergarmos a sociedade como uma gigantesca "competição", em que só os detentores de certos valores poderiam "chegar ao topo" em detrimento dos outros?

E não sou a única que penso dessa forma. Recentemente publicado no jornal O Estadão, o artigo da juíza Fernanda Orsomarzo gerou polêmica ao defender que: "ao longo da minha vivência como cidadã, e não apenas como magistrada, notei que, para muitos, o esforço pessoal não era suficiente. Faltava algo. Obviamente existem exceções à regra, como o Ministro Joaquim Barbosa, negro e de origem pobre, ou, ainda, o apresentador de televisão Silvio Santos, o qual, antes de se tornar um dos homens mais famosos do Brasil, trabalhou como camelô. Todavia, pautar nosso raciocínio em “pontos fora da curva”, além de revelar certa dose de desonestidade intelectual, remete-nos à conclusão de que teria faltado força de vontade às pessoas que, nascidas nas mesmas condições do Ministro e do apresentador, não tiveram o mesmo destino. E tal afirmação, sabemos, é esdrúxula.
O cerne de toda a polêmica questão consiste na necessidade do reconhecimento de privilégios. Isso porque, ao falarmos de meritocracia, voltamos nossa atenção exclusivamente ao mérito, deixando de lado a condição de vantagem que alguns grupos de indivíduos têm em relação aos demais.
Nascer branca no seio de uma sociedade racista e de tradição escravocrata é, inequivocamente, um privilégio a ser considerado. Há uma dívida histórica para com o povo negro: foram 354 anos de escravidão oficial. A abolição, teoricamente ocorrida há 130 anos, jamais significou a inclusão social do negro, que sofre até hoje as consequências desse nefasto período da História."

Nossa Constituição de 1988 previu, dentre os objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com a progressiva redução das desigualdades sociais. Nota-se, a preocupação com a promoção do bem de todos, sem discriminações de qualquer natureza (artigo 3º, incisos I, III e IV). Contudo, o constituinte, ao fazer constar na Carta Maior tais princípios, quis estabelecê-los como metas a serem atingidas ao longo da caminhada democrática, rompendo com a ideia de uma simples “igualização estática”. Nesse sentido, mais do que coibir práticas discriminatórias, a sociedade deve buscar implementar e viabilizar iguais oportunidades aos indivíduos, como meio de se corrigir as injustiças oriundas da política de exclusão das minorias promovida desde o processo de colonização do Brasil.
Como diria o Ministro Marco Aurélio (STF), por ocasião do julgamento da APDF 186, que tratava da constitucionalidade da política de cotas étnico-raciais para a seleção de estudantes da Universidade de Brasília: “a meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”.

Esta seria a correta resposta ao discurso monocórdico repetido pelo Emanuel aos jovens que participaram do "processo", que não se trata de meritocracia - mas sim de uma forma não tão velada assim de aristocracia. E qual o mérito que existe em um "processo" que só existe para chancelar o privilégio de poucos sobre o sofrimento e a privação de muitos?


LIDERANÇA FORTE versus SOCIEDADE FRACA

Ao iniciar a primeira série brasileira do Netflix, cujo nome é 3% e se trata de um processo seletivo, achei que a discussão do GEB seria em torno de questões sociológicas. Estava enganada, ao termino do oitavo episódio (último até o momento), me deparei com questões filosóficas, por assim dizer.

A discussão sobre o mérito, muito presente na sociedade contemporânea, pautada por criticas no que diz respeito a igualdade de direitos, não aparece na Série desta forma. Assim, falar de classe social se resumiria apenas ao personagem oriundo de uma família que se considerava no direito de ser aprovado no processo por pertencer a um grupo mais rico, o que não ocorre.

Assim, o que mais me chamou atenção na Série foi a questão da liderança. Quem conduz o processo seletivo é quem define o tipo de indivíduo que a sociedade (no caso, o Maralto). Na mão de Ezequiel, liderança do processo, está a escolha de uma geração, esta refletida no papel deste líder.

