segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Um Bode Preto na Sala ou Os Fossos e Pontes de Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado

O livro é claro a maior parte do tempo e tenta ser restrito aos aspectos econômicos tanto quanto possível. É bem verdade que certos detalhes técnicos de economês eu não pesquei, mas não acho que tenha prejudicado a compreensão geral do livro. Senti falta de um escopo mais amplo. De considerações políticas e sociais. Senti falta de tomada de opinião e de juízo de valor.

Fiquei especialmente incomodado com a aparente indiferença com que ele aborda a questão da escravidão. Manter um distanciamento, segurando o foco na economia de algo tão desumanamente humano como a escravidão coloca um bode na sala do livro. Acho justo que o livro, retratando a economia da época da escravidão, aborde o escravo como engrenagem nesse processo, mas ele não foi escrito no século XIX. Era para conter minimamente algum constrangimento com a escravidão. Mas faltou. O próprio Piketty, em seu “O Capital no Século XXI”, menciona a escravidão economicamente, mas não deixa de emitir alguma opinião sobre o assunto. Como gostei muito da leitura, fico procurando atenuantes, como pensar em comparar com outros livros escritos na mesma época — avaliando a maneira como falavam da escravidão. Ou entender este meu incômodo como um viés meu, que sempre quero ver a questão da escravidão mencionada e debatida, assim como a questão da desigualdade. Ou então que uma opinião indignada com a escravidão é algo tão difundido e previsível que seria dispensável no estudo dele. Mas nenhum desses meus argumentos, nem todos em conjunto, conseguem tirar o bode da sala. Para concluir as reflexões seguintes, tive de fazer um esforço para enxergar as pontes apesar do fosso.

Senti falta também de uma consideração específica à desigualdade. O termo é mencionado algumas vezes, mas não ganha atenção especial, nem no capítulo final, que tem um tom mais propositivo que o resto do livro, prioritariamente descritivo.

Além dessas faltas, outros pontos me vieram a partir da leitura. Um deles é como a economia mudou do século XIX para cá. Hoje estamos tão industrializados que já entramos em desindustrialização. Nisso o Estado teve papel fundamental, bancando a criação da indústria de base a partir do Getúlio — CSN, Álcalis, Vale do Rio Doce, Petrobrás, o próprio BNDE (que na época não tinha S). Na desindustrialização também, com a abertura dos mercados — a adesão de Collor e FH à cartilha neoliberal — e com as privatizações.

Um segundo ponto é o de que ainda precisamos mudar muito, economicamente falando. Ainda somos muito dependentes de exportação de produtos primários. OK, não é mais só café nem só açúcar, é também a soja, o minério de ferro, o boi, o porco, o jogador de futebol que tem banzo quando chega na Europa ou no Oriente Médio. O setor que cresce é o agronegócio. Apesar de muita coisa ter mudado, de termos conseguido criar um mercado interno robusto, com reservas fortes, nossa economia ainda é muito influenciada pela demanda externa. Toda a prosperidade é associada ao aumento de preços das commodities. Talvez do mesmo modo que o café financiou a industrialização do sudeste de forma geral, e particularmente de SP, daqui a uns decênios olharemos o boom das commodities dos anos Lula como o ponto de inflexão que gerou distribuição de renda significativa. Não uma redistribuição pura e simples, mas os mais pobres ficaram, pela primeira vez, com uma fatia maior da nova riqueza que se gerava.


Ele deixa muito claro também o quanto a elite cafeeira influenciava o governo e suas políticas econômicas. Ali, no momento de superprodução e queda do consumo, na década de 1930, a solução adotada foi a prática antiga de socializar os prejuízos e privatizar os lucros. Na crise financeira do fim dos anos 90 também foi assim. Os bancos foram socorridos com dinheiro público. Hoje no chamado ajuste fiscal também é essa, em linhas gerais, a proposta: mantemos um sistema tributário regressivo, duro com os pobres e principalmente com a classe média e leniente com os ricos e ultrarricos. Mesmo numa situação em que é preciso gerar caixa, a resposta é cortar as despesas que funcionam como agentes distribuidores de renda (saúde e educação), sem encostar em grandes fortunas ou capital especulativo. A relação entre os grandes grupos econômicos e os governos é tão próxima, que acho que já nem é o caso de se falar em influência do poder econômico sobre o político, mas de uma identidade, uma fusão entre eles. Na plutocracia que vivemos, há pouca diferença em um e outro ramo do poder.

Nenhum comentário:

Postar um comentário