quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Pobreza, Excremento e Ruína

O livro é excelente. Se Risério não é reconhecido atualmente como intérprete do Brasil, brevemente o será. As grandes costuras, janelas e pontes que constrói entre arquitetura, política, urbanismo e história enriquecem o escopo do título, que aparece inicialmente restrito ao que se chama de cidade. Num olhar mais próximo, nenhuma análise da cidade pode ter seu escopo restrito. A meu ver, temos um novo Paulo Prado, desta vez baiano, quem sabe já paulista.

Paulo Prado, contudo, certamente não empregaria a palavra “enquanto” de maneira inadequada com tanta frequência (como “projeto reformador pombalino enquanto programa ideológico e enquanto forma). Também não lançaria mão de verbos inexistentes, como “inexistir”, e outros vocábulos estranhos, como massivo e massivamente.

Contendo tantas opiniões e citações, o ensaio carece de números e responsabilidade acadêmica. Torna-se, então, outro retrato impressionista. Mas um retrato atual. Publicado há poucos anos, o livro nos fala mais perto. Não é preciso se imaginar um quatrocentão da SP de 1920 para compreender o contexto do livro. Nós estamos nele, em cada página.

O livro é vivo. O ensaio dá vida a cada uma das cidades que descreve, ou de seus modelos. O passeio pelos períodos e projetos, autores, arquitetos e países é delicioso.
As considerações políticas são de grande confluência com as minhas, como quando ele diz que o liberalismo econômico impede a inserção da população operária e o seu atendimento por políticas governamentais de moradia. O liberalismo econômico leva à plutocracia (governo do 1% para o 1%). “Para os pobres, higiene. Para os ricos, Higienópolis”.

Em vários capítulos aparece a expressão “segregação socioespacial”, de que gostei muito. O ponto não ganhou um capítulo específico, foi explicado e desenvolvido dispersamente, mas mais concentradamente numa seção do capítulo 5 e no último capítulo, mais autoral ainda que os anteriores, assim como o último capítulo da Formação Econômica do Brasil (Celso Furtado), e, também como ele, mais propositivo.

Apesar do estilo paulopradiano, às vezes Risério tem momentos freyreanos. Seu elogio irrestrito à capacidade brasileira de se misturar chega a ser irritante de tão míope. Brasileiro gosta de imigrante branco e rico. “O brasileiro gosta de se misturar”, assim, dito simplesmente, sem atentar para as nuances, chega a ser uma falácia. Há um nazista xenófobo dentro de cada coração conservador tupiniquim. Imigrantes nordestinos sofrem o diabo quando vêm para o sudeste, muitos migram de volta, especialmente no momento atual, em que o sudeste deixou de ser a grande ponta de crescimento econômico do país. Imigrantes africanos e haitianos (esses africanos da América) sofrem ainda mais, correndo risco de serem assassinados. O que ele chama de know-how de convivência, que seria a nossa mensagem planetária, não se sustenta quando o imigrante é pobre ou preto. Ou quase pretos de tão pobres.

O acolhimento brasileiro aos imigrantes, ricos e brancos, vem com uma fascinação. Vemos o gringo clássico, o turista americano ou europeu em Copacabana, como uma pessoa a princípio interessante, quiçá superior, ou uma possibilidade de ascensão social interpaíses, de ganhar dinheiro. Isto nada mais é do que um braço do nosso complexo de vira-latas, que considera tudo o que vem do país como brega, o que nos transformou, durante muito tempo, em “uma nação de copistas”. Hoje temos, a bem da verdade, uma dimensão que não nos permite ser meros copistas. Produtos, ideias, técnicas, projetos têm de ser desenvolvidos aqui. Não dá mais para importar tudo ou quase tudo. Risério aponta, e eu concordo, que este talvez seja o mais importante legado do positivismo nacional. Uma preocupação com o desenvolvimento vinda de dentro, dos médicos e engenheiros, após o fim da exclusividade bacharelista.

A discussão da segregação socioespacial, em escala geopolítica e local, me fez pensar na opulência da Europa e dos Estados Unidos, e dos condomínios fechados, ou dos bairros ricos. Enquanto houver muito ricos e muito pobres, vai haver violência e discriminação. Um detalhe importante que ele cita é a baixa fertilidade dos brancos ricos, em sua reação “com posturas etnocêntricas, preconceituosas e mesmo agressivamente racistas, ao tempo em que se reproduzem pouco e envelhecem a olhos vistos”. Acabou a pureza de raça.

O tema da desigualdade social é central. Estamos atingindo níveis de desigualdade de patrimônio e renda similares aos anteriores à Primeira Guerra. A violência é gerada pela desigualdade. Os ricos não sabem, não querem governar para os pobres. O Estado serve aos ricos sempre, com raríssimas exceções consistentes (alguns países nos anos 1950-80).

Outro ponto divergente que tenho com o pensamento de Risério é a particularidade do brasileiro em ver seu tempo glorioso no futuro. Eu não vejo assim. Risério dá sua opinião, não cita pesquisas que comprovem ou refutem isto. Portanto, a minha opinião é que o Brasil adulto está coalhado de “antigamente é que era bom”. Como nação não achamos nosso ponto glorioso no passado, mas percebemos que, se não foi glorioso, agora está pior. Há sempre alguém “acabando com este país”. E quem diz isso nunca diz que está bom, só que está piorando. Uma sociedade capaz de construir uma manchete que critica uma ciclovia porque vai tirar a vista do mar a partir dos carros não me parece muito com o olhar no futuro.


De volta às convergências, no último capítulo — meu favorito — Risério coloca de maneira sintética, clara e eloquente os principais problemas das cidades de hoje e do caminho que elas seguem. E a segregação está no cerne desse problema. A guerra urbana está instalada e estamos dando respostas tardias e não só insuficientes, mas contraproducentes. Assim são as soluções violentas propostas pela maioria. O projeto da UPP naufragou, sem a continuidade da criação de projetos de lazer, educação, saneamento básico (e avançado). A cidade, como ele mesmo fala em um capítulo anterior, é forçada a resolver localmente problemas globais. A desigualdade social é um problema crônico e mundial, e muito grave no Brasil, mas a solução é cobrada na ponta, na cidade. Não há como resolver a questão da violência sem lidar com o problema da desigualdade, e esta, por sua vez cede muito pouco às ações tímidas até o momento postas em prática pela sequência de governos federais brasileiros desde a redemocratização. Para abordar de modo eficaz os verdadeiros problemas brasileiros, cicatrizar a ferida na alma que ela nos traz, e que supura e fede, é necessário contrariar interesses dos ricos e poderosos. 
A leitura do livro A cidade no Brasil ocorreu durante a minha viagem de férias para Holanda e Bélgica. Por coincidência uma das cidades citadas no livro é Amsterdam, lugar onde passei a maior parte do tempo. Um certo dia parei em um dos canais da cidade para observar o mapa e pude compreender aquilo que o autor descrevia. Depois pensei no Rio, minha cidade natal. E, que ao longo dos últimos anos, ou talvez décadas, esteja passando por aquilo que Risério chama atenção logo nas primeiras páginas “crise urbana brasileira” e em seguida o autor nos provoca “(...) ou promovemos a transformação das estruturas fundiárias de nossas cidades, ou elas, as cidades, irão se encalacrar de vez, multiplicando seus absurdos (...), obrigação de quem quer que se dedique a pensar o Brasil (...) em especial à juventude”.

Entender o desenvolvimento das cidades é tão importante quanto entender o desenvolvimento da sociedade. Uma não existe sem a outra.

Algumas passagens me chamaram atenção. Indico abaixo pontos para reflexão (até pág. 100 e anexo):

1.     Risério aponta a Igreja como um dos autores de fracasso para o desenvolvimento das cidades “A Igreja Católica combatia o lucro” e Lisboa e Madri, ao logo do século XVII declinavam, enquanto outros centros europeus floresceram e se afirmaram.
2.     Outra passagem é que nos primórdios a América foi pensada como a possibilidade de construção de uma Nova Europa e que havia dois caminhos para materializar tal projeto. Contudo “o Brasil foi criado não para transformar ou transcender, mas para reproduzir Portugal”.
3.     Cidades renascentistas x barrocas.
4.     A discordância do autor com Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, sobre a ocupação do litoral x ocupação do interior e também sobre a comparação hispânica e a portuguesa no novo mundo.
5.     A segregação espacial, montada na estratificação social, não existiu desde sempre, de forma tão aguçada, no Brasil. Na cidade barroco-escravista, senhores e escravos conviviam o mesmo espaço central citadino.

6.     Me chamou atenção, no Anexo, o posicionamento do autor com relação ao “Projeto Amazônico”.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Cidade: (des)encantos

Vista aérea de Belo Horizonte

Aos 17 anos, ao achar que tinha repetido a matéria de Física I na faculdade, meu pai me deu um livro: ‘O Jogo da Amarelinha’, do Julio Cortázar. Embora a repetência não tenha de fato ocorrido, aquele foi um evento marcante. Ler ‘O Jogo da Amarelinha’ foi uma experiência de tal arrebatamento, de tal encantamento, que mudou completamete a minha forma de enxergar o mundo, de pensar a literatura, de me entender. Mais do que isso, ‘O Jogo da Amarelinha’ foi o cartão de visitas para que eu descobrisse Julio Cortázar: hoje minha biblioteca pessoal tem cerca de 20 livros dele. Ou seja, salvo algumas poucas coisas não traduzidas e outras, também poucas, que me escaparam ao longo do caminho, posso dizer sem muitos floreios que passei os últimos dez anos da minha vida imerso numa atmosfera cortazariana: essa experiência literária e existencial é indissociável do que sou hoje.