A disputa para a liderança do processo demostra que nem todos concordam com a escolha do processo e, assim, penso que outras gerações podem ter sido formadas com outro tipo de escolha o que deve causar no Maralto uma disputa interessante de caráter que gostaria de ver, caso a série continue.

O diálogo do Ezequiel com a Michele no último episódio me fez lembrar do PT. Afinal de contas, ele diz ter participado da “causa” e ter participado do processo seletivo nessa condição. O que fez ele mudar de “lado”? Até que ponto uma liderança é tão importante para uma geração e para a construção da sociedade?

Outro ponto que observei foi a divisão mais equânime de pretos e brancos no processo seletivo, na aprovação final e também no Conselho do Maralto. Além de 4 fazerem parte do elenco principal da série. Os brancos eram da “causa”, os pretos eram os mais pobres e marginalizados, únicos que não se “vendem” no final do processo (apesar da paixão cega do menino Fernando).


A personalidade individual dos personagens e relação entre eles nas provas coletivas são pontos importantes, contudo, o imaginário coletivo sobre o significado do Maralto para aquela sociedade do continente é o principal motor de uma cegueira coletiva em prol de algo que se desconhece, mas se quer alcançar, custe o que custar.

domingo, 5 de março de 2017

Meritocracia, sim e não



O tema é meritocracia, as semelhanças entre um futuro distópico e o Brasil de hoje são um chamado à reflexão. Esse é o mote da série "3%". Os personagens devem passar por uma seleção para saírem de um lugar onde levam uma vida ruim para outro onde existe uma vida completamente feliz. A estética da série é interessante, o “lado de cá”, onde se vive mal, é retratado como parecido com as periferias brasileiras. As pessoas vestem trapos rasgados, circulam por becos sujos, por entre barracos. Já o “lado de lá”, chamado Maralto, é um local com tecnologia avançada, retratada pelo ambiente estéril e “clean” do local onde ocorre o processo de seleção, uma espécie de embaixada do lado feliz, contrastando com a pobreza.

Apesar da superioridade tecnológica e da suposta superioridade geral das pessoas do “lado de lá”, o local do processo parece pouco agradável, com toda a luz artificial, as roupas de cores frias, poucos itens de decoração e poucas plantas. Na verdade, pelo aspecto da cenografia, o “lado de cá” parece até mais agradável que o local do processo, porque pelo menos se vive ao ar livre.

A série conta com atores negros em número maior do que o que estamos habituados a ver nas produções brasileiras em geral. Há poucos personagens com traços indígenas ou que lembrem os nordestinos e muitos brancos com traços europeus, numa espécie de retrato da classe média do sudeste brasileiro, acrescentada de negros. Observei que mesmo vestindo trapos, os personagens do lado pobre aparecem com barbas e cabelos bem cortados e dentes bonitos. Achei os atores muito bons, porém eles foram postos para representar personagens um tanto caricatos, embora vários personagens adquiram maior complexidade ao longo dos episódios. 

Algumas coisas são mal explicadas, como por exemplo, qual a relação entre esses dois mundos retratados? Tirando alguns detalhes como presença de alguns personagens armados e de uma personagem aparentemente usando bebida alcóolica, faltam mais informações sobre a vida no “lado de cá”. Não fica claro também quem divulga informações sobre o processo ou quem governa os lados. Fala-se num tal casal fundador, que teria criado esse mundo superior e existe uma reverência religiosa a esse casal, inclusive com cultos. Não aparece trabalho, escola, artes ou outros aspectos da vida no lado de lá. Parece haver famílias heteronormativas e pseudomonogâmicas, como a “família tradicional brasileira”. O que sabemos é que do lado pobre existem dois sentimentos muito fortes: insatisfação com a vida que se leva e esperança de viver uma vida melhor “do lado de lá”. O processo de seleção é uma espécie de vestibular, acontece sempre que os jovens fazem 20 anos, e só existe uma chance. Aos reprovados a única esperança que existe é fazer com que seus filhos passem no processo.

