quinta-feira, 21 de maio de 2015

Oh, quão dessemelhante...



            É significativo termos recebido a herança através de uma nação ibérica. É um dos territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com outros mundos. Ele constitui uma zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, desse europeísmo, tendo se desenvolvido, em alguns sentidos, às margens das congêneres europeias, e sem delas receber qualquer incitamento. Existe uma característica bem peculiar ao povo dessa região, uma característica que está longe de partilhar com qualquer dos seus vizinhos.  Nenhum desses vizinhos soube desenvolver a tal extremo essa cultura da personalidade. Para eles, o índice do valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém, em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço próprio, de suas virtudes. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida. As teorias negadoras do livre-arbítrio foram sempre encaradas com desconfiança e antipatia pelos espanhóis e portugueses. Nunca eles se sentiram muito à vontade em um mundo onde o mérito e a responsabilidade individuais não encontrassem pleno reconhecimento.
            A leitura do livro "Raízes do Brasil" de Sérgio Buarque de Holanda nos proporciona a noção de como a história do Brasil é imensamente influenciada pela característica do homem português aventureiro. As consequências dessa característica foram determinantes na nossa colonização e nos influência até hoje. Mas não apenas a figura do homem aventureiro, sobretudo a imagem do homem aventureiro que figura o extremo oposto do homem trabalhador. Boa parte do livro "Raízes do Brasil" trafega entre essa dicotomia e o seu desenrolar na formação da história brasileira. A alteridade espanhola reveladora da identidade portuguesa. O homem lusitano lembra os gregos no que diz respeito ao culto do ócio. Conforme coloca Sergio Buarque de Holanda: "no exame da psicologia desses povos é a invencível repulsa que sempre lhes inspirou toda moral fundada no culto ao trabalho". O ideal de vida do homem português era a condição de nobreza que afastasse a necessidade do trabalho cotidiano. Tanto que nos ofícios urbanos, eles sentiam grande atração pelo ganho fácil ou pelo negócio aparentemente lucrativo. Lembremos ainda que no período de escravidão eram comuns os chamados escravos de ganho, indivíduos que possuíam autorização para circular pelas cidades vendendo algo ou oferecendo serviços para arrecadar lucros aos seus donos. A verdade é que tamanho era o sentimento aventureiro e o interesse por riquezas que, segundo depoimento de um viajante do século XVIII, era mais fácil pegar um navio e atravessar o atlântico do que ir de cavalo de Lisboa a Porto (uma distância mais ou menos parecida entre o Rio de Janeiro e Campos do Jordão em São Paulo). 
No que diz respeito à ocupação das terras brasileiras, o espírito aventureiro não se fez diferente. Em Portugal a agricultura era tida como desprezo, o labor agrícola era menos atraente para seus compatriotas do que as aventuras marítimas e as glórias da guerra e da conquista. Ou seja, não é que fossem preguiçosos, mas, nas palavras de um escritor Aubrey Bell (citado no "Raizes do Brasil"): não valia a pena. Além disso, os portugueses não tinham amor ao Brasil. Não trabalharam a terra para o seu aprimoramento. Buscavam se aproveitar de qualquer maneira possível e por mais ricos e mais arraigados que estivessem no Brasil, ainda sim pretendiam levar tudo a Portugal. Logo não era de se estranhar que o processo de colonização se fez de forma descuidada e abandonada. O sucesso da exploração colonial se deveu a mão de obra escrava e a quantidade de terra farta. Terra farta o suficiente para gastar e arruinar. Não se buscavam técnicas que pudessem melhorar o plantio. Se houve desenvolvimento técnico, foi, antes de qualquer coisa, para diminuir o esforço empregado e não o melhoramento da produtividade.
A sociedade colonial era uma civilização rural onde as cidades eram suas simples dependências. Os fazendeiros escravocratas monopolizavam a política e dominavam todas as posições de mando. Cada propriedade era como um núcleo autossuficiente onde a autoridade do patriarca era o incontestável. Tamanho era o poder desse patriarca que, "Não são raros os casos como ode um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a a morte em conselho de família e manda executar a sentença, sem que a Justiça de um único passo no sentido de impedir o homicídio ou de castigar o culpado, a despeito de toda a publicidade que deu ao fato o próprio criminoso". Com o gradual declínio da velha lavoura e, consequentemente, o crescimento da importância das cidades, bastante antecipada pela vinda da Corte portuguesa e posteriormente pela independência, os patriarcas rurais perderam muito de seu poder e de suas posições privilegiadas. A data da Abolição marca no Brasil o fim do predomínio agrário. A grande lavoura deixa de ser servida pelo braço escravo. O mundo rural se encontra desagregado e começa a ceder a invasão impiedosa do mundo das cidades Decai rapidamente a indústria caseira e diminuem em muitos lugares as plantações de mantimentos, que garantiam outrora certa autonomia a propriedade rural. O domínio agrário passa a se aproximar, em muitos dos seus aspectos, de apenas um centro de exploração industrial. Vale citar um breve período em que o Brasil foi envolvido por uma febre intensa de reformas que se registrou