Em 2012, numa Primavera dos Livros (feira de pequenas editoras aqui no Rio, que costuma rolar no início da primavera no Museu da República), parei no stand da editora 34. ‘A cidade no Brasil’ aparecia com certo destaque porque era um lançamento. Olhei o livro e, após breve hesitação, decidi comprá-lo. Comprei pela capa, confesso, que por sinal, é mesmo muito bonita: uma padronagem assimétrica em preto em branco, convidativa. Na esteira das indicações e das leituras impositivas e semi-obrigatórias, fui deixando o livro meio de lado. ‘A cidade no Brasil’ dormiu por uns dois anos na minha estante. Um dia, desobrigado de tanto ler o que era de certa maneira imperativo, decidi assumir o risco de encarar as quase quatrocentas páginas em letras pequeninas do texto de Antonio Risério. E aí, dez anos depois (portanto, aos 27), o mesmo arrebatamento, o mesmo encanto, o mesmo sentimento de espelho, de ter um duplo, de se encontrar indubitável nas linhas escritas por outra pessoa.

‘A cidade no Brasil’, então, além de me apesentar ao autor, Antonio Risério, inaugura na minha vida um novo ciclo: o dos ensaios. Este foi o primeiro livro de não-ficção, ensaístico, que me propus a ler a sério. Dessa forma, após dez anos de literatura cortazariana, que se esgotou porque findou a obra do Cortázar e porque meu interesse foi se deslocando, começa um novo ciclo, capitaneado por Antonio Risério, e que vai me levar não sei exatamente aonde, mas que com certeza já me trouxe até este ponto em que me encontro, no Grupo de Estudos de Botafogo, lendo e produzindo não-ficção. O arrebatamento provocado pela ‘Cidade no Brasil’ já me fez ler outros dois livros do Risério, o belíssimo ensaio ‘Oriki Orixá’, em que ele traduz poemas do iorubá para o português e um livro de entrevistas com ele da série ‘Encontros’, que sempre traz ótimas entrevistas com intelectuais brasileiros. Mas já estou montando meu plantel rumo à obra semi-completa dele com livros esgotadíssimos comprados a peso de ouro na Estante Virtual. O encanto que senti com Cortázar, e que sinto agora com Risério, acho que só senti também, em menor grau, com Lima Barreto; mas isso já é outra história.

De certa forma, é ruim estar apaixonado. A visão ofuscada, quase enceguecida que apresento neste momento em que ora escrevo deturpa um olhar mais crítico que eu pudesse ter em relação à ‘Cidade no Brasil’, faz com que eu realmente não consiga enxergar seus defeitos, seus pontos fracos. A visão desapaixonada e alheia que tive para com o Celso Furtado no texto que escrevi para o último encontro no grupo é o que, de alguma maneira, me permitiu construir, sem falsa modéstia, um texto audacioso e com um acento de acinte àquele que é considerado um dos maiores economistas do Brasil.

Foi positiva, de qualquer modo, a quebra de paradigma proporcionada por um texto certeiro, que expunha sem melindres o racismo de Celso Furtado, para aqueles que tinham dele uma visão romântica, maniqueísta, ou ainda, para os portadores de uma visão que, embora percebesse seus defeitos, era capaz de contextualizá-la de forma redentora porque o altar respeitoso no qual o colocaram foi erigido de maneira sólida, concreta.

Nesse sentido, entendo que caiba a mim um papel mais passivo; devido ao meu bloqueio, é a minha vez de ouvir, sou eu que preciso ser desconstruído, sou eu que preciso ser levado para ver coisas que não estou vendo.

É bom que os olhares sejam múltiplos, afinal. É importante que pensemos de forma diferente, e que tenhamos pontos de partida diferentes para que as visões sobre um mesmo assunto se possam enriquecer. Isso acontece não apenas com os textos que postamos aqui, mas também com as cidades. Para ser um pouco mais específico, com a cidade no Brasil.

A nós citadinos não nos é dada a oportunidade de nos vermos a partir do lado de fora. Só alguém que vem de um meio não-urbano é capaz de criticar a cidade como entidade. Portanto, no que concerne à vida urbana, não podemos ter uma visão alheia, desapaixonada. Estamos todos imersos, mergulhados na cidade.

Podemos, contudo, pensar a cidade não como entidade, mas como singularidade: a nossa cidade, aquela na qual vivemos, em que habitamos. E uma das formas pelas quais isso pode ser feito é através da comparação. Consigo pensar melhor o Rio de Janeiro quando olho para Niterói, para São Paulo, para Brasília. Consigo ver o que deu certo, o que deu errado, quais são nossas semelhanças e diferenças.

Consigo pensar melhor a cidade no Brasil quando vejo e percebo as cidades no Brasil. Risério, de certa forma, faz isso no seu livro. A construção do conceito da cidade brasileira é feita por uma espécie de somatório empírico: cada uma das cidades (ao menos as maiores) é visitada, comentada, estudada. A partir dessa coleção de experiências e da construção desses ‘casos’ da cidade brasileira, que são não apenas teóricos, mas vivenciais (a impressão que temos é que Risério esteve em quase todas as cidades da qual fala), o livro se desenrola.

As cidades brasileiras existem nos planos objetivo e subjetivo. Se pudermos, ainda que por hipótese, destrinchar essas duas faces da cidade, podemos colocar do lado objetivo da cidade tudo aquilo que é sólido, que constitui a cidade construída: as ruas, a ‘grelha’ (ou seja, a maneira pela qual as ruas estão dispostas no espaço), os prédios, os parques, os monumentos. A dimensão subjetiva tem a ver com o uso que as pessoas fazem da cidade, ou seja, as trocas, as relações entre as pessoas, a construção de uma indentidade urbana vinculada de forma específica a uma determinada cidade, etc.

Subjetivamente, temos cidades muito diferentes. Ser paulistano é muito diferente de ser manauara, que por sua vez é muito diferente de ser niteroiense. As trocas subjetivas em cada uma dessas cidades são completamente diferentes entre si.

Mas se fizermos um esforço (que nem sempre é possível) para nos atermos a uma cidade construída, erigida, podemos perceber que, salvo alguns espaços bem delimitados, como o bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, o Pelourinho, em Savador, ou a cidade velha de Olinda, as cidades não possuem grandes diferenças arquitetônicas e urbanísticas entre si.

As grandes metrópoles brasileiras são todas muito parecidas. Isso se deve muito ao fato de boa parte delas, ainda que tenham nascido sob a forma de pequenos vilarejos em um passado colonial, se constituírem como núcleos urbanos apenas durante o século XX, o grande século da urbanização brasileira. Ainda que muitas delas já tivessem atravessado o século XVIII e o XIX como cidades efetivas, como o Rio de Janeiro e Recife, por exemplo, foi no século XX que essas cidades tomaram a ‘cara’ que têm hoje. Foi neste século que a cidade cresceu para os lados, ocupando áreas periurbanas que que eram utilizadas como agricultura ou pastagens, e para cima, num processo de verticalização que tem sua vertente mais óbvia na ereção de prédios e arranha-céus, mas que também pode ser observada na ocupação dos morros e encostas (Rio de Janeiro) e na construção de helipontos (São Paulo).

O grande ‘boom’ de urbanização do século XX se, por um lado, trouxe inovações estéticas e arquitetônicas que contribuíram para essa diferenciação subjetiva inter-cidades (a cidade de Brasília, o Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro, o MAC em Niterói, o vão livre do MASP em São Paulo), por outro lado, deu às cidades brasileiras todas um aspecto muito parecido, revelando a pobreza da arquitetura e do urbanismo produzidos no Brasil, que parecem só ter espaço para superstars.

É claro que é importante termos arquitetos e urbanistas como Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi e Lúcio Costa (podemos falar até do ilustre paisagista Burle Marx também). Mas duas coisas são importantes de serem observadas: a primeira é que eles estão mortos. A impressão de quem está de fora do que tem rolado na arquitetura (o meu caso) é a de que o Brasil, que surfou na vanguarda arquitetônica do século XX e que, de certa maneira, a produziu, viu morrer a sua geração de ouro e não foi capaz de inventar nada de novo a partir disso. Para onde foram os arquitetos?

A segunda é que, para além dos superstars, o arquiteto médio brasileiro parece ser muito pouco criativo. Por isso, andar no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, não é muito diferente de andar em um bairro central da cidade de São Paulo, que não é muito diferente de percorrer as ruas do centro de Belo Horizonte (exceto pela grelha), que não é muito diferente de percorrer o bairro do Batel, em Curitiba. É claro que paira sobre todos eles uma urbanidade que é a mesma, posto que construídos no mesmo tempo histórico. Mas não precisava ser tudo tão parecido. Nesses lugares, a subjetividade é construída a partir de outras coisas no fluxo urbano, que não têm necessariamente a ver com o modo e o tipo da maioria das construções. A subjetividade urbana se cria à revelia da arquitetura e do urbanismo médios brasileiros.

É importante colocar uma ressalva, talvez duas: a culpa não é só dos arquitetos. Falando desse modo ‘duro’, a impressão que se tem é a de que arquitetos e urbanistas não foram capazes de construir criativamente as cidades brasileiras no século XX. Isso é apenas em parte verdade. Mas o outro lado da moeda é que existem dois imperativos que freiam a atividade arquitetônica no Brasil, e que estão relacionados entre si.

O primeiro deles é o imperativo do mercado. A lógica capitalista prevê um certo grau de padronização, ou melhor, um certo fordismo na distribuição dos lotes de terra às corporações imobiliárias e na construção dos empreendimentos. Esta lógica, de maximização do lucro, acarreta na pobreza dos projetos por duas vias: pouco investimento direto na contratação dos arquitetos e dos escritórios de arquitetura, e a necessidade de maximização da quantidade de unidades a serem produzidas e vendidas. A inovação custa caro.