Aliás, nesse sentido, o processo mostrado na série é interessante, por que oferece a todos a mesma oportunidade de estar no Maralto e considera que todos são iguais e vivem numa mesma irmandade, tanto que os que venceram o processo não podem ter filhos. Se eles tivessem filhos, isso seria acreditar que, por terem nascido de pais virtuosos, os filhos também seriam necessariamente virtuosos e merecedores da felicidade.  Ao deixar que todos os seus companheiros na vida feliz sejam gerados por membros da vida infeliz, a mensagem passada pelos que criaram o processo é: vocês perderam a competição, são inferiores, mas os filhos de vocês podem ser superiores e nós os aceitamos juntos de nós. E mais, é como se dissessem: nós não acreditamos que ser virtuosos nos fará gerar filhos virtuosos, não somos virtuosos por nenhuma característica biológica passível de ser herdada. É como uma espécie de negação radical da eugenia. Ao mesmo tempo, essas pessoas abrem mão de viver com crianças, já que os mais jovens da comunidade terão 20 anos. E mais: eles abrem mão de eles próprios educarem as crianças para serem virtuosas. É como se houvesse  também uma total negação da Pedagogia e uma transferência da educação toda para o lado pobre. Mas, e aí? Existem educadores atravessando do Maralto para o lado pobre? Não se sabe. 

Sobre a vida no Maralto, parece haver uma desinformação generalizada no “lado de cá” sobre o “lado de lá”. Nem os personagens que vivem do lado ruim e nem os expectadores chegam a saber o que acontece de fato nesse suposto paraíso na Terra. Os personagens ficam apenas com uma promessa de vida feliz. Alguns moradores do lado pobre se mostram revoltados e buscam realizar atos destrutivos contra o processo, de forma pouco organizada e com pouco sucesso.

A série peca em alguns momentos por falta de realismo na composição psicológica dos personagens. O trecho em que os candidatos ficam confinados e precisam conseguir comida e água me lembrou um pouco o experimento da prisão Stanford, porém houve exagero, não pareceu verossímil. Apesar disso, a série é boa em geral, não empolga em excesso, mas superou minhas expectativas iniciais.

Os dois sentimentos norteadores da vida no “lado de cá” são bem conhecidos do povo brasileiro em geral:  insatisfação e esperança numa vida melhor. Na verdade, todo o sistema capitalista tem na ideia de Meritocracia um dos pontos fortes de sua ideologia. Vou usar Meritocracia aqui com o seguinte sentido: a ideia é que toda pessoa, independentemente de sua classe social de origem, desde que se esforce o suficiente, pode ter sucesso e obter qualquer ganho material que desejar. Analisando do ponto de vista sociológico, é claro que as chances de alguém conseguir chegar ao topo da pirâmide social partindo de baixo é muito pequena, de modo que julgar que o capitalismo é justo a partir de alguns exemplos de pessoas que constituem exceção à regra mostra alto grau de miopia. Mas o fato é que a Meritocracia pode ser uma ideia alentadora que dá esperança a muita gente. 