precisamente em meados do século retrasado e especialmente nos anos de 51 a 55. A fundação do segundo Banco do Brasil em 1851, a primeira linha telegráfica em 1852, o Banco Rural e Hipotecário em 1853, a primeira linha ferroviária em 1854 (ligando o porto de Mauá a estação do Fragoso). A segunda linha ferroviária em 1855 (ligando o Rio a São Paulo). O caminho aberto por tais transformações levaram a uma liquidação mais ou menos rápida dessa herança rural e colonial, ou seja, da riqueza que se funda no emprego da mão de obra escrava e na exploração extensiva e perdulária das terras de lavoura. Não é por coincidência cronológica que um período de excepcional vitalidade nos negócios e que se desenvolve sob a direção e em proveito de especuladores geralmente sem raízes rurais tenha ocorrido nos anos que se seguem imediatamente ao primeiro passo dado para a abolição da escravidão. No entanto, é interessante notar que o saudosismo dos velhos tempos se faz presente através de alguns símbolos que, de certa forma, resgatavam o caráter de nobreza dessa sociedade aristocrática de outros tempos. Como o anel de grau e a carta de bacharel, por exemplo. 
No que diz respeito às diferenças entre portugueses e espanhóis, existem duas dissemelhanças principais nas suas respectivas colonizações. Em primeiro, os castelhanos queriam fazer do país ocupado um prolongamento orgânico do seu (eram reproduzidos os mesmos processos já empregados na colonização de suas terras da metrópole, apenas apurados pela experiência). Em segundo, eles fugiam ,deliberadamente, da marinha, preferindo as terras do interior e os planaltos. Na época, os Espanhóis eram um povo internamente desunido e sob permanente ameaça de desagregação. Por isso a fúria centralizadora, codificadora, uniformizadora de Castela. Não é assim de admirar que se tenha como acompanhamento obrigatório o propósito de tudo regular, ao menos em teoria, quando não na pratica, decorrente da carência de verdadeira unidade. A construção de cidades foi o mais decisivo instrumento de dominação que conheceram. E não foi sem boas razões que esses povos usaram de semelhante recurso, pois a experiência tem demonstrado que ele é, entre todos, o mais duradouro e eficiente. Sem dúvida, vale muito a pena à leitura do capítulo 4 "O semeador e o ladrilhador", que por sinal é uma metáfora excelente para descrever a constituição dos dois povos, onde são descritas as orientações sobre como deveriam ser as construções espanholas e como foram as lusitanas.
Portugal era um país, comparando com a Espanha, sem problemas. Sua unidade politica foi realizada desde o século XIII. A colonização do Brasil foi profundamente moldada pelo aspecto do homem aventureiro em busca do lucro fácil. O que interessava era explorar as riquezas da terra. Portugal  cuidou menos em construir, planejar ou plantar alicerces, do que em feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão. Mesmo nos melhores momentos, a obra realizada no Brasil pelos portugueses tiveram um caráter mais acentuado de feitorização do que de colonização. Assim a ocupação lusitana foi essencialmente litorânea e tropical. Pois era sabido que os gêneros produzidos junto ao mar podiam conduzir-se facilmente a Europa e que os do sertão, pelo contrario, demoravam a chegar aos portos onde fossem embarcados e, se chegassem, seria com maiores despesas. Além disso, os portugueses criavam dificuldades às entradas terra adentro com medo de que a região Litorânea fosse despovoada. No regimento do primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, estipula-se, expressamente, que pela terra firme adentro não vá tratar pessoa alguma sem licença especial do governador ou do provedor-mor da fazenda real. Contam ainda, as cartas de doação das capitanias as seguintes instruções: "poderão os donatários edificar junto do mar e dos rios navegáveis quantas vilas quiserem". Só existiu mudança dessa característica por conta do descobrimento das minas, sobretudo das minas de diamantes. Foi quando finalmente Portugal passou ingressar nas terras do interior e a por um pouco mais de ordem em sua colônia. Ordem mantida com artifício pela tirania dos que se interessavam em ter mobilizadas todas as forcas econômicas do país para lhe desfrutarem, sem maior trabalho, os benefícios. Não fosse também essa circunstancia, veríamos, sem duvida, prevalecer ate o fim o recurso fácil à colonização litorânea.
Sergio Buarque de Holanda cita no último capítulo, o naturalista norte-americano Herbert Huntington Smith, que realizou diversas expedições ao Brasil. “De uma revolução”, dizia “ é talvez o que precisa a América do Sul. Não de uma revolução horizontal, simples remoinho de contendas politicas, que servem para atropelar algumas centenas ou milhares de pessoas menos afortunadas. O mundo esta farto de tais movimentos. O ideal seria uma boa e honesta revolução, uma revolução vertical e que trouxesse a tona elementos mais vigorosos, destruindo para sempre os velhos e incapazes.De que maneira se efetuaria essa revolução? “Espero”, respondeu Smith, “que, quando vier, venha placidamente e tenha como remate a amalgamação, não o expurgo, das camadas superiores; camadas que, com todas as suas faltas e os seus defeitos, ainda contam com homens de bem. Lembrai-vos de que os brasileiros estão hoje expiando os erros dos seus pais, tanto quanto os próprios erros. A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas raízes”.