O segundo imperativo, que tem a ver com o primeiro é: as pessoas, que ocuparão os espaços, querem mesmo projetos criativos? Elas valorizam a invenção, a criatividade? Se chegarmos à conclusão de que o povo brasileiro é, em essência, conservador, não adianta termos uma classe de arquitetos com boa formação e bom preparo, capazes de promover inovações arquitetônicas e urbanísticas de vanguarda ou que flertem de algum modo com a ruptura, se as pessoas manifestarem preferência por uma casa típica de 70 metros quadrados, dois quartos, armários embutidos e esquadrias em alumínio; e, no plano urbanístico, se preferirem ruas organizadas em xadrez, com três pistas para carros, com uma praça central grande ao final da avenida principal, logo após um enorme obelisco. Embora não seja papel desse texto analisar o grau de conservadorismo e de repulsa à criatividade que a sociedade brasileira apresenta, vale lembrar que a esmagadora maioria dos carros vendidos no Brasil são da cor prata. Apesar de nossa vanguarda artística contemporânea ter produzido alguém com a força estética de Hélio Oiticica, parece que ao brasileiro-comprador-de-carros é preciso dizer que já inventaram a cor.

Risério fala um pouco de ambos os imperativos no capítulo ‘Vanguarda, memória e utopia’. Nesse trecho, ele cita Bruand: “Nenhuma originalidade podia ser entrevista nos numerosos edifícios recém-construídos, que não passavam de imitações, em geral medíocres, de obras de maior ou menor prestigio pertencentes a um passado recente ou longínquo, quando não eram meras cópias da moda então em voga na Europa. Ora, essa evolução só foi se acentuando durante as primeiras décadas do século XX. Os cariocas e paulistas abastados, que iam com frequência ao Velho Mundo,  admiravam, em seu contexto natural, os chalés suíços, as velhas casas normandas de estrutura de madeira aparente, as moradas rústicas da antiga França, os palácios florentinos ou venezianos, mas não compreendiam que o encanto dessas casas provinha de sua autenticidade, de sua perfeita adaptação às condições do meio e, não raro, de sua inserção num conjunto do qual não podiam ser desvinculadas.”

Nesse trecho, que sintetiza um pouco das minhas observações a respeito da pobreza arquitetônica no Brasil, Risério ataca: “De outro ângulo e de uma perspectiva ampla, a atual prática urbanística brasileira tem sido predominantemente grosseira e fragmentária (...) A publicidade não dá destaque ao apartamento, mas ao que está fora dele: a paisagem, vista do terraço, da varanda, da janela. Quando plantas são estampadas em tais anúncios, vemos de imediato a razão do ocultamento. É a mediocridade da arquitetura.”

Sobre a arquitetura de superstars, sobre os calatravismos (referência às obras do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, neologismo cunhado por Antonio Risério na FLIP de 2015, em que tive o prazer de assisti-lo discursar), Risério postula, muito sabiamente: “A arquitetura se afasta da história, da sociologia, da antropologia – e se divorcia do urbanismo. Para celebrar um casamento monogâmico com as belas-artes. Também entre nós isto vem acontecendo. A projeção ou realização de grandes intervenções arquitetônicas pontuais alheias a uma preocupação urbanística maior. Como a ideia do Guggenheim e a Cidade da Música, no Rio. Ou, em São Paulo, os prédios da Avenida Berrini.”

Poderíamos adicionar a essa lista o prédio do Museu da Imagem e do Som, na orla de Copacabana, que ficará pronto em breve e que está em completo desalinho à estética e ao urbanismo do bairro.

É claro que é difícil analisarmos as coisas do momento presente: não temos a neutralidade e o distanciamento que só o tempo histórico é capaz de fornecer. A cidade que está vendo o  surgimento do Museu da Imagem e do Som é a mesma que acabou de derrubar a Perimetral e, na esteira dessa derrubada, vem revitalizando a Praça Mauá, num esforço que parece resgatar o casamento entre a arquitetura (dos belos e ousados MAR e Museu do Amanhã) e o urbanismo (expresso em particular no bem elaborado paisagismo da praça, a despeito da ausência de árvores) que Risério supôs perdido.

Se nesse texto, como método de exposição de ideias, opto por uma separação entre cidade objetiva e subjetiva (e também entre arquitetura e urbanismo) é importante salientar que Antonio Risério, a partir de um ponto de vista que entende essas entidades apenas como pólos de referência, escreve seu ensaio tomando como ponto de partida justamente a multiplicidade de olhares sobre a cidade. Portanto, para quem lê ‘A cidade no Brasil’, a visão que se tem das aglomerações urbanas brasileiras não é nem tão-somente a ideia da cidade construída nem tampouco, unilateralmente, suas abstrações.
Quando coloco, no início desse texto, que as cidades brasileiras existem num plano objetivo e subjetivo, e falo um pouco desses planos, faço uma abordagem correta, à altura de uma postagem de blog no tamanho de mais ou menos cinco páginas.

Todavia, o que Antonio Risério faz é abordar a cidade não a partir de cada um desses planos objetivo e subjetivo, mas a partir do espaço tridimensional produzido pelo cruzamento desses planos, se os imaginamos ortogonais.

Esse espaço denso, complexo, em que coexistem os aspectos da objetividade e da subjetividade urbana, é o espaço para o qual devemos direcionar nosso olhar se quisermos apreender o significado da cidade e do ser citadino.

Embora o livro de Antonio Risério tenha diversos aspectos que são super interessantes de serem trabalhados e discutidos (a oposição à hipótese urbana do Sergio Buarque de Hollanda, a história da cidade de Curitiba, a oposição litoral-sertão, a grelha de Belo Horizonte, a solidão amazônica, etc), creio que o mais importante dos tópicos seja justamente esse olhar inteiro para a cidade.

Que a gente seja capaz de apurar o olhar para apreendermos essa integralidade, essa inteireza. Que a gente seja capaz de direcionar nossas ações e intervenções urbanas dentro das possibilidades fragmentadas que temos, cada um de nós, mas nunca perdendo de vista que a cidade é, de uma só vez, prédio e corpo, chão e fluxo, fumaça e maré.

De saída, deixo uma música que fala um pouco sobre a cidade brasileira. Pensei em “Rios, pontes e overdrives”, do Chico Science & Nação Zumbi, mas preferi fazer uma opção menos óbvia, que acho linda e profundamente lírica e que, de certa maneira, resgata também um pouco do realismo mágico do Julio Cortázar. Com vocês, “A Fundação da Cidade”, do Grupo Rumo.



segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Um Bode Preto na Sala ou Os Fossos e Pontes de Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado

O livro é claro a maior parte do tempo e tenta ser restrito aos aspectos econômicos tanto quanto possível. É bem verdade que certos detalhes técnicos de economês eu não pesquei, mas não acho que tenha prejudicado a compreensão geral do livro. Senti falta de um escopo mais amplo. De considerações políticas e sociais. Senti falta de tomada de opinião e de juízo de valor.

Fiquei especialmente incomodado com a aparente indiferença com que ele aborda a questão da escravidão. Manter um distanciamento, segurando o foco na economia de algo tão desumanamente humano como a escravidão coloca um bode na sala do livro. Acho justo que o livro, retratando a economia da época da escravidão, aborde o escravo como engrenagem nesse processo, mas ele não foi escrito no século XIX. Era para conter minimamente algum constrangimento com a escravidão. Mas faltou. O próprio Piketty, em seu “O Capital no Século XXI”, menciona a escravidão economicamente, mas não deixa de emitir alguma opinião sobre o assunto. Como gostei muito da leitura, fico procurando atenuantes, como pensar em comparar com outros livros escritos na mesma época — avaliando a maneira como falavam da escravidão. Ou entender este meu incômodo como um viés meu, que sempre quero ver a questão da escravidão mencionada e debatida, assim como a questão da desigualdade. Ou então que uma opinião indignada com a escravidão é algo tão difundido e previsível que seria dispensável no estudo dele. Mas nenhum desses meus argumentos, nem todos em conjunto, conseguem tirar o bode da sala. Para concluir as reflexões seguintes, tive de fazer um esforço para enxergar as pontes apesar do fosso.

Senti falta também de uma consideração específica à desigualdade. O termo é mencionado algumas vezes, mas não ganha atenção especial, nem no capítulo final, que tem um tom mais propositivo que o resto do livro, prioritariamente descritivo.

Além dessas faltas, outros pontos me vieram a partir da leitura. Um deles é como a economia mudou do século XIX para cá. Hoje estamos tão industrializados que já entramos em desindustrialização. Nisso o Estado teve papel fundamental, bancando a criação da indústria de base a partir do Getúlio — CSN, Álcalis, Vale do Rio Doce, Petrobrás, o próprio BNDE (que na época não tinha S). Na desindustrialização também, com a abertura dos mercados — a adesão de Collor e FH à cartilha neoliberal — e com as privatizações.

Um segundo ponto é o de que ainda precisamos mudar muito, economicamente falando. Ainda somos muito dependentes de exportação de produtos primários. OK, não é mais só café nem só açúcar, é também a soja, o minério de ferro, o boi, o porco, o jogador de futebol que tem banzo quando chega na Europa ou no Oriente Médio. O setor que cresce é o agronegócio. Apesar de muita coisa ter mudado, de termos conseguido criar um mercado interno robusto, com reservas fortes, nossa economia ainda é muito influenciada pela demanda externa. Toda a prosperidade é associada ao aumento de preços das commodities. Talvez do mesmo modo que o café financiou a industrialização do sudeste de forma geral, e particularmente de SP, daqui a uns decênios olharemos o boom das commodities dos anos Lula como o ponto de inflexão que gerou distribuição de renda significativa. Não uma redistribuição pura e simples, mas os mais pobres ficaram, pela primeira vez, com uma fatia maior da nova riqueza que se gerava.