É claro que essa esperança não é dada a todos e nem é igual em todos os países e em todas as épocas. Eu me lembro bem de uma conversa que tive com um amigo francês em 2010. Ele disse que uma coisa que admirava no Brasil era a esperança que as pessoas tinham no futuro. Para ele, aqui as pessoas viviam entusiasmadas, enquanto na França as pessoas eram cínicas. Ao mesmo tempo, ele também observava outro contraste: aqui as possibilidades de ascensão social eram quase inexistentes, ao contrário da França. Eu lembro que na época discordei, dizendo que eu mesma era exemplo de alguém que havia tido uma ascensão social e ele disse que isso era porque eu era muito esperta, mas não era algo comum. Lembro também que eu não consegui entender o que ele quis dizer quando citou o cinismo da vida na França. Curiosamente, hoje consigo entender perfeitamente, porque estamos numa fase assim no Brasil. Somos um país atrasado, onde tudo chega depois. Parece que a crise chegou depois aqui também. Hoje também já entendo a crítica que ele fez sobre a nossa pouca mobilidade social. Na verdade, creio que essa mobilidade tem mais a ver com classe média e é sempre mais difícil para os miseráveis. Eu não saí da miséria, apenas fui a primeira médica da família.

Eu citei a impressão que eu já tive sobre Meritocracia para lembrar algo que nem sempre é lembrado quando se discute esse tema: o conceito de sucesso é muito pessoal e depende da situação social de onde a pessoa parte. O crescimento econômico parece aumentar em todos os lugares o número de pessoas que compõe a classe média e a classe média possui suas gradações (classe média baixa, classe média alta). Ou seja, na vida real não existe, como há na série, um tudo ou nada, não existem dois lados e sim muitos lados. E isso é um grande reforçador do discurso da Meritocracia. Muitas pessoas têm em sua vida real exemplos de alguém que passou de muito pobre para pouco pobre, de pobre para classe média baixa e etc. Um filho de pais analfabetos que teve o mérito de terminar o ensino fundamental, o filho de um trabalhador que ganha salário mínimo que teve o mérito de fazer um curso técnico, o filho de um técnico que conseguiu terminar um curso superior, todas essas pessoas se consideram vitoriosas, todas “passaram no processo”. De certa forma, na prática, o curso técnico do filho do gari com certeza gera mais satisfação que o diploma universitário do filho do médico. O filho do médico não fez mais que sua obrigação, já o filho do gari realizou o sonho de toda a sua família. 

Como então um burguês de família rica quer convencer aquele filho de gari de que não existe Meritocracia?  Por acaso ele está fazendo pouco caso da vitória desse pobre? Logo esse filho de gari que cresceu na comunidade violenta e fez a difícil escolha de ser evangélico ao invés de traficante. Logo esse filho do gari que precisou de muita fé na vida para resistir ao uso de drogas, para seguir disciplinado estudando e trabalhando. Como um playboy agora vem dizer que esse filho do gari está errado, alienado, enganado; que ele não deveria se orgulhar, que ele não deveria acreditar num futuro melhor, porque ele é explorado pelo capitalismo? Logo esse filho de gari que não teve a opção de fumar maconha só para relaxar numa bela cachoeira numa quarta-feira; de encher a cara de bebida, voltar para casa e estar tudo tranquilo; de experimentar cocaína só uma vez e depois não querer mais porque ele tem coisas mais interessantes para lhe dar prazer. Não esse filho de gari não teve essa escolha, ou ele optava pela igreja, pela disciplina e liberava sua tensão cantando louvores ou ele iria cair na tentação de acender aquele cigarro de maconha toda vez que visse seus pais chorando porque estão doentes e não tem médico no posto, ou toda vez que tivesse um tiroteio no bairro e algum amigo ou primo aparecesse morto. Com que direito as pessoas bem nascidas, enfadadas com sua vida medíocre que não vai para frente nem para trás, apontam o dedo para esses vitoriosos e tentam convencê-los de que eles não estão “do lado de lá”?

Acho que a discussão sobre Meritocracia deve partir primeiramente dessa consideração. Não existem dois lados na vida real, existem muitos lados, muitas histórias, muitas vitórias escondidas em coisas simples. Por isso há de se ter certo cuidado quando se nega a Meritocracia, as pessoas sempre tendem a discordar de ideias generalizantes com exemplos particulares. É importante pensar nos lugares de escuta, tanto quanto nos nossos lugares de fala. Escutar que Meritocracia é falácia quando se vive em meio a pequenos grandes sucessos pode não ser fácil. A pessoa pode tender a simplesmente não escutar.