Terceira raiz

                                                            Terceira raiz


          A atemporalidade é não somente um fator proeminente de caracterização às grandes obras, mas consequência e indício de permeabilidade às eras, mútua de integridade aos 'movimentos' quais referem o período. Em Raízes do Brasil, o caráter essencialmente ensaístico também não reduz a forma orgânica à pedantismos; forma-se uma grande orquestra de cognições fatídicas e líricas, sonante aos labores eruditos e de seus brios resguardos idílios. Ainda que aparente auto reger-se, Sérgio Buarque de Holanda ali esteve sempre com as mesmas virtuosidades de um discreto e exímio tecelão, qual a presença dá-se por notória quando evidentes se tornam as descrições qualitativas - que mais sabem compor do que destoar. Desta forma em que seguem as mais sinceras veleidades, indigno seria propor críticas que mais encargam de destruir do que compor. 
          A colonização predatória ainda é - por maior distância qual diste de um assumido plano - um processo - curiosamente autêntico a América, e enfadonho a África - de formação cultural. Tal coincidência cultural da colonização portuguesa é senão um encontro acaso, uma convergência de interesses dado ao modo pródigo com qual se administrava. Todo o desleixo português para com a colônia permitiu a instantânea absorção de valores secundários, e não seria de todo certo reafirmar a didática eurocêntrica de Camões que 'os portugueses aqui puderam converter índios em brasileiros'; talvez precisamente o inverso: 'os índios aqui puderam converter portugueses em brasileiros'. A tétrica dicotomia das relações de domínio seria um tanto imprecisa quanto à apropriação de valores, pois os maleáveis processos de identificação cultural podem de certa maneira suspender as funções sociais - cedendo à massa servil a poderosa vontade de indivíduo.
          As impessoais formalidades europeias, ávidas por eriçar planos socioeconômicos, são amplamente rejeitadas pelos ibéricos devido às proximidades com as quais se fixam os laços mercantis e de interesse. Enlaçam-se comerciantes e consumidores, farsadamente despidos de suas primeiras desígnias para a realização das mesmas. Este enlace, talvez tenha sido pioneiro do malogro damatistta ao definir o 'jeitinho brasileiro' como principal perfurador social à sociedade brasileira, ao tratar um complexo processo de aglutinação como mera atitude matreira de comunhão. Comparadamente - como que não comparáveis -, Raízes do Brasil traça um perfil etimológico de indeterminada aplicação que finda por avançar os traços passadouros de O que faz o brasil, Brasil?, mesmo que o segundo tenha sido escrito próximo ao quinquagenário do primeiro. 
         Ilustre ao expor: os portugueses precisaram anular-se durante longo tempo para afinal vencerem. Como o grão de trigo dos Evangelhos, o qual há de primeiramente morrer para poder crescer e dar frutos. E adiante por algumas páginas com Joaquim Nabuco: em nossa política e sociedade são os orfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam. Fora seus alicerces contextuais, define-se o quão atuante é toda e qualquer mortificação para o princípio de nascimento, ou seja, sem mais estratagemas poéticos, filosóficos ou teológicos, o quão necessário é a ruptura de velhas ordens para a criação de novas mais adequadas, e anterior a produção desta ainda seria preciso construir distâncias de desvencilhamento. 
          Porém o capitalismo, em seu sistema de apropriação técnica usual, induz a construção de distâncias que criam novas ordens que mais sabem dissimular do que adequar - adequam-se em prol de si mesmas! - e que são causa e consequência da esterilização das relações agora setoriais, como os novos empregadores e empregados. O sistema age como provedor da normatização mundana das relações sociais, e atua em contra fluxo às pesquisas embrionárias de identificação sociocultural, pois poderia o próprio ser considerado o reflexo de identidade sociocultural da era contemporânea. Em contrapartida, Costa e Silva ao resguardar aos variados impactos mundanos no Brasil, uma profunda e cadente influência escrava-africana, constitui uma nova interpretação que não mais perpetua a função terciária (atrás de portugueses e índios) ao negro, mas tonifica este elemento como de fácil aplicação contemporânea e ainda delineador de políticas socioeconômicas mais recentes. Atenta-se ainda que Sérgio Buarque de Holanda não considerou de toda importância a influência negra, pois ao aproximar sua pesquisa etimológica ao período seiscentista - época em que a mão de obra escrava valorizava-se por não disseminada -, a África ainda não havia moldado de maneira relevante o insipiente perfil brasileiro, cabia-lhe de fato o fatídico papel terciário. [Evidente que meu intento seja de propor recusas às fraquezas de Raízes do Brasil, justificando-as. Mas não pareço tão partidário, nem mesmo tão incoerente]. 
          Sobre este sistema de múltiplas engendrações que tramam os atuais cotidianos, o escritor uruguaio Eduardo Galeano incumbiu-se de tecer críticas ao longo de toda sua vida, enaltecendo suas progressivas consequências na América Latina. Em O livro dos Abraços, há um curioso trecho sobre toda desumanização remanescente do desenlace sistemático: Em nossas terras, os numerinhos têm melhor sorte que as pessoas. Quantos vão bem quando a economia vai bem? Quantos se desenvolvem com o desenvolvimento? 
          Ressalta-se a necessidade de diferenciação entre: burocratização e relação pessoal ao campo político-administrativo, e esterilização e relação pessoal ao campo político-social. Ambos são traços de máxima importância para construção de identidade - atuando em campos distintos -, e não se encarregam de conjurar identificações estanques, mas de conflitar paradoxalmente em modelos interfaciais. Talvez, precisamente neste fator a sociedade brasileira tenha se erigido, na ‘simples’ confluência de paradoxos culturais, e não algo meia parte. Neste caso, apoiam-se as culturas umas às outras, e mesmo a sociedade apoia-se nela mesma. Pois a capacidade de existência de paradoxos é não o conflito de formas antagônicas, mas a existência de ambas as partes bivalentes. De todo certo seria afirmar que vivemos uns nos outros, de acordo com Sérgio Buarque de Holanda, em respaldo à cordialidade pagã às relações sociais. E que desta forma – tal forma insurgente a solenidades, brasileira - estaríamos fadados a carregar os fardos históricos de nossos antepassados e ainda os nossos, dando assim toda credibilidade ao conto de Guimarães Rosa em ‘A terceira Margem do Rio’ de outro ponto de vista: há de o filho ocupar a mesma jangada em que pai houve de morar sozinho; e enfim quando se dá o momento de transpasse, de encargo de valores de pai para filho, da eminência do devir, da congênita transformação de partes antagônicas ao espaço, da terra firme dos círculos familiares para as águas fluidas da vida prática, da criação do elemento terceiro produto dos mais variados encargos; é justo o instante da fuga - o imponderável medo da entrega -, que perpetua a existência de forças bivalentes e congruentes, esta permanência de integridades caracterizada modernista e esta aglutinação caracterizada contemporânea, e que não é senão a produção do mais genuíno terceiro.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Raízes do Brasil – Sérgio Buarque de Holanda
Capítulos 4 – O semeador e o Ladrilhador


O exemplo que nos falta




“Dominação portuguesa, que cuidou menos em construir, planejar ou plantar alicerces. ”

“Colonização espanhola caracterizou-se por grandes núcleos de povoação estáveis e bem ordenados. ”

Os debates no Brasil terminam sempre na mesma, seja qual tema for. O que nos falta hoje é o que nos faltava há 50 anos, ou melhor, o que nos falta desde a colonização portuguesa, sendo 2 exemplos simbólicos: planejamento e educação, ao contrário da colonização espanhola, que desde sua ocupação, já constrói universidades e, de fato, cidades.

A mistura da pequenez e covardia dos portugueses que, ao invés de pensarem a colônia como uma extensão orgânica do seu país, freiam diversos tipos de desenvolvimento (seja intelectual, material ou infraestrutura) e me remete aos dias de hoje quando nossa sociedade parece continuar com esse pensamento pequeno de uma nação que tem medo dela mesma. Do que ela será capaz de se tornar se, verdadeiramente, ficar independente.

Considero que hoje ainda somos colonizados. Por nós mesmos. Pela nossa falta de tudo aquilo que não nos foi ensinado a ser, a sentir, a saber que podemos alcançar.


 Capítulo 5 – O homem Cordial

Ô Tiozinho

“Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão ”

“Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade”

Antes de existir o Estado, existiram as relações humanas.

Joaquim Nabuco: “em nossa política e em nossa sociedade (...), são os órfãos, os abandonados, que vencem a luta, sobem e governam”

A diferença ente o público e privado reflete quando o rico acha que pode tudo e o pobre não considera o público sendo seu.  

A figura personalista que impera no Brasil, que insiste em criar heróis e vilões, a partir das relações domésticas e que se espalha em toda estrutura de relação social, saindo de casa para o trabalho, governo, amizades, estudos e a rua.

Escrever sobre a cordialidade depois de ler a entrevista do Manuel Castells me fez por um momento repensar. Mas chego à conclusão que o autor e o Castells não se opõem, tendo em vista que faz menção a nossa “influência ancestral”, contudo afirma: “seria engano supor que essas virtudes possam significar civilidade.  

As relações no Brasil são humanizadas porque isso nos aproxima do que fomos educados a ser. É na maneira que ficamos amigos do colega de trabalho (horror às distâncias), da empregada doméstica que passa a fazer parte da família (desde sempre), do jeitinho amigo que sem querer (ou por querer) já está interferindo quando se precisa ser duro, dizer não.


Afinal de contas, não custa nada você fazer um favor pro seu tio, né?

"Ai, que preguiça!"


