segunda-feira, 6 de março de 2017

Mérito pra quem?



Após assistir o ótimo seriado 3% no Netflix (a despeito das críticas negativas feitas sobre a série, que podem ser conferidas aqui, aqui e aqui, ainda a considero um bom entretenimento e ótima para o orçamento que tinha, que era bem mais modesto do que as demais séries estrangeiras, como se pode ver aqui) , fiquei pensando sobre o tema central da série, a bendita da meritocracia.

Frases como "Você é o que você merece ser", repetidas pelo vilão Ezequiel, fazem com que o "Processo" se transforme na materialização do discurso da "meritocracia", tão em voga em alguns círculos políticos atualmente. Segundo a wikipedia (porque citar a wikipedia não é crime), meritocracia é um sistema de gestão que considera o mérito como a razão principal para se atingir posições de topo, sendo um sistema no qual as posições hierárquicas devem ser conquistadas com base no merecimento, considerando valores como educação, moral e aptidão específica para determinada atividade. Mas quais seriam estes valores que formam a base do merecimento? E como fazer uma valoração "meritória" se o ponto de partida dos "competidores" não é o mesmo para todos? Por fim: por que enxergarmos a sociedade como uma gigantesca "competição", em que só os detentores de certos valores poderiam "chegar ao topo" em detrimento dos outros?

E não sou a única que penso dessa forma. Recentemente publicado no jornal O Estadão, o artigo da juíza Fernanda Orsomarzo gerou polêmica ao defender que: "ao longo da minha vivência como cidadã, e não apenas como magistrada, notei que, para muitos, o esforço pessoal não era suficiente. Faltava algo. Obviamente existem exceções à regra, como o Ministro Joaquim Barbosa, negro e de origem pobre, ou, ainda, o apresentador de televisão Silvio Santos, o qual, antes de se tornar um dos homens mais famosos do Brasil, trabalhou como camelô. Todavia, pautar nosso raciocínio em “pontos fora da curva”, além de revelar certa dose de desonestidade intelectual, remete-nos à conclusão de que teria faltado força de vontade às pessoas que, nascidas nas mesmas condições do Ministro e do apresentador, não tiveram o mesmo destino. E tal afirmação, sabemos, é esdrúxula.
O cerne de toda a polêmica questão consiste na necessidade do reconhecimento de privilégios. Isso porque, ao falarmos de meritocracia, voltamos nossa atenção exclusivamente ao mérito, deixando de lado a condição de vantagem que alguns grupos de indivíduos têm em relação aos demais.
Nascer branca no seio de uma sociedade racista e de tradição escravocrata é, inequivocamente, um privilégio a ser considerado. Há uma dívida histórica para com o povo negro: foram 354 anos de escravidão oficial. A abolição, teoricamente ocorrida há 130 anos, jamais significou a inclusão social do negro, que sofre até hoje as consequências desse nefasto período da História."

Nossa Constituição de 1988 previu, dentre os objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com a progressiva redução das desigualdades sociais. Nota-se, a preocupação com a promoção do bem de todos, sem discriminações de qualquer natureza (artigo 3º, incisos I, III e IV). Contudo, o constituinte, ao fazer constar na Carta Maior tais princípios, quis estabelecê-los como metas a serem atingidas ao longo da caminhada democrática, rompendo com a ideia de uma simples “igualização estática”. Nesse sentido, mais do que coibir práticas discriminatórias, a sociedade deve buscar implementar e viabilizar iguais oportunidades aos indivíduos, como meio de se corrigir as injustiças oriundas da política de exclusão das minorias promovida desde o processo de colonização do Brasil.
Como diria o Ministro Marco Aurélio (STF), por ocasião do julgamento da APDF 186, que tratava da constitucionalidade da política de cotas étnico-raciais para a seleção de estudantes da Universidade de Brasília: “a meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”.

Esta seria a correta resposta ao discurso monocórdico repetido pelo Emanuel aos jovens que participaram do "processo", que não se trata de meritocracia - mas sim de uma forma não tão velada assim de aristocracia. E qual o mérito que existe em um "processo" que só existe para chancelar o privilégio de poucos sobre o sofrimento e a privação de muitos?


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