Pensando na série e na semelhança que o processo tem com o vestibular, não pude deixar de lembrar que quando eu fiz meu vestibular para Medicina o número de candidatos por vaga era justamente 33, ou seja, eu literalmente fiz parte dos 3%. Fui pesquisar no Google e descobri que até que que eu tive sorte na época, porque em 2017, a relação candidato/vaga na USP foi próxima a 70 e na UERJ próxima a 90 para o curso de Medicina! 

Lembrei também da discussão recente sobre a moça que ficou em primeiro lugar em Medicina na USP. Ela, que é negra, disse que “a casa grande pira quando a senzala vira médica” e, claro, deu no Catraca Disney que ela “gerou polêmica”. Algumas pessoas diziam que ela deveria se orgulhar do próprio mérito ao invés de ter um discurso tão, digamos, revoltado. Outros diziam que ela era uma exceção e que Meritocracia é falácia. O fato é que ninguém precisa abrir mão de enxergar o particular para enxergar a sociologia e a menina pode ficar com as duas coisas: seu mérito particular e sua visão crítica que explica por que ela é sim uma exceção.

Porém, além da crença na Meritocracia, o que me incomoda de fato nessa discussão é que, ainda que suponhamos que de fato Meritocracia exista e todos, do filho do miserável ao filho do milionário, tenham a mesma possibilidade de enriquecer; ainda que suponhamos que  haja de fato uma igualdade no processo de competição; talvez o questionamento mais importante não esteja sendo feito: por que devemos viver em constante competição uns com os outros? Por que devemos viver num mundo de suposta escassez? Lutamos pelas poucas vagas em faculdades e pelos poucos empregos bons. Lembrei da cena do filme “Eu, Daniel Blake” em que ele vai assistir, junto com outros desempregados, uma aula sobre como criar um currículo atrativo, e o professor cita que existem dezenas de aspirantes para cada vaga de emprego. Devemos achar isso natural? Devemos nos conformar que sempre o planeta impôs desafios a todas as formas de existência de modo que apenas as mais adaptadas sobrevivem? Devemos então abraçar um darwinismo social e conceber a sociedade como uma selva de pedra em que não há lugar ao sol para todos? 

Parece fazer sentido a tese de que os povos lutaram ao longo dos séculos para obter recursos escassos. Porém, é importante dizer que admitir a competitividade como algo natural do ser humano não significa admitir o capitalismo como natural. A competitividade talvez seja tão natural quanto a solidariedade e o senso de cooperação. O capitalismo se fortalece muito com o discurso da Economia como ciência mais ou menos exata e autônoma. Só que o capitalismo é um instrumento de perpetuação da colonização de uns povos por outros e precisa ser superado. Desconstruir alguns de seus mitos é um passo fundamental para isso, de modo que a série “3%”, apesar de alguns defeitos, ao nos fazer criticar a Meritocracia, teve sim seu mérito.

A redenção de Joana



3% é uma série brasileira (acho que é uma co-produção), cujo mote é a desigualdade social. Numa sociedade hipotética, todos os cidadãos vivem em um continente em condições indignas de vida, e almejam chegar a uma ilha, onde reinam a liberdade, a igualdade e a fraternindade, e onde todos os serviços públicos funcionam.

Antes mesmo de ver a série, imaginei que se tratasse de Florianópolis, cidade que ainda não conheço, mas que sei que funciona nessa dicotomia entre uma ilha onde tudo funciona muito bem, e o continente, onde fica a perfieria do município. Depois, pensei que poderia se tratar da cidade de Belo Horizonte, cuja grelha original, que agrupa do lado de dentro da Avenida do Contorno as zonas mais ricas e importantes da cidade hoje, é responsável por exatos três por cento do tamanho da cidade, que cresceu de forma desordenada além da Avenida do Contorno. (cf. Antonio Risério, em ‘A cidade no Brasil’), Depois, ainda, pensei se tratar da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, que funciona como uma espécie de bolha de qualidade de serviços públicos e de riqueza quando comparado ao restante da cidade: um verdadeiro feudo, ou, ainda, o condomínio zona-sul.

