O livro é claro a maior parte do
tempo e tenta ser restrito aos aspectos econômicos tanto quanto possível. É bem
verdade que certos detalhes técnicos de economês eu não pesquei, mas não acho
que tenha prejudicado a compreensão geral do livro. Senti falta de um escopo
mais amplo. De considerações políticas e sociais. Senti falta de tomada de
opinião e de juízo de valor.
Fiquei especialmente incomodado com
a aparente indiferença com que ele aborda a questão da escravidão. Manter um
distanciamento, segurando o foco na economia de algo tão desumanamente humano
como a escravidão coloca um bode na sala do livro. Acho justo que o livro,
retratando a economia da época da escravidão, aborde o escravo como engrenagem
nesse processo, mas ele não foi escrito no século XIX. Era para conter minimamente
algum constrangimento com a escravidão. Mas faltou. O próprio Piketty, em seu “O
Capital no Século XXI”, menciona a escravidão economicamente, mas não deixa de
emitir alguma opinião sobre o assunto. Como gostei muito da leitura, fico procurando atenuantes, como pensar em comparar com outros livros escritos na mesma época —
avaliando a maneira como falavam da escravidão. Ou entender este meu incômodo
como um viés meu, que sempre quero ver a questão da escravidão mencionada e debatida, assim como a questão da
desigualdade. Ou então que uma opinião indignada com a escravidão é algo tão
difundido e previsível que seria dispensável no estudo dele. Mas nenhum desses
meus argumentos, nem todos em conjunto, conseguem tirar o bode da sala. Para
concluir as reflexões seguintes, tive de fazer um esforço para enxergar as
pontes apesar do fosso.
Senti falta também de uma
consideração específica à desigualdade. O termo é mencionado algumas vezes, mas
não ganha atenção especial, nem no capítulo final, que tem um tom mais
propositivo que o resto do livro, prioritariamente descritivo.
Além dessas faltas, outros pontos
me vieram a partir da leitura. Um deles é como a economia mudou do século XIX
para cá. Hoje estamos tão industrializados que já entramos em
desindustrialização. Nisso o Estado teve papel fundamental, bancando a criação
da indústria de base a partir do Getúlio — CSN, Álcalis, Vale do Rio Doce, Petrobrás,
o próprio BNDE (que na época não tinha S). Na desindustrialização também, com a
abertura dos mercados — a adesão de Collor e FH à cartilha neoliberal — e com
as privatizações.
Um segundo ponto é o de que ainda
precisamos mudar muito, economicamente falando. Ainda somos muito dependentes de
exportação de produtos primários. OK, não é mais só café nem só açúcar, é também
a soja, o minério de ferro, o boi, o porco, o jogador de futebol que tem banzo
quando chega na Europa ou no Oriente Médio. O setor que cresce é o agronegócio.
Apesar de muita coisa ter mudado, de termos conseguido criar um mercado interno
robusto, com reservas fortes, nossa economia ainda é muito influenciada pela
demanda externa. Toda a prosperidade é associada ao aumento de preços das
commodities. Talvez do mesmo modo que o café financiou a industrialização do
sudeste de forma geral, e particularmente de SP, daqui a uns decênios olharemos
o boom das commodities dos anos Lula como o ponto de inflexão que gerou
distribuição de renda significativa. Não uma redistribuição pura e simples, mas
os mais pobres ficaram, pela primeira vez, com uma fatia maior da nova riqueza que
se gerava.
Ele deixa muito claro também o
quanto a elite cafeeira influenciava o governo e suas políticas econômicas.
Ali, no momento de superprodução e queda do consumo, na década de 1930, a
solução adotada foi a prática antiga de socializar os prejuízos e privatizar os
lucros. Na crise financeira do fim dos anos 90 também foi assim. Os bancos
foram socorridos com dinheiro público. Hoje no chamado ajuste fiscal também é
essa, em linhas gerais, a proposta: mantemos um sistema tributário regressivo,
duro com os pobres e principalmente com a classe média e leniente com os ricos
e ultrarricos. Mesmo numa situação em que é preciso gerar caixa, a resposta é
cortar as despesas que funcionam como agentes distribuidores de renda (saúde e
educação), sem encostar em grandes fortunas ou capital especulativo. A relação
entre os grandes grupos econômicos e os governos é tão próxima, que acho que já
nem é o caso de se falar em influência do poder econômico sobre o político, mas
de uma identidade, uma fusão entre eles. Na plutocracia que vivemos, há pouca
diferença em um e outro ramo do poder.
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