Ele deixa muito claro também o quanto a elite cafeeira influenciava o governo e suas políticas econômicas. Ali, no momento de superprodução e queda do consumo, na década de 1930, a solução adotada foi a prática antiga de socializar os prejuízos e privatizar os lucros. Na crise financeira do fim dos anos 90 também foi assim. Os bancos foram socorridos com dinheiro público. Hoje no chamado ajuste fiscal também é essa, em linhas gerais, a proposta: mantemos um sistema tributário regressivo, duro com os pobres e principalmente com a classe média e leniente com os ricos e ultrarricos. Mesmo numa situação em que é preciso gerar caixa, a resposta é cortar as despesas que funcionam como agentes distribuidores de renda (saúde e educação), sem encostar em grandes fortunas ou capital especulativo. A relação entre os grandes grupos econômicos e os governos é tão próxima, que acho que já nem é o caso de se falar em influência do poder econômico sobre o político, mas de uma identidade, uma fusão entre eles. Na plutocracia que vivemos, há pouca diferença em um e outro ramo do poder.

domingo, 25 de outubro de 2015

A desumanização negra



Esse breve ensaio que vocês começam a ler surge a partir de uma leitura crítica do livro “Formação Econômica do Brasil”, do economista Celso Furtado (CF).

Este livro, que já nasceu sendo um clássico, se propõe a explicar as condições do desenvolvimento brasileiro até meados da década de 1950, sob um prisma histórico e econômico.

‘Formação Econômica do Brasil’ (FEB), como toda obra clássica que interpreta o nosso país, pode ser reinterpretado através de seus vícios e de suas virtudes. Ambos estão lá no texto de CF. Mas se você é fã do referido autor, tome cuidado: do ponto de vista deste que ora vos escreve, as críticas são muito mais numerosas e graves do que os elogios; vou começar por este últimos, então. Cabe ressaltar, antes de começarmos, que estas impressões estão baseadas apenas na leitura de FEB, desconsiderando os outros aspectos da vida de CF. Todas as vezes em que parecer que há um julgamento a respeito de CF, este julgamento é sempre a respeito de CF como autor de FEB.

Como pontos positivos, pode-se destacar a seriedade, a concisão e a audácia do texto de CF: realmente, a mistura desenvolvida pelo autor entre a história e a economia, num movimento dicotômico e pendular, produz um texto de caráter inovador. Por isso mesmo é que se trata de um texto seminal.

Em relação ao conteúdo de sua obra, é relevante o capítulo sobre a economia mineira do século XVIII. Naquele momento, Minas Gerais passou a ser o centro do país, e pela primeira vez a economia se integrava internamente. O sul e o Nordeste forneciam gado e mão-de-obra para a atividade mineira. Muito embora esse entrelaçamento das partes tenha sido perdido à medida que a economia dos metais preciosos de Minas Gerais entrava em declínio, foi a primeira vez, de forma efetiva, que os fatores de produção se integravam regionalmente. Essa integração ocorreu novamente quando o centro dinâmico do país se modifica para o Vale do Paraíba e se concentra no Estado de São Paulo. É a São Paulo, e não mais a Minas Gerais, que passam a acorrer os fluxos de pessoas, de capitais e de mão-de-obra. Embora CF não lance mão dessa hipótese de forma marcada em seu ensaio, creio que um dos fatores que tenha tido importância para a consolidação do território brasileiro em um único país (e não em vários, como foi o caso da América Espanhola) foi justamente a criação de um centro dinâmico de economia regional dentro do próprio território: não o de São Paulo, pois ao final do século XIX já tínhamos um país independente, mas o de Minas Gerais, no século XVIII. Ainda que as bandeiras dos séculos XVI e XVII tenham sido importantes para que o Brasil tenha deixado de ser apenas uma união de portos marítimos em comunicação direta com Portugal, foi somente no século seguinte que se pôde operar uma verdadeira união econômica entre os territórios do norte e do sul do país através de um centro dinâmico na região central do Brasil.

O momento em que CF aponta como se deu o processo de triangulação comercial entre os EUA e as Antilhas é também muito didático e esclarecedor. Ficou claro como os EUA puderam se constituir numa espécie de colônia especial e fazer de suas colônias vizinhas suas próprias colônias, sob vista grossa da Inglaterra.

Os elogios acabam por aqui. Começarão as críticas.

CF escreve de um jeito esquisito. O uso excessivo de expressões como ‘Sem embargo’, ‘inversões’ (no sentido de investimentos) e ‘inversionistas’ (no sentido de investidores) dá a ideia de que estamos lendo uma tradução mal feita de um texto em espanhol. Com o tempo, evidentemente, acabamos nos acostumando.

Uma das coisas mais ditas sobre FEB é que se trata de um livro que apresenta uma visão equilibrada entre história e economia (eu mesmo disse isso nos primeiros parágrafos). Ocorre que se trata de equilíbrio apenas se considerarmos uma média aritmética de todo o conteúdo do livro. FEB começa numa pegada mais histórica, e portanto, de leitura mais agradável (para o meu gosto). Aos poucos, vão entrando uma visão e um jargão mais econômicos, de forma que lá pelo meio do livro temos, de fato, esse suposto equilíbrio. Do meio para o final, entretanto, CF escancara seu economês para os leitores. Dessa forma, um livro que se propõe a ser para iniciantes, engana de forma deliberada aqueles que se propõem a lê-lo, pois começa simulando uma facilidade de leitura e termina numa prosa árida, difícil, fastidiosa. Um texto para iniciados disfarçado de texto para iniciantes: um engodo.

Outro aspecto completamente irritante em FEB é a quantidade de elucubrações acerca de algo que não ocorreu. O recurso do ‘E se...’, ou do futuro do pretérito, é um exercício interessante em textos históricos, mas deve ser utilizado com muita cautela, muita parcimônia. Qualquer pessoa que tenha noções mínimas de historiografia sabe que esse é um recurso ardiloso, uma vez que se as coisas tivessem tomado outro rumo na história, os fatos subsequentes se dariam de uma outra forma que é, por definição, imprevisível, insondável. Novamente, trata-se de um recurso interessante para explicar alguns fenômenos, mas CF se utiliza deles não apenas de forma exaustiva, mas de maneira completamente irresponsável, ao encadear mais e mais elementos a fatos que não ocorreram. ‘Se tivesse ocorrido A em vez de B, então teríamos tido C, e portanto, D, e, portanto, E, o que nos levaria inevitavelmente a F.’ Nao há como levar a sério esse tipo de construção. Vejam como é ruim no texto do próprio, no capítulo 2, ‘Fatores do êxito da empresa agrícola’: “Não fora o retrocesso da economia espanhola – particularmente acentuado no século XVII – e a exportação de manufaturas de produção metropolitana para as colônias teria necessariamente evoluído, dando lugar a vínculos econômicos de natureza mais complexa que a simples transferência periódica de um excedente de produção sob a forma de metais preciosos. O consumo de manufaturas europeias pelas densas populações da meseta mexicana e do altiplano andino teria criado a necessidade de uma contrapartida de exportações de produtos locais, seja para consumo na Espanha, seja para reexportação. Um intercâmbio desse tipo provocaria necessariamente transformações nas estruturas arcaicas das economias indígenas e possibilitaria maior penetração de capitais e técnica europeus. Houvesse a colonização espanhola evoluído nesse sentido, e muito maiores teriam sido as dificuldades da empresa portuguesa para vencer.”

Existem ainda outros elementos ruins no texto de Celso Furtado. O conceito que ele tem acerca do desenvolvimento sustentável é particularmente destrutivo. No capítulo 28, ‘A defesa do nível de emprego e a concentração de renda’, CF postula: “A situação pode ser perfeitamente assimilada à de uma indústria extrativa, pois o esgotamento de uma reserva mineral representa a alienação de um patrimônio cuja ausência poderá ser lamentada pelas gerações futuras. Mas, se o aproveitamento da reserva esgotável se faz para dar ‘início’ a um processo de desenvolvimento econômico, não somente a geração presente mas também as futuras - que receberão a reserva transformada em capital reprodutível - serão beneficiadas.” É razoável supor que, uma vez que o texto foi escrito na década de 1950, ainda prevalecia uma visão desenvolvimentista que suplantava uma visão mais holística a respeito dos recursos naturais. Mas é importante ressaltar que CF veio a falecer em 2004 e que, durante o período do lançamento do livro até sua morte, efetuou pequenas modificações no texto. Donde podemos concluir que se CF optou por não rever seus conceitos acerca do desenvolvimento com base na extração dos recursos naturais sem contrapartidas, certamente o fez porque não encontrou relevância na questão.

Na esteira dos problemas do texto de FEB podemos citar também o ponto de vista. CF parece se propor sempre a defender o ponto de vista dos donos dos meios de produção, que tomaram, muitas das vezes, decisões estapafúrdias ao longo da história do Brasil. Dessa forma, CF consegue articular uma visão que defende a política de defesa da produção do café, na qual os fazendeiros destroem boa parte da produção com vistas à manutenção do lucro. Igualmente, consegue defender também a politica dos mesmos fazendeiros que não transformam os lucros obtidos nas suas propriedades em aumento de salários, provocando concentração de renda. O argumento é interessante: não repassando os aumentos de lucro dos sucessos, o fazendeiro também não repassa aos salários de seus empregados os prejuízos decorrentes do fracasso na produção/venda de café, o que garante o nível de empregos. Dessa forma, CF consegue nos fazer crer que uma postura concentradora de renda é, na verdade, uma política de proteção à economia do Brasil.

