sábado, 27 de maio de 2017

E o Oscar vai para La La Land #sqn

O tema é racismo e vamos discutir o filme “Moonlight”. Bem, o que tem a ver uma coisa com a outra? Foi meu primeiro pensamento. Mas, pensando bem, mesmo eu não achando que o filme seja explicitamente sobre racismo, consegui a partir dele refletir sobre algumas questões relacionadas ao “ser negro”.

Primeiramente, um filme ganhador do Oscar e que não tem atores brancos e que não está ali para falar diretamente sobre racismo. Ponto para Hollywood. Eu tenho a impressão de que o negro é retratado no cinema americano de forma bem mais digna que na TV brasileira, onde das duas uma: ou o negro é empregado ou o assunto é racismo, tratado de forma quase didática e, por vezes, caricata. Já no cinema americano temos os filmes de Denzel Washington e Will Smith, nos quais o fato de o protagonista ser negro não precisa ser uma questão. Porém talvez estivesse faltando um filme em que fosse retratada a vida de um negro mais “gente como a gente”, não uma vida de rico e bem-sucedido, embora seja importante que o negro apareça nesse lugar também.

O filme retrata a vida de um jovem negro, pobre, morador da periferia, como tantos outros nos Estados Unidos. Porém o tema central é a vivência da homossexualidade por esse jovem, imerso nesse meio. Aparecem outros temas paralelos, mas também ligados à experiência de ser um negro periférico.

Está lá a relação com o tráfico e o uso de drogas. Criado por sua mãe sem convivência com o pai, o protagonista tem no chefe do tráfico da região a figura paterna. Esse é um personagem interessante, apresentado como bom, apesar de ser traficante, o que também não é comum no cinema americano. Ele é solidário e paciente com a criança tímida e perseguida por homofobia. Ao ser questionado sobre homoafetividade, não se mostra homofóbico, como poderia ser esperado vindo de um homem com característica de macho alfa. Quando confrontado com sua condição de traficante, ele se mostra triste e consciencioso do mal que gera às pessoas a partir do tráfico. Talvez por essas contradições o personagem seja tão sedutor e carismático, tendo inclusive rendido o Oscar de ator coadjuvante.

O mal causado pelas drogas é retratado na figura da mãe do protagonista. Vale notar que o filme é claramente dividido em 3 partes: infância, adolescência e adulto jovem. As mudanças da mãe acompanham essas partes, na primeira a mãe ainda está bem, mas começando a apresentar alguns conflitos que lhe geram perturbação emocional, inclusive certo ciúme da relação do filho com o traficante. Na segunda parte a mãe está gravemente afetada pelo uso de droga e na terceira parte ela aparece em uma clínica de tratamento, porém sem uma recuperação total.

O tema da violência também está presente. Na segunda parte o traficante já não aparece (não me lembro se isso é dito no filme, mas acho que ele morreu, a morte precoce muito mais comum aos homens negros que aos brancos). As cenas de bullying e violência na escola não são especialmente diferentes das retratadas em filmes de brancos, porém o desfecho da reação do protagonista, que ao se vingar do agressor acaba preso, mostra o quanto o encarceramento é bem mais banal na vida do negro. Fosse branco, de classe média, talvez seria mais provável que fosse levado a um psiquiatra e iniciado algum tratamento. (No Brasil sem dúvida existe essa diferença, já nos EUA não tenho certeza, mas tenho essa impressão).

Por fim, a relação do protagonista com o mar é abordada de forma bastante bela no filme. Como uma das cenas mais representativas do filme é aquela na qual o protagonista tenta nadar, isso me remeteu ao tema do racismo na natação . De vez em quando aparecem pesquisas que mostram que o número de crianças negras que não sabem nadar é bem maior que o de crianças brancas.  Com isso, as crianças negras morrem mais frequentemente que as crianças brancas por afogamento. Além disso, a natação como esporte é praticamente toda dominada por brancos. Segundo reportagem da BBC Brasil:

As piscinas são há muito tempo um ponto especialmente sensível da questão racial nos Estados Unidos. Afro-americanos não podiam entrar nelas quando a segregação ainda era praticada, e, mesmo depois de ela ser abolida, brancos encontraram outras formas de mantê-los excluídos. Construir piscinas em áreas de população predominantemente negra, por exemplo, não tem sido uma prioridade.
Jeff Wiltse, no seu livro Águas Contestadas: a História Social das Piscinas na América, argumenta que o incômodo dos brancos ao entrar em contato com negros levou a essa lacuna histórica na integração racial das piscinas americanas. Pais que não nadam não costumam iniciar seus filhos no esporte, e o legado atual disso é um número desproporcional de crianças negras que não sabem nadar - a federação americana de natação estima o índice em 70%.(...)
O estereótipo grosseiro, de que o biotipo de negros torna mais difícil sua flutuação na água, já foi desmentido, mas ainda hoje alguns esportes são vistos como "especialidades" de algumas raças”
Link: http://www.bbc.com/portuguese/geral-37064215 

O mar aparece marcando os momentos de afeto e amor na vida do protagonista, quando o “pai adotivo” tenta ensiná-lo a nadar, na primeira parte e quando ele recebe o primeiro beijo do seu amado, na segunda parte. Por fim, simbolicamente, após a última cena, em que ele aparece abraçado ao namorado, novamente vemos a figura da criança em frente ao mar.

A homoafetividade me pareceu o tema central do filme. Na primeira parte, estamos diante de uma criança que sofre bullying já por conta de seu lado “afeminado” e que chega a apresentar a questão aos adultos, de forma ainda confusa e inocente, sem entender direito sua condição. Na segunda parte, aparece o primeiro beijo gay e a virada da personalidade do adolescente, que reage às agressões, vai para a cadeia e reaparece na terceira parte já adulto e bem-sucedido no meio do tráfico. Apesar de maior maturidade no campo profissional, descobrimos que em relação à vida afetiva o jovem é  muito tímido e ainda não tinha se permitido desabrochar sua homoafetividade, tendo a primeira relação sexual com seu namorado apenas no final do filme. O contraste entre o tipo físico do homem viril, forte, usando ouro na típica ostentação do tráfico e a timidez diante do reencontro com o amado é sensacional. Mostra um nível de maturidade na abordagem de um tema de forma raramente vista nos filmes americanos mais populares.

Toda essa sutileza talvez não tenha tornado o filme muito fácil de compreender ou de emocionar para uma parte do público. Ou seja, não é um filme que teria em princípio grande potencial de ser popular, tendo sido muito visto por aqui por ter ganhado o Oscar. O filme não apela para sentimentalismo, não apresenta uma trilha sonora com momentos marcantes. Não assisti a "La La Land", mas acredito que a confusão na entrega do Oscar tenha sido um pouco por isso: quem imaginaria um filme como "Moonlight" vencendo o prêmio máximo do cinema? Sem dúvida, um grande feito.

Devo confessar que, em princípio, o filme não me causou muita emoção. Eu não sabia do que se tratava, apenas sabia que tinha ganhado o Oscar e achei que estaria diante de um roteiro típico. Acabei encontrando um filme de estilo bem mais “cult” que o esperado. Agora, tendo revisto por alto o filme para escrever esse texto e tendo olhado com “olhar gébico”, consegui perceber mais os méritos da obra.

Já que meu lugar de fala não me favorece para discutir nem o tema do racismo nem a homofobia, devo confessar que eu estou me perguntando: será que o que eu falei vai fazer sentido para alguém?  Cheguei a pensar em problematizar essa questão do lugar de fala, mas esse conceito não me é muito familiar, ironicamente, justamente por causa do meu "lugar". O que compreendo desse conceito é que em princípio ele não deve servir para calar uma pessoa, mas para aumentar a capacidade de compreensão do que essa pessoa está falando. Todo discurso pode ser compreendido mais profundamente quanto mais ele puder ser contextualizado, e acredito que saber quem fala, quando fala, como fala e por que fala faz parte dessa compreensão. Digo isso para previamente me desculpar por qualquer bobagem que eu tenha falado ou venha a falar sobre esses temas. Na verdade, não que eu acho que deva me calar (jamais, não me Kahlo), porém dessa vez quero mais do que nunca ouvir vocês.












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