Assistindo à série, da qual gostei bastante, percebi que os paralelos a ser feitos poderiam, na verdade, ser outros.

Na verdade, toda a série é estruturada para caber em diversos tipos de metáforas da realidade. A começar pelos nomes. Tudo tem um nome genérico, que significa a própria coisa. As pessoas moram num continente chamado Continente, e devem passar por um processo chamado Processo a fim de cruzar o alto-mar para chegar ao Maralto. Os que discordam de tudo isso lutam por uma causa chamada de Causa. Essa ausência de nomenclatura formal (ou a transformação em nome do próprio do que é apenas substantivo comum) é um recurso estético que colabora para criar uma concepção de arquétipo nos personagens e nos lugares e, que por isso mesmo, os torna mais universais e mais interpretáveis de acordo com a realidade de cada um.

Dessa forma, a dicotomia Continente-Maralto pode ser, de maneira simultânea, Florianópolis, Belo Horizonte, Rio de Janeiro ou qualquer outra cidade brasileira (eu diria todas) nas quais a desigualdade social e socioespacial sejam uma questão relevante.

De maneira similar, o Processo pode ser assimilado imediatamente como o vestibular ou um concurso público, mas, de maneira menos imediata, também como um casamento, um intercâmbio, a decisão de estudar/trabalhar na cidade grande e tudo o mais que tenha algum significado histórico associado à rápida ascensão social de uma pessoa ou grupo de pessoas, ao elevador da riqueza.

A Causa, por sua vez, pode estar associada ao comunismo, à anarquia, aos grêmios estudantis e centros acadêmicos, ao Fórum Social Mundial e a todo e qualquer movimento político que tenha por propósito questionar ou subverter a ordem social vigente.

O Maralto, que praticamente não aparece durante toda a série mantendo-se numa aura de mistério, pode ser invocado como o Éden, o Paraíso, o Eldorado, esse lado de lá carregado de promessas insondáveis que vão da vida eterna às setenta virgens e que todo mundo quer, mas que ninguém sabe muito nem como nem porquê.

*** A PARTIR DAQUI, ESTE TEXTO PODE CONTER SPOILERS ***

Quanto aos personagens, a série contém muitos, uns mais cativantes do que outros, uns com interpretações melhores do que outros, mas não quero fazer uma exegese de todos eles. Gostaria de me concentrar em dois deles.

O primeiro deles é o Marco Alvarez (Rafael Lozano). Marco é o jovem bem-nascido, que carrega consigo todos os requisitos para carimbar o quanto antes o passaporte para a glória e o sucesso. Ancorado na ideia de linhagem, Marco é aquele que estudou nas melhores escolas, que teve o melhor preparo, todo o amor e todo o tempo do mundo para se dedicar ao que há de mais importante em sua vida: O Processo.

Ele tem a tranquilidade que só tem aquele que sabe ter sido feito do mais fino cristal. É delicado, valente, esperto e, de alguma maneira, sagaz. Ele é branco, rico, bonito e sedutor, e tem um sobrenome que o remete a uma família importante, de posses e de sucesso. Ele sabe que nada pode dar errado.

O personagem de Marco lembra muito o engenheiro que negocia a venda do apartamento de Clara, no filme Aquarius. Ele é obstinado com o sucesso, tem sangue nos olhos, não tem dúvida de que o mundo tem que se prostrar aos seus pés e que os mares se devem abrir à sua passagem.