A verdade é que CF é muito hábil na construção de um halo de respeito em torno de si. Num texto de poucos adjetivos, transmite a ideia de sobriedade e, sobretudo de imparcialidade em torno de suas ideias, como se o processo histórico-econômico estivesse completamente desacoplado de uma visão ideológica, isto é, como se fosse possível contar a história sem tomar partido. Essa neutralidade cai por terra ao analisarmos o uso da adjetivação que CF realiza em FEB, que é pouca, mas suficiente para que consigamos entender o seu viés. Isto fica particularmente evidente no tratamento dado por CF à questão dos negros.

Esta não é uma questão central no trabalho de CF. Isso se justifica pelo recorte dado ao seu trabalho: uma abordagem histórica e econômica, que passa ao largo das questões sociológicas. Mas a adjetivação e o julgamento realizado por CF em FEB mostra que essa discussão não passa tão ao largo assim.

Logo no capítulo 6, ‘Consequências da penetração do açúcar nas Antilhas’, CF coloca uma frase que soa no mínimo esquisita: “A pessoa interessada assinava um contrato na Inglaterra, pelo qual se comprometia a trabalhar para outra por um prazo de cinco a sete anos, recebendo em compensação o pagamento da passagem, manutenção e, ao final do contrato, um pedaço de terra ou uma indenização em dinheiro. Tudo indica que esta gente recebia um tratamento igual ou pior ao dado aos escravos africanos”. A primeira pergunta que se faz é: Ora, como é possível dizer, sem incorrer em uma afirmação temerária, que os brancos ingleses que emigraram para os EUA possuíam uma condição de vida pior do que a dos negros brasileiros? Como é possível afirmar que alguém que trabalha num regime de servidão tendo em vista a sua liberdade e o seu direito à propriedade em, no máximo, sete anos tem uma condição pior do que aquele que trabalha sabendo que permanecerá como escravo até o fim dos seus dias, sem direito à liberdade, à propriedade, e tendo como certo que sua condição de escravo será transmitida aos seus descendentes?

No capítulo 7, ‘Encerramento da etapa colonial’, CF faz uma das afirmações mais abjetas de todo o seu texto: “A escravidão demonstrou  ser, desde o primeiro momento, uma condição de sobrevivência para o colono europeu na nova terra.” É completamente INADMISSÍVEL que um texto escrito em 1950 ainda se aferroe à inevitabilidade do regime escravocrata. A escravidão da população negra na colonização das Américas é um crime hediondo contra a Humanidade e, como tal, deve ser tratado. Fico imaginando que julgamento teria um texto que propusesse também como inevitável o lançamento da bomba atômica norte-americana sobre Hiroshima ou o holocausto contra o povo judeu provocado pelo regime nazista alemão no final da primeira metade do século XX, ou ainda, a tortura praticada pelo Estado brasileiro contra os manifestantes políticos dissidentes na década de 1970. São todos igualmente crimes contra a Humanidade e, por definição, indefensáveis, injustificáveis, e que devem ser punidos quando possível no tempo histórico, e indenizados a qualquer tempo. Nesse sentido, não deveria ser mais possível que um texto com uma declaração desse tipo, que presta um desserviço aos direitos humanos e, em especial, à dos negros escravizados e de seus descendentes prejudicados pela escravidão, estivesse ainda em circulação sem qualquer tipo de nota explicativa / justificativa / pedido de desculpas / etc. FEB, do jeito que está, com essa frase colocada sem conflitos no sétimo capítulo, é aplaudido e referenciado por estudantes de economia, que assimilam essa ideologia travestida de neutralidade.

A partir do sétimo capítulo, CF avança numa discussão supostamente neutra, mas que atua em um forte sentido da desumanização negra, isto é, de não encarar a população negra como população, como gente, como seres humanos com os quais se deve preocupar na condição de humanos e não na condição de máquina ou mercadoria.

No capítulo 8, ‘Capitalização e nível de renda na economia açucareira’, CF coloca: “É quando a rentabilidade do negócio está assegurada que entram em cena, na escala necessária, os escravos africanos: base de um sistema de produção mais eficiente e mais densamente capitalizado.”. A pergunta que fica é: qual é a escala necessária? Necessária para quem? Para que tipo de economia? Vale lembrar que é a população negra que é comercializada e traficada na condição de escravos. ‘Entra em cena’ é o tipo de construção linguística que retira a culpa daqueles que sujaram as mãos.

Ainda no capítulo 8, CF avança na construção de sua desumanização negra, ao encará-los sob diversas perspectivas. Primeiro, apenas como capital, como requisito para produção: “Os gastos monetários de reposição, que cabe deduzir para obter o montante da renda líquida, podem ser estimados grosso modo em 110 mil libras: 50 mil libras para reposição dos escravos – admitindo-se uma vida útil média de oito anos, 15 mil escravos a 25 libras por cabeça – e 60 mil libras para a parte de equipamento importado – admitindo-se que a terça parte do capital fixo (inclusive escravos) estivesse constituída por equipamentos importados e que estes tivessem uma vida útil média de dez anos.”. Mais à frente, CF compara os negros aos animais: “Estima-se que o número total de bois existentes nos engenhos era da mesma ordem do número de escravos. Por outro lado, admite-se que um boi valia cerca da quinta parte do valor de um escravo e que sua vida de trabalho era de apenas três anos.”. Em um momento seguinte do mesmo capítulo, CF compara os negros às instalações de uma fábrica: “A mão-de-obra escrava pode ser comparada às instalações de uma fábrica: a inversão consiste na compra do escravo e sua manutenção representa custos fixos. Esteja a fábrica ou o escravo trabalhando ou não, os gastos de manutenção terão de ser despendidos. Demais, uma hora de trabalho do escravo perdida não é recuperável, como ocorreria no caso de uma máquina que tivesse de ser impreterivelmente abandonada ao final de um dado número de anos. É natural que, não podendo utilizá-la continuamente em atividades produtivas ligadas diretamente à exportação, o empresário procurasse ocupar a força de trabalho escravo em tarefas de outra ordem, nos interregnos forçados da atividade principal.”.

O processo de desumanização negra brasileira é colocado durante o texto de maneira paulatina. Até aqui, ainda se pode argumentar em favor de CF que ele, pessoalmente, não encara o negro como um fator de capital, mas que se refere às condições históricas de um negro escravizado, e que não faz nada mais que retomar a maneira pela qual este negro era encarado à época. Uma frase do próprio capítulo 8 é capaz de desmentir esta hipótese. CF, que raramente se utiliza de adjetivos na construção de seu discurso, escreve, como uma nota de rodapé: “Já o jesuíta Antonil, nos seus sábios conselhos aos senhores de engenho, no começo do século XVIII, recomendava que ‘aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar coice principalmente na barriga das mulheres, que andam pejadas, nem dar com pau nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes , e podem ferir na cabeça a um escravo de préstimo que vale muito dinheiro e perdê-lo’”. Nesta frase, CF cita o jesuíta Antonil, mas o julgamento de que este é um ‘sábio’ conselho é uma construção do próprio autor. Esta noção de que existe alguma sabedoria em não espancar um negro escravizado até à morte reforça a posição pessoal do autor de que o negro não deve ser encarado como uma pessoa, como um ser humano, mas sim como um elemento absolutamente desumanizado, como um fator de capital, um boi ou as instalações de uma fábrica.

O processo de desumanização conduzido por CF em FEB piora ao longo do texto. Após essa parte inicial do livro, CF insiste em utilizar o termo ‘estoque de escravos’. Em uma das passagens em que isso fica mais evidente, temos o trecho do capítulo 21, ‘O problema da mão-de-obra – oferta interna potencial’: “É interessante observar a evolução diversa que teve o estoque de escravos nos dois principais países escravistas do continente: os EUA e o Brasil. Ambos os países começaram o século XIX com um estoque de aproximadamente 1 milhão de escravos.”

Vez por outra, CF ameaça fazer um mea culpa. No capítulo 19, ‘Declínio a longo prazo do nível de renda: primeira metade do século XIX’ temos o trecho: “Admitamos que a população em 1850 seria de 7 milhões, inclusive 2 milhões de escravos, os quais não se têm em conta na formação da renda per capita.”. Nesse trecho, CF concede às pessoas negras o direito de serem computadas na população brasileira. É uma pena que essa concessão não dure mais do que uma linha porque, logo na sequência, o autor não os considera para o cálculo da renda per capita.