"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. (...) Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais de seis anos não falando. Sio incitavam a falar exclamava: If — Ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada." (...) Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. "

Com essa frase, Mario de Andrade abre a obra que talvez seja a mais biográfica do Brasil: Macunaíma, criança parida feia de uma índia, preto, filho do medo da noite, preguiçoso, malandro, adepto do lucro fácil e nada afeito ao trabalho. Seus feitos foram fabulosos e assunto de toda a gente. Não era um personagem famoso pela dedicação ao trabalho, pela personalidade disciplinada, pelo caráter ordeiro e trabalhador. Como os brasileiros também não o são - defende Sérgio Buarque de Holanda.

Não coincidentemente, Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade foram contemporâneos - na mesma época em que, entusiasticamente, se buscava uma identidade nacional. Era da difusão do livro Brasil afora, através da empreitada de Monteiro Lobato e sua incansável defesa pela transformação em um país de leitores; época de utilização do rádio como meio de comunicação nacional, abrangendo do Oiapoque ao Chuí com uma única programação que nos tornava irmãos, a despeito das diferenças regionais; época das revistas com suas sátiras e grandes reportagens - e da divulgação de um ideal urbano glamouroso e nacional; época do Catálogo Brasilianas, que divulgava as grandes obras nacionais, que todo brasileiro culto deveria ler para entender o seu país. Época de buscarmos uma explicação sobre quem somos, pois com esta compreensão, talvez, fôssemos capazes de encontrar uma fórmula para o desenvolvimento como nação.

Talvez não tenhamos nos saído tão bem na tarefa de nos desenvolvermos (graus variáveis de sucesso podem ser atribuídos, dependendo da lente ideológica que se usa para analisar o período), mas certamente fizemos um bom trabalho na compreensão das características que nos tornam singulares como sociedade. A pintura, no entanto, permanece em aberto, em constante mutação na construção da imagem do que somos, o que queremos e para onde desejamos ir.

Algumas pinceladas sobre a nossa origem foram dadas por Sérgio Buarque de Holanda: a supremacia do espírito de aventura sobre o modo disciplinado de viver a vida que o trabalho constante exige. Uma certa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis. O êxito da colonização portuguesa em decorrência da sua capacidade de não manter a própria distinção com o mundo que vinham povoar - a docilidade com que o europeu se deixou absorver pela cultura indígena e a miscigenação com os traços característicos dos africanos verdadeiramente impressiona. Um fundo emotivo rico e transbordante, e uma certa ojeriza à visão ritualista, impessoal e procedimental da vida. A buscar pela riqueza - mas aquela que custa ousadia, não a riqueza que custa trabalho. A má fama do labéu tradicionalmente associado aos trabalhos braçais, que obrigava à escravidão, e que não infamava apenas quem os praticava, mas igualmente seus descendentes. A ausência de uma capacidade de livre e duradoura associação entre os elementos empreendedores do país - e a constante dependência de um elemento "externo" (o governo, os pais, o padrinho) para nos salvar de nossas fraquezas. Por fim, como bem colocou Sérgio Buarque de Holanda, uma das características que mais nos marcam como nação:

"O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente" (Sérgio Buarque de Holanda, "Trabalho e Aventura", pp. 61)

Essas impressões esboçadas por Sérgio Buarque de Holanda sobre a nossa origem ajudam a desenhar o quadro tão bem materializado por Macunaíma, herói de toda a gente. Porém, nossa pintura está longe de se completar - nossa identidade e nosso projeto de desenvolvimento estão ainda por se construir. Mas os traços presentes na nossa colonização estarão presentes na nossa sociedade contemporânea? Estará a nossa jovem democracia ainda inundada pelo personalismo, pela reatividade ao trabalho, pela necessidade de hierarquias e títulos? E será possível um modelo de desenvolvimento igualitário, justo e sustentável com essas caraterísticas tão pouco republicanas da nossa gente? Essas respostas ainda não foram encontradas, e mais pinceladas serão necessárias para que a pintura se complete, para que a fotografia se torne mais nítida. Contudo, a lição que nos deixam os artistas, escritores, pesquisadores, sociólogos, antropólogos que se debruçaram para construir essa imagem é a de que não podemos importar os modelos de nações com características da disciplina, da ordem e do ritual. Nosso caminho segue pelo som dos berimbaus, dos atabaques, dos chocalhos e dos fados, a compor a trilha sonora que, muito provavelmente, não irá acompanhar uma história de ordem, disciplina e trabalho.

E, deitados nas redes de balançar, iremos, preguiçosamente, testemunhar as pinturas que ainda hão de se constituir para a compreensão da nossa realidade. Ou não.... Ai, que preguiça!



Filhos do desleixo



Foi proposto que lêssemos “Raízes do Brasil”, do Sérgio Buarque de Holanda. Inicialmente, éramos para termos lido os capítulos 4 e 5, respectivamente, “O semeador e o ladrilhador” e “O homem cordial”. De minha parte, li o livro na sua totalidade, isto é, os sete capítulos. Embora isso me ajude a contextualizar os assuntos sugeridos em um contexto maior na obra do autor, pretendo me ater aos capítulos de leitura sugerida, em especial ao primeiro.

Em primeiro lugar, é com grata surpresa que encontro em “O semeador e o ladrilhador” a resposta para uma pergunta que até então eu não tinha conseguido formular de maneira específica: por que essa distância enorme entre os portos de Ilhéus e do Rio de Janeiro sem grandes cidades na costa? Fiquei sabendo que se deve aos povos tapuias, que habitavam parte da costa da Bahia, o litoral inteiro do Espírito Santo e parte da costa do Estado do Rio de Janeiro. Diferentemente dos povos tupiniquins, mais afeitos ao convívio com os brancos estrangeiros, os povos tapuias não se aliaram aos homens brancos em praticamente nenhuma empreitada, mantendo em relação a eles uma postura territorial e beligerante.

De certa forma, embora o parágrafo anterior pareça desconectado do texto que virá a seguir, já nele se pode antever uma certa conformação de Portugal, um certo ‘deixar pra lá’ ante às dificuldades de penetração no território brasileiro.

Mas o que realmente me interessa discutir nesse momento é a diferença entre as colonizações espanhola e portuguesa na América Latina.

Espanhóis e portugueses são povos ibéricos. Ser ibérico significa ser europeu, mas significa também ser fronteiriço, ser mestiço, ser quase Norte da África, e ter sido dominado por povos mouros durante algumas centenas de anos.