Senti uma alegria quando ele morreu. Nunca funcionei pela lógica do sobrenome e, quando ele morre e não continua no processo, senti a alegria revolocionária de ver as cabeças da nobreza rolando, de ver todos aqueles sobrenomes empolados sendo convertidos no que há de mais material, o sangue seco, inerte, que não distingue os nobres dos plebeus e os mescla na mesma carnificina de guilhotina, anárquica, e que só choca porque é a primeira vez desde sempre que se vê a morte violenta ser exercida de maneira democrática, para todos.

A outra personagem, Joana, é completamente cativante (ao menos para mim), embora ela tenha sido desenhada para ser blasé. É uma personagem mal construída, no geral, pouco crível.

Joana é uma mulher pobre, negra, que vem de um passado de privações e traumas. Isso se resulta no presente em um comportamento arredio e de baixa expressividade (muito bem interpretado pela atriz, Vaneza Oliveira; deve ser bem desafiador interpretar um personagem pouco expressivo). Mas Joana é um gênio; é inteligentíssima (e também é linda).

Nas provas que se desenrolam n’O Processo, Joana sempre tem um comportamento de destaque. Dobrando o mundo a seu favor, Joana chega a confundir a banca de avaliação, que não espera resultados tão positivos. No desafio do cubo, em que todos deveriam fazer dez cubos, a maior parte não consegue, mas Joana faz doze. No desafio da descrição da sala, Joana aponta que a moça que compõe a cena é cega, o que contribui sobremaneira para a resposta final da prova em grupo.

Mas a coisa fica boa mesmo na prova dos Jogos Mortais. Enquanto todos brigam entre si, pesquisando as formas certas de lutar e de jogar, Joana procura um caminho alternativo e sobe por uma tubulação. Ao final do tubo, Joana encontra a banca de avaliação.

Esse espisódio confirma a presença de Joana como uma espécie de semideus na série. Enquanto todos se preocupam com o terreno, Joana acede aos céus (sobe o cano), e encontra Deus (Emanuel e a banca de avaliação). De cima, ela vê tudo, tem a visão divina de tudo que acontece na Terra. Então, como um anjo (ou como Jesus, se preferirem), ela é instada a descer à Terra e resolver os problemas dos homens. E Joana desce à Terra, novamente. E, como num milagre, ela diz ‘Podem parar agora’, e todos param. É como se nesse momento a condição divina de Joana ficasse patente não só para ela e para os de cima, como também para os outros. A partir desse episódio, Joana é um ser que transita por ambos os mundos; sua condição a coloca nesse papel meio anjo, meio Jesus Cristo.

Já no último episódio, sustentando sua condição divina, Joana aos pés do Maralto é impedida de adentrar no Paraíso. Emanuel (Deus), certamente por inveja do brilho da jovem Joana, cria uma situação em que ela precise se mostrar humana (confessar-se assassina) em prol dos benefícios do paraíso. Ela, como alguém que não é deste mundo, mantém sua postura ética/heroica/divina e não comete o pecado que seria necessário à sua entrada no Maralto. Sua entrada no paraíso seria, simbolicamente, a condenação do resto da humanidade. É aí que entra a cena final da primeria temporada, essa cena linda. Joana redime toda a humanidade. Nega para si os benefícios do paraíso, e aceita a condição humana/terrena. Despertando a ira dos deuses (e aqui já num papel que se assemelha mais ao heroísmo de Ulisses, da Odisséia), Joana, por ser a mais bela e a mais inteligente, decide trilhar seu próprio caminho no Continente, e mais, blasfema contra o Processo.

Surfando na membrana mitológica que separa os deuses dos homens, Joana encarna encantadoramente esse papel que é, simultaneamente Jesus Cristo, Lúcifer, Anjo, Exu, Ulisses.

Joana insere a magia na discussão, e traz um aspecto mágico/simbólico que está sempre presente, mesmo na mais cartesianas das lógicas.

O mundo, quem diria, talvez jamais esteja farto de semideuses.