A população negra brasileira, aliás, toda a população negra americana que estava submetida ao regime escravista não se conformava ao papel desumanizado que a população europeia a submetia. Vez por outra eclodiam algumas revoluções que tinham como mote a liberdade do povo negro americano. No Brasil, podemos citar o Quilombo dos Palmares e a Revolta dos Malês como exemplos desses movimentos. Um dos mais intensos relacionados a essa temática e, possivelmente uma das revoltas populares de maior ousadia na história das Américas seja a da revolução haitiana, ocorrida em fins do século XVIII. Os negros escravizados do Haiti se rebelaram contra o regime escravocrata e não apenas proclamaram a sua liberdade, como também proclamaram a república do Haiti, a primeira colônia a se tornar independente nas Américas. No capítulo 16 de FEB, ‘O Maranhão e a falsa euforia do fim da época colonial’, CF cita a revolução haitiana: “Em 1789 entrou em colapso a grande colônia açucareira francesa que era o Haiti. Nesse pequeno território estavam concentrados quase meio milhão de escravos que se revoltaram e destruíram grande parte da riqueza ali acumulada.” CF utiliza o termo ‘entrou em colapso’, que é dotado de uma certa frieza e de uma distância higiênica em relação aos movimentos populares. A única coisa que CF é capaz de enxergar é que, neste período, os escravos ‘destruíram grande parte da riqueza’. Ora, destruíram uma riqueza que era concentrada nas mãos de poucos homens brancos e que, de nenhuma forma se convertia em melhores condições de vida para a população negra haitiana, que compunha a vasta maioria dos habitantes da ilha. É interessante notar como CF está sempre predisposto a assumir o lado daqueles que são proprietários, dos mais ricos. Os oprimidos quando se rebelam ‘destroem riqueza’. Os proprietários de café, por outro lado, quando, literalmente, destroem boa parte da sua produção com vistas à proteção do mercado estão ‘mantendo o nível dos empregos’. Dois pesos e duas medidas, como pode ser visto ao longo de todo o livro.

No capítulo 21, ‘O problema da mão-de-obra – oferta interna potencial’, CF mostra que seu problema não apenas com os negros. Aqui ele faz uma afirmação sobre os ‘caboclos’, completamente sem eira nem beira: “Tem-se repetido comumente no Brasil que a causa dessa agricultura rudimentar está no ‘caboclo’, quando o caboclo é simplesmente uma criação da economia de subsistência. Mesmo que dispusesse de técnicas agrícolas muito mais avançadas, o homem da economia de subsistência teria que abandoná-las, pois o produto de seu trabalho não teria valor econômico. A involução-das técnicas de produção e da forma de organização do trabalho com o tempo transformariam esse homem em ‘caboclo’”. Não fica claro ao que ele se refere quando utiliza a palavra ‘caboclo’. CF parece argumentar que ninguém nasce caboclo, torna-se um, mas é realmente impossível entender o que ele quer dizer; Essa ausência de explicação sobre os caboclos parece ter mais a ver com as deficiências estruturais do livro, em especial a uma certa falta de coesão, do que com algum preconceito claramente direcionado. Se FEB fosse encarado como uma novela, essa parte na qual ele se refere aos caboclos certamente poderia ser encarada como uma ‘ponta solta’.

Voltando à questão central de nossa discussão, o capítulo 22, ‘O problema da mão-de-obra – a imigração europeia’, é particularmente importante para entender que FEB desenvolve o processo de desumanização negra em oposição a uma valorização da população branca. Vejam o trecho a seguir: “As colônias criadas em distintas partes do Brasil pelo governo imperial careciam totalmente de fundamento econômico; tinham como razão de ser a crença na superioridade inata do trabalhador europeu, particularmente daqueles cuja ‘raça’ era distinta da dos europeus que haviam colonizado o país. Era essa uma colonização amplamente subsidiada. Pagavam-se transporte e gastos de instalação e promoviam-se obras públicas artificiais para dar trabalho aos colonos, obras que se prolongavam algumas vezes de forma absurda. E, quase sempre, quando, após os vultosos gastos, se deixava a colônia entregue a suas próprias forças, ela tendia a definhar, involuindo em simples economia de subsistência. Caso ilustrativo é o da colonização alemã do Rio Grande do Sul. O governo imperial instalou aí a primeira colônia em 1824, em São Leopoldo, e, depois da guerra civil, o governo da província realizou fortes inversões para retomar e intensificar a imigração dessa origem. Contudo, a vida econômica das colônias era extremamente precária, pois, não havendo mercado para os excedentes de produção, o setor monetário logo se atrofiava, o sistema de divisão do trabalho involuía e a colônia regredia a um sistema econômico rudimentar de subsistência. Viajantes europeus que passavam por essas regiões se surpreendiam com a forma primitiva de vida dos colonos e atribuíam os seus males às leis inadequadas do país ou a outras razões dessa ordem. A conseqüência prática de tudo isso foi, entretanto, que se formou na Europa um movimento de opinião contra a emigração para o império escravista da América e já em 1859 se proibia a emigração alemã para o Brasil.” Este é um trecho em que CF se esforça para se manter neutro. É possível pensar que esse trecho alude a uma certa compaixão pelos colonos, mas é tudo feito de maneira bastante difusa. Alguns parágrafos depois, CF explicita que, sim, trata-se mesmo de uma relação fortemente empática pelos colonos, recheada de pena, dó e comiseração: “Com efeito, o custo real da imigração corria totalmente por conta do imigrante, que era a parte financeiramente mais fraca. O Estado financiava a operação, o colono hipotecava o seu futuro e o de sua família, e o fazendeiro ficava com todas as vantagens. O colono devia firmar um contrato pelo qual se obrigava a não abandonar a fazenda antes de pagar a dívida em sua totalidade. É fácil perceber até onde poderiam chegar os abusos de um sistema desse tipo nas condições de isolamento em que viviam os colonos, sendo o fazendeiro praticamente a única fonte do poder político.”. É impressionante perceber como CF se compadece dos colonos europeus no sul do país, falando em ‘abusos’ do sistema. Em suas pouco mais de 300 páginas, FEB em nenhum momento se refere ao sistema escravista como um sistema de abusos, em nenhum momento se refere ao negro brasileiro como um ser humano que foi sistematicamente abusado ao longo de mais de três séculos de escravidão.

O capítulo 24, ‘O problema da mão-de-obra – eliminação do trabalho escravo’ serve àqueles que, até o presente momento, tinham alguma dúvida sobre  real posicionamento de CF em relação à questão dos negros em FEB. Neste capítulo, suas posições ficam ainda mais claras. É natural que, por se tratar de um assunto envolto em muitos tabus, CF começa por fazer o seu mea culpa prévio: “Mais que em qualquer outra matéria, nesta dificilmente se conseguem separar os aspectos exclusivamente econômicos de outros de caráter social mais amplo. Constituindo a escravidão no Brasil a base de um sistema de vida secularmente estabelecido, e caracterizando-se o sistema econômico escravista por uma grande estabilidade estrutural, explica-se facilmente que para o homem que integrava esse sistema a abolição do trabalho servil assumisse as proporções de uma ‘hecatombe social’. Mesmo os espíritos mais lúcidos e fundamentalmente antiescravistas, como Mauá, jamais chegaram a compreender a natureza real do problema e se enchiam de susto diante da proximidade dessa ‘hecatombe’ inevitável. Prevalecia então a idéia de que um escravo era uma ‘riqueza’ e que a abolição da escravatura acarretaria o empobrecimento do setor da população que era responsável pela criação de riqueza no país.”. Este mea culpa funciona de forma muitíssimo semelhante à construção frasal das pessoas racistas que começam suas falas por: ‘Não sou racista, mas’ e, uma vez feito esse preâmbulo, descascam toda sorte de impropriedades nos termos seguintes. CF opera da mesma forma. Dessa forma, após seu mea culpa prévio, ele coloca: “As vantagens que apresentava o trabalhador europeu com respeito ao ex-escravo são demasiado óbvias para insistir sobre elas.” Misturando seus preconceitos com os erros de coesão já mencionados, CF nos brinda com um período em que diz que não irá dizer alguma coisa. CF deixa seus leitores encalacrados em um sistema de obviedades que só faz sentido para o próprio autor. Alguns parágrafos depois, CF parece acenar com algumas pistas sobre o assunto: “O homem formado dentro desse sistema social está totalmente desaparelhado para responder aos estímulos econômicos. Quase não possuindo hábitos de vida familiar, a idéia de acumulação de riqueza é praticamente estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita extremamente suas ‘necessidades’. Sendo o trabalho para o escravo uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação de seu salário acima de suas necessidades - que estão definidas pelo nível de subsistência de um escravo - determina de imediato uma forte preferência pelo ócio.” Esta afirmação é de uma estreiteza intelectual que chega a surpreender. Será que CF, douto, economista respeitado, não sabia que os escravos mantinham seus vínculos afetivos e familiares dentro das senzalas? Será que ele não sabia que muitos escravos acumulavam riquezas ao longo de uma vida inteira no intuito de comprar suas alforrias? É muita ingenuidade para não considerarmos a forçosa hipótese que a cada linha se nos apresenta de maneira renovada: trata-se mesmo de má-fe. Esta má-fé pode ser observada em um dos últimos parágrafos do capítulo: “Cabe tão-somente lembrar que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição, retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento econômico do país. Por toda a primeira metade do século XX, a grande massa dos descendentes da antiga população escrava continuará vivendo dentro de seu limitado sistema de ‘necessidades’, cabendo-lhe um papel puramente passivo nas transformações econômicas do país.” 

CF parece enxergar que o Brasil é um país feito por brancos e para brancos. Uma vez que a população negra é retirada da sua condição desumanizada a partir da abolição da escravatura, CF, que até então os vinha encarando como máquinas, bois e instalações fabris, não consegue alcançar a condição humana dos negros brasileiros a partir do século XX e opta, por fim, por desconsiderá-los de todo o processo econômico vindouro. CF, como um arauto do retrocesso, re-desumaniza os negros: não é capaz de encará-los como seres humanos e como cidadãos.