Ser ibérico iguala dois povos vizinhos em uma nomenclatura que os diferencia dos demais. Mas em que pese esta nomenclatura que os unifica, talvez haja entre eles mais aspectos divergentes do que semelhantes. Similarmente, podemos dizer que ser brasileiro nos iguala do Oiapoque ao Chuí quando nos comparamos a um colombiano ou a um chileno. Mas as diferenças entre um gaúcho e um potiguar são, talvez, mais numerosas e mais evidentes do que as suas semelhanças, se os tomarmos em separado.

As diferenças da colonização portuguesa em relação à espanhola na América Latina são várias. Nossas primeiras cidades parecem não seguir qualquer planejamento, cedendo à topografia local, ao passo em que as cidades espanholas seguem um planejamento meticuloso e escrutinado; nossa primeira universidade só chega a partir da vinda da corte para o Rio de Janeiro, em 1808 ao passo em que já no século XVI são erigidas universidades na Cidade do México e em Lima; nossas primeiras cidades foram costeiras e portuárias, ao passo em que as hispânicas são interiorizadas e altiplanas; a relação dos portugueses com os habitantes das terras do Novo Mundo foi muitas vezes mediada pela negociação e pelo aculturamento, ao passo em que nas terras hispânicas o tom dessa relação foi a do massacre, etcétera.

Sérgio Buarque de Holanda sustenta a tese de que Portugal operou seu processo de colonização na América com um alto grau de ‘desleixo’, palavra que, segundo o próprio, tem em nosso idioma uma carga vernacular tão ímpar quanto ‘saudade’.

Somos, portanto, filhos do desleixo, filhos de Portugal.

Nossos vizinhos, por outro lado, foram filhos da atenção. Os planos de formação das cidades não eram apenas estabelecidos na forma de normas, como também rigorosamente cumpridos e monitorados pela metrópole além-mar.

O ordenamento territorial não apenas estabelecia diretrizes para o estabelecimento de portos e de praças, como também se encarregava de criar zonas de moradia e de circulação para os colonos, de forma que, na América hispânica, as cidades coloniais se constituíram muito menos como espaço de troca entre os seus concidadãos, ou entre os seus habitantes, para usar um termo mais seguro, do que na América portuguesa (cf. ‘A cidade no Brasil’, Antonio Risério).

Parece-me que o termo ‘desleixo’ foi uma escolha muito feliz de Sérgio Buarque de Holanda. Isso porque, se por um lado, podemos estabelecer, como pôde ser visto acima, o binômio desleixo-atenção ou desleixo-cuidado, na oposição entre a colonização portuguesa e a espanhola na América, por outro, é igualmente possível que se opte por utilizar a dicotomia desleixo-austeridade.

Se por um lado, parece-nos ser melhor a ideia de recebermos atenção à de recebermos desleixo, ou seja, a ideia de desde muito cedo dispor de universidades, ter imprensa, ter conhecimento do território (posto que precisam ser conhecidos os caminhos do porto à cidade) e de ter uma cidade com ordenamento territorial e urbano, por outro lado, em contrapartida, é certamente melhor a ideia de recebermos desleixo à de recebermos austeridade. Nesse caso, prevalecem os benefícios, na América portuguesa: de uma miscigenação maior entre os portugueses e os índios, num primeiro momento e, entre os portugueses e os negros, em um momento posterior; de um convívio maior entre as diversas etnias na cidade, que, embora não alterasse as hierarquias da ordem social, certamente permitiu aos seus habitantes um maior contato com a alteridade do que na América espanhola (o que encaro como positivo); e do estabelecimento das bandeiras paulistas, que puderam ser levadas a cabo no período seiscentista e que, embora tenham contribuído sobremaneira para a expansão do território brasileiro em direção ao interior, foram realizadas, se não à revelia da Corte, certamente sob vista grossa da metrópole, mais interessada no desenvolvimento das cidades costeiras e dos estabelecimentos rurais nas franjas do litoral.

O que se pode concluir, portanto, é que o desleixo do qual somos fruto sempre pode ser interpretado como uma faca de dois gumes.

Ao mesmo tempo em que esse desleixo nos forneceu bases muito precárias para o desenvolvimento de uma sociedade brasileira, no início de nossa colonização, entendo que tenha sido esse mesmo desleixo, paradoxalmente, o elemento que permitiu que, de alguma maneira, longe do controle excessivo da metrópole, pudéssemos começar a nos autodeterminar.

Currupaco, Paco e Tal, Quero Ir Pra Portugal

Descontinuidade entre família e Estado – mãe suficientemente boa.

Não há continuidade entre família e Estado. O Estado é a negação da família. As bolsas e outros instrumentos de distribuição de renda, quando pagos individualmente, reduzem a autoridade da família, que tradicionalmente se apoia sobre a renda de um ou dois membros. No momento em que o Estado paga uma pessoa, ela deixa de depender de seus familiares para renda. Isso gera uma maior liberdade para certos grupos antes mais submissos, como mulheres de baixa renda.

“As boas mães causam mais estragos do que as más...”. Segundo o pediatra e psicanalista D W Winnicott, a mãe suficientemente boa é aquela que percebe as necessidades do filho e que, à medida que este cresce e pode desempenhar certas tarefas, começa ela mesma a se ocupar da própria vida. Este processo é essencial para que o bebê consiga perceber a existência de um outro que tem suas exigências, e que há um mundo independente de suas vontades, necessidades ou caprichos. É um processo de subjetivação, de formação do indivíduo quando ele se percebe diferente do meio.

Ora, perceber-se diferente do meio é essencial para uma vida saudável, e não é algo tão universal quanto possa parecer.  Uma das maneiras de um indivíduo se perceber diferente é exatamente adotando pensamentos e atitudes diferentes do prescrito. Ao negar a família, eu existo individualmente.

O homem cordial tem um caráter fortemente normativo. A prescrição de comportamentos compromete a individualidade e o respeito às diferenças. Vai contra, portanto, o rumo da independência. Só pode se unir em um coletivo quem se percebe muito claramente como indivíduo capaz de ser sujeito de sua história, capaz de modificar o seu meio.


O desleixo luso-brasileiro e o compromisso coletivo.