Mais para o final do livro, CF, que não é mais capaz de abordar a questão dos negros, por não conseguir humanizá-los, demonstra uma estranha e suspeita simpatia pela região sul do país. No capítulo 29, ‘A descentralização republicana e a formação de novos grupos de pressão’, CF afirma: “A organização social do sul transformou-se rapidamente, sob a influência do trabalho assalariado nas plantações de café e nos centros urbanos, e da pequena propriedade agrícola na região de colonização das províncias meridionais. As necessidades de ação administrativa no campo dos serviços públicos, da educação e da saúde, da formação profissional, da organização bancária, etc. no sul do país são cada vez maiores. O governo imperial, entretanto, em cuja política e administração pesam homens ligados aos velhos interesses escravistas, apresentava escassa sensibilidade com respeito a esses novos problemas.”. Para CF, existe uma necessidade grande de serviços públicos como educação e saúde no sul do país. Essa comiseração e essa empatia são exatamente as mesmas dedicadas à colônia de São Leopoldo e aos abusos sofridos por todos os imigrantes brancos que chegaram da Europa para se instalar no sul do país.

Existe um respeito muito grande ao sofrimento e às necessidades dessa parcela da população que vive no sul do Brasil. Argumentar que é porque se trata de pessoas brancas pode parecer uma simples coindicência, mas CF, astuto, não opera por coincidências. No último capítulo do livro, o capítulo 36, ‘Perspectiva dos próximos decênios’, CF diz: “Por uma feliz circunstância, a região riograndense - culturalmente a mais dessemelhante das demais zonas de povoamento - foi a primeira a beneficiar-se da expansão do mercado interno induzida pelo desenvolvimento cafeeiro.”. Neste trecho, a simpatia pela região sul fica mais explícita por se tratar de uma circunstância ‘feliz’, justamente em um texto que utiliza os adjetivos de forma muito parcimoniosa. Em uma frase mais adiante, CF mostra que a suspeita que se possa ter a respeito da sua simpatia pela região sul ter a ver com questões étnicas é uma suspeita verdadeira, isto é, uma constatação: “O Rio Grande do Sul praticamente nao conheceu economia escravista e na formação de sua população o contingente português foi menor que nas demais regiões do pais, até fins do século XIX.”

Através dessa desconstrução do discurso de CF em FEB, podemos perceber que se trata de um texto racista, e que explora esse racismo pelas vias explícitas e também pelas vias tácitas, pelos não-ditos, pelas entrelinhas.

É importante ressaltar, mais uma vez, que essa é uma análise de CF no papel de autor de FEB. Não é função deste texto julgar o papel de CF como Ministro, como professor ou como político. Portanto, no exercício deste papel, como autor de FEB, é sim, possível utilizar a expressão ‘arauto do retrocesso’ ao se referir a CF, como foi feito nesse texto, de maneira contextualizada.

Mais uma vez, é necessário reforçar que FEB tem muitas virtudes, o que deixam claro o imenso número de cópias vendidas e a adoção maciça deste livro nas escolas de economia.

Entretanto, colocar a desumanização negra no centro do debate, ou ainda, mais do que isto, colocar as questões referentes à abordagem que se faz do negro hoje, em textos considerados seminais para as ciências humanas, sociais e sociais aplicadas é não apenas necessário como um dever de todos aqueles que se propõem a aprender e a ensinar de forma crítica.

É de se supor que a maioria das pessoas que travam contato com FEB lê este livro procurando outras coisas e se atém puramente àquilo que procura: isto é, as questões econômicas propriamente ditas, o balanço de capitais, as contas públicas, o desenvolvimento industrial, etc.

Mas as questões ideológicas estão lá. Pode-se falar do racismo em especial, mas também estão lá a promoção do capitalismo, a defesa dos interesses de uma burguesia industrial nacional, etc. A despeito de toda ideologia contida no livro, a despeito do racismo destilado em FEB do início ao fim, contudo, a noção que se tem é a de um livro supostamente imparcial, como se supõem ser os livros ditos seminais. A ideologia nos é inculcada não nos materiais abertamente panfletários, mas naqueles que supostamente são ‘detentores da verdade’, isto é, materiais aos quais se devota um certo respeito e algum grau de veneração. É preciso descontrui-los para mostrar que, por detrás dessa suposta imparcialidade existem premissas, existe um discurso prévio e um discurso construído que são eivados de ideologia.

Nesse sentido, é muito importante que o debate acerca das questões étnico-raciais (e também as de gênero, de sexualidade, etc...) sejam abordadas não apenas de maneira direta, mas também de forma transversal. Seria interessante que essas questões pudessem ser abordadas não apenas em grupos que discutem as questões raciais, mas também entre aqueles que estão cursando seu primeiro ano da faculdade de economia, por exemplo.

Por fim, vale lembrar que o racismo é crime inafiançável, de acordo com o artigo 5º da Consitutição Federal de 1988. Portanto, para que nunca mais as pessoas se arroguem ao direito de encarar a escravidão como uma inevitabilidade histórica, em vez de a encararem como o crime hediondo contra a humanidade que realmente foi, gostaria de deixar como reflexão e como bandeira as seguintes palavras: Menos CF, mais CF88!

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Poética de Alberto da Costa e Silva em Castro Alves


[Castro Alves posando estilo Brad Pitt]


[Castro Alves pego de surpresa pensando]

                                                 
                                   [Alberto da Costa e Silva lendo como sempre]