O desleixo luso-brasileiro, um traço de fatalismo, de descrença no próprio poder de mudança no atacado, tem a ver com a dificuldade em acreditar que seja possível mudar algo no coletivo. Nós não nos organizamos, temos muita dificuldade em montar projetos e participar de mudanças consistentes. As grandes mudanças políticas do país aconteceram com pouca ou nenhuma participação popular direta. Ativismo é coisa de gringo. Isso reforça um Dom-Sebastianismo, uma crença em um salvador da Pátria, que um dia vai chegar e resolver tudo. Enquanto isso, eu fico cuidando aqui do que é meu.
Se eu estou cuidando do que é meu com tanto zelo a ponto de não pensar muito no dos outros, não é absurdo imaginar que o outro esteja agindo ou pensando da mesma forma, o que gera falta de confiança no outro, que, somando-se à falta de confiança no coletivo e nas minhas próprias ações macro, alimentam o ciclo do fatalismo e do desleixo.
Estou aqui para resolver o que é meu e voltar pra Portugal (Currupaco, Paco e Tal). Os políticos, o sistema, os governantes, o mercado, tudo é visto com uma alteridade absoluta, como entidades desprovidas de humanidade e da qual eu não faço parte. Obviamente isto não é homogêneo, mas acho que pode ser considerado geral.


 A questão da vara – Vigiar e punir

A respeito da questão da punição pela vara, que “tem um efeito que termina em si, ao passo que se forem incentivadas as comparações (...) lançar-se-ão as bases de um mal permanente”, ser humano depara-se com um dilema antigo; punir o ato com um gesto firme, eficaz e finito, ou punir o indivíduo, punir a biografia, como disse Foucault (Vigiar e Punir).


O patrimonialismo

O patrimonialismo está entre as características brasileiras que, a meu ver, prolongam muito as desigualdades sociais e diferenças de classe. Perverte-se a função do Estado, que seria para servir a todos de maneira mais ou menos equânime, para servir a poucos, aos amigos. É importante entendermos que isso não se deve apenas ao caráter individual de cada funcionário público ou juiz ou parlamentar; é profundamente entranhado no modo de viver nacional. Favorecer os amigos quando se está em posição pública é visto como uma virtude. Grande parte do apoio que Eduardo Cunha tem no parlamento e no Rio vem daí, de sua capacidade de agraciar quem o segue.

Se um grau de patrimonialismo, no sentido de poder obter vantagens pessoais fáceis, pode facilitar que pobres cometam crimes, no caso dos ricos o dano é ainda maior, pois as vantagens são grandes, à custa de muitos e em geral eles não sofrem as mesmas punições biográficas  - ou até atávicas e transgeracionais -  reservadas aos menos favorecidos econômica e racialmente.

Chego até a pensar que, no caso brasileiro, e talvez muitos outros, a formação do Estado tenha sido não para satisfazer à função manifesta  de servir a todos e ordenar as relações, mas justamente por sua função latente, a de proteger os poderosos.



A Nobreza e a Burguesia

Portugal não teve completa revolução burguesa. Justamente pela proximidade precoce, não houve ruptura. A burguesia que tão cedo chegou ao poder, com Mestre João de Avis, acho que no século XIV, se viu envolvida na nobiliarquia, e dela pegou o desdém às atividades arriscadas dos comércios “Depois eu conto-lhe as cousas só dos homens/ E ele sorri, porque tudo é incrível/ Ri dos reis, e dos que não são reis,/ e tem pena de ouvir falar das guerras,/ e dos comércios, e dos navios” ( Alberto Caeiro – excerto do Canto VIII d’O Guardador de Rebanhos). Que triste destino de um povo que despreza aquilo de que vive – o comércio.

Um tipo de comércio muito particular, esse inundado pelas relações de amizade. A cordialidade gera uma prescrição de como são feitos os negócios, mas essa prescrição não é compartilhada por toda a sociedade de forma justa e equânime, segue os preceitos da proximidade, do afeto e da amizade.


A proximidade entre patrão e empregado se baseia na estabilidade da distinção hierárquica, de nascimento, determinista entre eles, e vai a pique no momento em que o empregado se pretende cidadão e sujeito. Leis mais rígidas – não no sentido de severas, mas de menos flexíveis – não são compatíveis com este modelo de cordialidade. Hoje o empregado não aceita trabalho em troca de um prato de comida. Tanto quanto seu patrão tampouco aceitaria, caso se lhe fosse oferecido. Não o é.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Ponderações - textos de 07/05/2015

Na verdade só concluí a leitura hoje, então entendo que muitos não possam ler o que escrevo agora, já que o grupo começa daqui a pouco. De qualquer maneira acho importante escrever para registrar.

Achei de maneira geral o texto do Costa e Silva (CS) bem melhor que o do da Matta (doravante DM). Comecei a ler o DM um dia depois de ter ficado sabendo da divulgação que o Paulo Betti fez de uma agressão homofóbica que teria sofrido do professor por causa do personagem que ele fez em uma novela. Isso certamente contaminou minha leitura, mas não a impediu. 

Entendo que são publicações bem diferentes e complementares. Vi DM como um corte transversal, contendo descrições não-sistematizadas e explicações não testadas - não se trata de um trabalho científico. CS pretende mais completude, as descrições são mais minuciosas, o texto mais acadêmico e, apesar disso, mais bem escrito.

As descrições no DM são impregnadas por sua própria percepção e hipóteses a respeito do que ele observa. Ali é possível ver que ele tem ideias, juízos sobre as constatações que faz. CS procura se distanciar um pouco, nenhuma menção ao autor é feita no texto.

O ponto de ligação entre o que é descrito nos textos, ao meu ver, é o ponto mais importante por eles reforçado; a ambiguidade que significa ser brasileiro. A convivência com híbridos e nuances em uma sociedade hierarquizada. As categorias excludentes e suas flexibilidades na rigidez. DM valoriza mais esse aspecto.

Entretanto, isso pode gerar a ilusão de uma harmonia, o que não é verdade. a convivência com a ambiguidade, com os híbridos e sua aceitação escondem os preconceitos e as categorias em que as pessoas estão inseridas, com pouquíssima mobilidade entre elas.

Percebi nos textos - principalmente nas partes mais explicativas do DM, uma interseção com certas explicações antropológicas da questão de gênero, da sociedade disciplinar do Foucault e até com Freud. Os detalhes vamos ver mais tarde na discussão.

Até breve.