           Diversas vezes, em 'Castros Alves, um poeta eternamente jovem', me questionei se Alberto da Costa e Silva duvidava de minha capacidade, nem de análise ou síntese, mas de leitura mesmo, sobre o texto. Pois somente dessa forma sua didática demasiadamente mastigada poderia se justificar. Só depois de algumas dezenas de páginas, comecei a aceitar essa escrita com maior gratidão, como se aceitasse um presente numa data não comemorativa, dada por espontânea demonstração de afeto. A partir daí, próximo da metade do livro, diminui consideravelmente meu senso crítico como se correspondesse as preciosidades das quais tanto cadenciava Da Costa e Silva. Talvez. Talvez tenha também me entregue ao deleite da prosa, resignando igualmente ao prazer estético do autor. Bem, os dois. Ambos os efeitos de uma escrita sensível e envolvente. Quanto ao segundo, salvo uma passagem que evidencia esse contágio poético, e contraria o estilo formal, até estéril, que a maioria dos historiadores utiliza para minimizar as inevitáveis deformações das interpretações sobre a realidade: 'E velava o seu sono, cuidadoso para que nenhum rumor a despertasse, nas manhãs que se seguiam as noites maldormidas. Eugênia deixava-se adorar, encantada por ser musa e senhora.' Agora, separado do resto do livro, a passagem não serviu de tão interessante como a queria que servisse. Inúmeras outras, com certeza, servem melhor do que ela pra exemplificar o caso. O livro, indiscutivelmente, é um livro de delicadezas.
          Depois da 'maratona' de Casa Grande e Senzala, como bem disse o Igor, a biografia poética de Castro Alves parece ter vindo como um refresco. Daqueles bem aguados, e com bastante açúcar. Porque o interesse da descrição e análise do cenário político-econômico-social-nacional-mundial-espacial-histórico[...] não chega a ser maior do que a descrição e análise da vida pessoal de Castro Alves. Isso não é de todo ruim. Mas também não é de todo bom. O estudo da história parte de uma coleção de testemunhos, uns são pessoas outros coisas, uns participam mais outros menos, uns falam menos outros mais, uns são sinceros outros mentem. Todos, em relativo grau de importância, impactam e compõe diretamente ou indiretamente seu cenário não-sei-das-quantas. E quanto a isso, Castro Alves é um pródigo testemunho, de direta e elevada importância, precursor do abolicionismo quando 'a escravatura era aceita como normal por quase todos' ou 'a escravidão era um fato normal da vida, estava ali para sempre'.
          O romantismo começou a nascer, algum estágio antes de broto ou feto, lá pelo século XVII, precisamente na aristocracia da nobreza provençal do sul do França. Pode-se dizer que de lá o amor idílico em seu sentido romântico, erótico, tal o entendemos hoje, foi concebido. Amar, quanto amor cortês, 'era um esporte aristocrático' como disse Paulo Leminsk. Só depois, bem depois, veio a se popularizar. E só depois de um processo, quase mecânico industrial, com a entrada das cantigas de amigo portuguesas nas máquinas importadas brasileiras, é que saíram esses poemas românticos abolicionistas de Castro Alves, que constituem a terceira e última etapa do romantismo no Brasil.
           A vida de Castro Alves não constitui uma excepcionalidade como um Machado de Assis do mesmo período. A poeta nasceu em Salvador, branco, bonito, seu pai era de grande influência na cidade e já participava de seu nicho cultural, intelectual. Estudou nas melhores escolas, e teve todo o suporte para a realização de suas peripécias poéticas. Pôde Castro Alves viver de e para a poesia, em seu sentido mais delirante. Tanto que em seu leito de morte ainda suspirava versos. O convívio incessante com seu ofício poético, e com suas declamações teatralizadas, fizeram de seu delírio em cena a sua própria vida. A vida do poeta, após a saída de Salvador, mais parece uma grande peça teatral. Poemas declarados, mulheres, paixões, intrigas, boêmia. O meninote, como o chamou carinhosamente Alberto Costa e Silva, por mais que vivesse em absoluta situação de conforto, não se deixou aconchegar. Poderia, como os muitos românticos, entregar-se aos simples encantos da vida. Mas sua sensibilidade não o deixou. Era-lhe impossível manter-se passivo quanto ao mundo à sua volta, impossível desviar os olhos para o que realmente acontecia. Por mais que a escravidão fosse 'uma instuição ancorada na história, sancionada pela fé cristã, amparada pelas leis e da qual dependia todo país', nada lhe parecia suficiente razoável para sustentar tais atrocidades. A dedicação social de seu ofício poético constituiu a sua verdadeira excepcionalidade enquanto artista. Os poucos poemas que lhe serviram para denunciar a escravidão bastaram para revoltar e indignar os que lhe deram ouvidos, ou mesmo leram. Escandalizava, e era preciso que alguém escandalizasse mesmo. Lógico, escândalos aos versos decassílabos e erutizados. Se bem que Castro Alves, por maior erudição que tivesse, ao ter grande preocupação social tinha, além dela, uma preocupação popular. Em suas declamações públicas era preciso um linguajar apropriado, era preciso que o público entendesse, e assim se sensibilizasse quanto ao poema, senão o conteúdo de suas palavras adornadas não chegariam às cabeças de quem as destinava e queria: o povo, em sua força mais visceral e popular. Salvo uma passagem, uma crítica aos poemas da ex companheira do poeta, de Ramalho Ortigão a Eugênia Câmara: 'não prestavam para nada'. Uma asneira, porque ao menos os poemas de Eugênia Câmara prestavam, irrefutavelmente, à própria Eugênia Câmara. Talvez, quanto à importância. Daí aquela diferenciação dos testemunhos históricos em que havia falado. Certamente que hoje em dia o debate poético esteja em outro foco, talvez um 'retrocesso' na busca de formas de ofício, um resgate a formas que possam se constituir únicas na sociedade, universais por certo momento. Como uma linguagem pertencente a certo grupo, alguma coisa que se justifique socialmente, e não se rebele quanto a essa posição de justificativa. Isto, talvez, torne a arte um integrante ativo para sociedade. Fico pensando, como seria se Castro Alves se rebelasse quanto à métrica romântica, e declamasse versos livres. No campo da suposição, o poeta talvez fosse escorraçado pelos críticos da época. E nem mesmo poeta fosse considerado. Estamos fadados à condição histórica e social com a qual nascemos e vivemos, como a língua em que falamos ou as roupas que podemos vestir, lógico que tudo está e é passível de mudança. Mas até mesmo esta mudança está condicionada à sua própria condição, a sua limitação social. Quanto à língua e a sua respectiva linguagem, e um pouco mais sobre o que acontece hoje, se buscamos na pluralidade das formas, da linguagem já com seus erros e desvios pré-estabelecidos - reconsiderados se erros ou se desvios, e na aceitação da diversidade, não é porque chegamos a um estágio maduro de total descoberta, mas porque chegamos a estágio de esgotamento de formas anteriores. Toda a língua é determinada por um estoque de formas, e de seus códigos somos escravizados, mas por ela atravessamos e devemos atravessar para outros lugares, para lá onde a liberdade principia. São estas as funções de seus símbolos. Não são janelas como bem falam, pois numa interpretação poética, cada janela possui certa paisagem. Mas quanto à língua, aos códigos, aos símbolos, às palavras, uma janela pode expor diversas paisagens. A comparação, então, estaria mais para um monitor de programação infinita. Assim, amarrando um pouco isso tudo, as linguagens realizam os seus possíveis enquanto línguas. Mas, a arte enquanto pós-moderna, contemporânea, precisamente as poesias, os poetas que trabalham com as palavras, têm o dever de diluir a linguagem com suas formas demasiadamente saturadas. Lembro Manoel de Barros: 'Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem'. Assim fez também Mallarmé, com poesias que mais pareciam destinadas aos poetas. Castro Alves seguiu um caminho diferente do que se discute em poesia hoje, e se isso é dito como discutível, com a criação de paisagens sinestésicas e sensíveis. Seus poemas sociais tinham um esclarecido destinatário, e até um objetivo: libertar uma sociedade escravista de seus paradigmas desumanos. Há poesias e poesias, poemas e poemas, categorizá-los estaria na inevitável exclusão de alguns. O que evidencia as peculiaridades de cada um, e na falha do sistema de ordenação. Mas é possível, além disso, apontar estilos, tendências e influências. Como as de Castro Alves a partir de Pierre-Jean de Béranger, John Greenleaf Whittier, e pricipalmente Heinrich Heine. Suas influências foram tantas que cometeu delas uma grande gafe ao ‘repetir as imagens tiradas do orientalismo romântico francês e a estender para o Sul do Saara as paisagens do deserto'. Basicamente, achava que a terra natal dos escravos, como toda África, se parecia com o deserto do Saara, com seus 'oceanos de areia’, muito diferentes da realidade a que correspondiam, mais ao sul, algumas fartas florestas e vales floridos. Mesmo nisto, Alberto da Costa e Silva não se mostra indignado. No texto, que estava com a mão distante, logo se aproxima em defesa do jovem poeta, como um vovô que protege o neto depois dele ter feito alguma traquinagem: 'O retrato trágico exigia o deserto'. Justificou a gafe, protegendo-o de uma forma muito afetuosa, até meiga, como se apropriasse de sua familiaridade. Essas mesmas apropriações não se resumem somente a esse episódio, Da Costa e Silva traçava, quase sempre, o destino do outro poeta como se ele o conspirasse para si mesmo. De fato, um contador que já sabia o final de toda tragédia, mas ao mesmo tempo se surpreendia e se espantava tal como um leitor. Por isso, não é difícil se sentir familiar ao Alberto da Costa e Silva como, também, ele se mostrava familiar a Castro Alves. Tudo por conta desse esmero, até mesmo carinho, que qualquer um desconfia quando bate um primeiro olhar.         
          Em parte, me senti particularmente tocado pelo Antônio Frederico de Castro Alves. Nunca o tinha lido, e nem sabia da importância social de suas imagens. Provavelmente, dadas as melhores circunstâncias, se eu estivesse vivo por sua época, e relativamente próximo de seu convívio, certamente que me esforçaria pra se tornar um de seus amigos. Acho que a idade talvez nos tenha aproximado, ou só o apreço do autor por ele. Ou ambos, novamente. Por essa época, nas disputas hilariantes que aconteciam nos teatros, entre Tobias Barreto e Castro Alves, certo que ficaria no time do segundo, e talvez naquela confusão lá em 23 de 1866, quando só a polícia conseguiu apartar a briga entre as gangues rivais, não seria improvável que estivesse ali pelo meio. Curioso é saber que, apesar de tantas sensibilidades, erudições, e discursos proféticos, a terceira fase do romantismo foi dividida entre duas facções somente por desacordo pessoal entre seus maiores representantes. Como se rivalizassem por ter apenas gostos diferentes. Um tanto infantil. E ainda as temáticas de suas disputas eram sempre desmoralizantes, e às vezes de esclarecido machismo ao ataque de suas mulheres. Salvo em Gregório Duvivier, numa coluna pra Folha: ‘
Filho da puta, filho de rapariga, corno, chifrudo. Até quando a gente quer bater no homem, é na mulher que a gente bate. A maior ofensa que se pode fazer a um homem não é um ataque a ele, mas à mãe — filho da puta- ou à esposa — corno. Nos dois casos, ele sai ileso: calhou de ser filho ou de casar com uma mulher da vida. Muitos versos eram feitos de improviso, principalmente por Castro Alves, como sambistas ou até mesmo mcs de séculos passados. Enfim, no cultivo de minha leitura, confesso que sofri um pouco do contágio poético romântico, e fui ler alguns poemas ufanistas de Gonçalves Dias – muito diferentes como primeira fase. De tudo, acabei escrevendo um poeminha. E claro, não se compara às grandiosidades românticas. São hexassílabos, acentuação à sexta, uma antes dos decassílabos heroicos. Por isso o título “Heróis, jamais heroicos” pode ter uma interpretação quanto à métrica também. Ao longo do poema, falo sobre o delírio do novo personagem herói, que não mais se sustenta por esses tempos. E como falei no inicio do texto, em relação ao amor, as concepções de mundo que julgamos universais, as formas assim como os sentimentos, são sociais e se expressam socialmente. Não vieram juntos ou imbuídos com a humanidade, nem por Adão e Eva, nem pelos macacos. Seus gestos, depois de criados, vão se repetindo ao rolar dos tempos. Como as novelas da trágica romântica que sempre se repetem, e de lá casais aprendem como devem se comportar contra si mesmo. É neste sentido que a vida imita arte, e Castro Alves, nesta ingênua repetição de sua própria poética delirante viveu imerso.




'Heróis, jamais heroicos'


Heróis do mundo grande,

Que das vidas sem glória

Lutam como em Cervantes

Atrás da própria escória...

Estão de si perdidos,

No ermo do fausto sonho - 

Lar dos bosques floridos

Tão vastos... que enfadonhos -.



Bravos de sangue morno...

Canta o silêncio... O hino

De ida para o retorno:
- Sigo para lá, divino...
Onde filhos à espera
Choram a mãe servil...
Qual o leito a quimera
É suntuosa e gentil.
Assim cantam consigo
Como berros à gruta.
Pois não há inimigos
Que se afrontem a escuta.

Dos devaneios as viagens
São também verdadeiras,
Quando olhos às paragens
Veem pés sob as clareiras...
Estão imundas as pernas
Que partiram pelo nada.
- Deus, és tu com lanterna?
E de novo em disparada:

Correm sobre daninhas,
Perigosas as flores
Que nelas são as graminhas
A espantar dissabores...
Cortam o torpe vento
Que lhes aparta o ar puro,
Pondo-se aos gestos lentos
Sendo eles mais seguros...
Logo afundam as solas,
Que o chão à lama derrete,
Como o apertar das molas
Sem a força que as verte...
Tornam-se então triunfantes
De volta a ágil passada,
Mas qual o adágio infante:
-  Partir em retirada!

Já ao final do destino -
Em seu lar de partida -,
Mostra-se o desatino
Do tronco sem ferida.
Talham-se fundas marcas
Nos peitos aplainados
Para que as vis batalhas
Lembrem-se nos bronzeados 
De seus bustos feridos...
E as criativas memórias
Finquem no corpo o abrigo
Para as novas estórias.