A Redenção de Cam


          O primeiro livro da Bíblia, que nos fala sobre a criação, conta certa história sobre Noé (o escolhido por Deus para salvar a Criação do dilúvio). Certa feita, após ter exagerado no vinho, o patriarca ficou ébrio e lá pelas tantas, no auge do efeito do álcool, tirou a roupa e ficou perambulando por aí. Cam, um de seus filhos, o encontra nu e foi contar tal fato aos outros irmãos. Os irmãos ao saberem do ocorrido correm para ajudar o pai, cobrem-no (sem olhar para nudez de Noé) e cuidam da sua embriaguez. No dia seguinte, depois de passado o efeito do fermentado, o construtor da arca, ao saber do acontecido, amaldiçoa seu filho pelo ocorrido na noite anterior. Segundo a praga, Cam estaria fadado a ser escravo de seus irmãos. Ou pelo menos diz assim uma das possíveis interpretações. Cam é o antepassado de Canaã, ou, de todos os povos africanos da antiguidade (povos de pele escura). O quadro acima, datado de 1895, pertence ao pintor espanhol Modesto Brocos. A obra chama-se "A redenção de Cam". Nela vemos uma família. A filha, a mãe, o marido da filha e a avó. Esta última, de pele retinta, agradece aos céus pela descendente de pele clara. A imagem fala por si só.
        Durante a leitura dos dois textos "O que faz o brasil, Brasil" do Roberto Damatta e o primeiro capítulo do livro "História do Brasil - Crise Colonial e Independência" coordenado pelo Alberto da Costa e Silva, tiveram dois pontos, principalmente,  que me despertaram reflexões. O primeiro é sobre como muitos dos aspectos que surgiram durante o nosso processo de composição, não só não mudaram como persistiram e nos influenciam fortemente até hoje – Mesmo sendo atributos muitas vezes questionáveis, reprováveis, abomináveis, quando não ilícitos. E o segundo ponto é sobre como o processo de elaboração da nossa identidade é tardio.
        Nós somos o desdobramento de uma terra invadida que teve seu povo perseguido e dizimado pelos portugueses e que foi incessantemente explorada, utilizando seres humanos escravizados que foram removidos de suas terras (durante quase 4 séculos) num contingente estimado em cerca de 5,5 milhões de pessoas. E após a abertura dos portos a nações estrangeiras depois da chegada da família real, muitos povos complementaram a diversificação da nossa formação. Sendo assim, nossas principais características como religião, música, culinária, língua, entre outras refletem essa constituição diversa. Como exemplo negativo dessas influências, podemos citar o Patrimonialismo (indistinção entre o público e o privado) herdado do sistema político dos portugueses que se apresenta, hoje em dia, sobre os diversos casos que temos conhecimento de agentes públicos que utilizam recursos do Estado para fins de beneficiamento pessoal. E principalmente, devemos citar a escravidão como herança da nossa história, pois nos marcou profundamente. Nos principais períodos de servidão os seres humanos escravizados representavam mais da metade da população do Brasil e ainda hoje continuam sendo maioria. Para termos uma ideia da dimensão, hoje o Brasil abriga a maior população negra fora da África. Mas mesmo assim, a maior parte das vítimas da exclusão social são negros. Ganhando menos. Predominando nos presídios. Sendo as maiores vítimas de homicídios e da violência policial (a cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras). Sendo minoria nas universidades. Preenchendo a maior parte dos subempregos. E, como colocado por DaMatta, quando se trata de relações trabalhistas, somos definitivamente influenciados pelos tempos de cativeiro: as relações econômicas se misturam com laços pessoais como uma estratégia de dominação e controle que confunde o empregado.
          Alberto da Costa e Silva escreve que "a partir de 1821, a percepção que os naturais do Brasil tinham de si próprios mudou. Antes , consideravam-se portugueses da América e coerdeiros da mesma história e da mesma cultura que os da Europa. Depois passaram a tê-los como inimigos e a repudiar o legado lusitano. Valorizaram-se as raízes ameríndias, e muitos saíram a busca de seus antepassados indígenas". Quanto tempo se passou até começarmos a formar algum tipo de noção de nação? A independência aconteceu em 1822. Entretanto, todos os processos de emancipação, na sua maioria, significam um processo de ruptura a uma situação anterior. Uma emancipação de valores. Prevê um fortalecimento da identidade. Significa autonomia, uma não submissão. No entanto a independência do Brasil foi conservadora. Orquestrada pelas elites, na prática, as coisas permaneceram as mesmas. Mudou para poucos. Não foi um movimento de baixo pra cima, nenhuma cabeça foi cortada. O sistema escravocrata permaneceu intocado. Talvez isso explique um pouco o porquê de uma elite brasileira tão presente e reacionária. E como agravante para o nosso processo de construção, em mais de 500 anos de existência, temos apenas algumas décadas de democracia.
            A verdade é que a "colonização portuguesa nos dividiu mais do que nos fez dialogar", citando novamente o livro "História do Brasil - Crise Colonial e Independência". O que me faz voltar ao quadro de Modesto Brocos. A obra nos mostra claramente as consequências perversas, hediondas e abomináveis do racismo, mas, de certo modo, ela também serve como uma metáfora para o Brasil. Negando aquilo que somos, rejeitamos a nossa história. E ao valorizarmos e agradecermos aos céus pelo enbraquecimento, simbolicamente contestamos a nossa identidade.  Aguardemos o dia em que ao invés de procurarmos a redenção, nós busquemos a transgressão de Noé.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Começando: O "jeitinho", o "sabe com quem está falando" e a formação do Brasil Colônia



Sobre as primeiras leituras do nosso grupo, tenho três apontamentos a fazer: (i) sobre a defasagem das ideias defendidas por Damatta; (ii) sobre como o mundo jurídico é desafiado pelo "jeitinho" e pelo "sabe com quem está falando"; e (iii) sobre a formação do Brasil nos seus primórdios - e o impacto desta formação para o problema da desigualdade, que é o meu maior interesse neste grupo.

Inicio falando sobre o que me pareceu ser uma certa defasagem das ideias do Roberto Damatta. o antropólogo publicou "O que faz o Brasil, Brasil" na década de 1980, o que poderia explicar como parte de suas ideias estão defasadas (embora não explique totalmente, pois em 2004 publicou "O que é o Brasil", no qual repete exatamente os mesmos argumentos). As ideias que considero defasadas referem-se à defesa da tendência conciliadora existente na sociedade brasileira. Se algum dia houve essa tendência (e tenho cá minhas dúvidas se de fato houve, pois como Alberto da Costa e Silva bem aponta, sempre houve a divisão em dois Brasis, um branco, rico, colonizador, outro negro ou mulato, escravizado e oprimido, dois Brasis que se tratavam com cordialidade, mas que sempre se olharam com desconfiança mútua), está muito claro que o Brasil contemporâneo admite cada vez menos a conciliação das suas diferenças - especialmente políticas. Marcar politicamente as diferenças desses dois Brasis antagônicos, um de oportunidades e outro de submissões, talvez seja a forma de, ao expor o conflito, melhor enfrentá-lo, deixando pra trás afirmações paliativas do tipo "deixa disso" ou "não existe preconceito no Brasil" (o ótimo filme "Casa Grande" faz um apurado retrato dessa dificuldade cada vez maior de se conciliarem as contradições brasileiras).

Outro aspecto que considero defasado - senão equivocado mesmo - da argumentação do Roberto Damatta é o olhar condescendente - quase de admiração - em relação ao "jeitinho" e ao "você sabe com quem está falando". Concordo com o argumento dele de que se tratam de duas faces da mesma moeda: a da necessidade de pessoalidade (característica que torna insuportável os impessoais papéis de "cidadão", "contribuinte", "eleitor", "condômino", etc); porém, daí a dizer que essa é a maneira que o brasileiro encontrou para lidar com um Estado autoritário, confuso e pouco transparente é forçar demais a barra. Quase como se o autor estivesse a defender ou tolerar a postura de dar um "jeitinho", como se essa postura em si já não reforçasse a profusão de normas que torna o Estado brasileiro caótico e engessado. Damatta argumenta que essa capacidade de transigir e negociar pode nos tornar missionários de um novo tipo de sociedade, para além do individualismo e consumismo excessivo das sociedades ocidentais. Talvez no plano da cultura, da culinária, da música, das artes esse talento para a ambiguidade seja positivo. Contudo, para a construção de um Estado de Direito que trata seus cidadãos de maneira igualitária (na famosa fórmula de igualar na medida em que se igualam e desigualar na medida em que se desigualam), o "jeitinho" e o "sabe com quem está falando" são absolutamente desastrosos.

Para a minha perspectiva - que é sobre o problema da desigualdade e da (falta de) democracia -, o apontamento do Roberto Damatta de que existe uma regra da casa, da pessoalidade, do "padrinho" (que tem profunda dificuldade em lidar com a regra da rua, da impessoalidade, do que é público) é fundamental. Isso ajuda a entender a dificuldade do universo jurídico  em criar regras "que colam", que funcionam no mundo real (como a mal fadada cobrança pelo uso das sacolinhas plásticas, por exemplo) e que sejam de fato obedecidas. Talvez uma maneira de lidar com este fenômeno, conforme o próprio autor sugeriu, seja a criação de instituições e instrumentos formais que possam lidar com a peculiaridade do universo da casa e da religião (ainda mais importante num país cada vez mais evangélico), tão presentes na cultura brasileira. Não sei bem como seria, nem me parece que a saída seja a criação de mais normas (que burocratizariam ainda mais). Parece-me que a solução estaria no sentido de tornar mais transparente e simples a gestão dos assuntos públicos (o ótimo Brasil 2030 pode ser uma boa iniciativa neste sentido), de forma que o "jeitinho" seja cada vez mais desnecessário e a aplicação das leis e a prestação dos serviços públicos sejam cada vez mais uniformes e semelhantes para todos.

Por fim, o texto do Alberto Silva é muito importante para entender as raízes da desigualdade no Brasil. Como bem apontou Lília Schwarcz na introdução do livro, o Brasil não é uma pátria - é uma "mátria". Uma "matria" com padrões muito passionais e personalistas de tratamento dos seus indivíduos, conforme sua cor e classe. A descrição vívida de Alberto Silva nos faz perceber o quanto foi desigual o tratamento dado a cada indivíduo na formação do país - mas, ao mesmo tempo, também é possível perceber como foi rico o caldo de cultura que nos formou, e como o sincretismo influenciou as artes, a culinária, a arquitetura, a língua, a religião - e, é claro, as instituições e leis que foram criadas. Desde o início, a existência de muitos Brasis ficou muito clara. O fato de não explicitarmos essa diferença e esses preconceitos não fez com que a desigualdade diminuísse; ao contrário, só a intensificou. Como aponta Lília Schwarcz, houve diferentes "Brazis" (com "z" mesmo, olhado de fora) - e nem o Império, nem a República, nem as ditaduras, nem a redemocratização fizeram esta característica desaparecer. 

Entender melhor nossas origens ajuda a compreender o Brasil de hoje, suas desigualdades e sua (falta de) democracia. Tal qual o texto do Roberto Damatta, não aponta soluções (nenhum dos textos se propõe a fazê-lo), mas apresenta características que são fundamentais para repensarmos que tipo de sociedade somos, como podemos nos reinventar e aonde queremos chegar.

sábado, 2 de maio de 2015

Começando - os ritos, as cidades, os pretos



Em primeiro lugar, proclamo a dificuldade de começar.

Só quando realmente nos deparamos com a folha em branco é que vemos o quão difícil pode ser a tarefa de refletir – e de produzir algo a partir dessa reflexão – sobre um tema que está ao mesmo tempo conosco e em nós: o Brasil e sua(s) identidade(s). O processo se torna ainda mais difícil porque nos sentimos ávidos para discutir uma miríade de questões, ao passo em que devemos ser breves, se quisermos ser lidos, e também porque nos sentimos completamente imaturos no conhecimento sobre o qual iremos dissertar/descrever/refletir/conversar, correndo-se o risco, portanto, de ser incorreto, impreciso, leviano. Portanto, em que pesem os medos, os riscos e a responsabilidade de tudo aquilo que fica por escrito, opto por começar, até porque alguém precisa fazê-lo.

Nessa quinzena mais longa, de pouco mais de um mês, nos foi proposta a leitura de “O que faz o brasil, Brasil?”, de Roberto da Matta, e do primeiro capítulo do “História do Brasil Nação: 1808-1831”, escrito por Alberto da Costa e Silva, e organizado por Lilia Moritz Schwartz. Embora tenha sido difícil elencar um único ponto de enfoque para cada um dos livros, me esforcei por fazê-lo. Isto se deve a dois motivos: o primeiro, natural, é que se for feita a opção de se falar de muitas coisas, o texto se excede; isto reforça a ideia de que não devemos escrever tratados. O segundo motivo é o de que, ao escolher um único ponto de enfoque, os outros pontos ficam livres, ou seja, ficam mais à disposição dos outros membros do grupo.

No livro “O que faz o brasil, Brasil?”, Roberto da Matta analisa os ritos. Segundo o autor, há os ritos da ordem, em geral de caráter cívico ou religioso, cujo papel é o de reforçar as ordens hierárquicas já existentes na sociedade através de representações em que cada um ocupa precisamente “o seu lugar”. Dentre esses ritos, na esfera pública, se encontram as paradas cívicas, como a Parada de Sete de Setembro, e as procissões; na esfera privada, os batismos e as formaturas. Por outro lado, há os ritos da “desordem”, ou seja, ritos nos quais fica invertida a ordem social e as relações de poder. Desses ritos, o mais comum é o Carnaval, definido pelo autor como “uma inversão do mundo, uma catástrofe”. No Carnaval, cada um ocupa o lugar que quiser e, na ausência de qualquer ordem, as pessoas podem (e devem) liberar as suas fantasias e as suas liberdades (sexuais, de poder, etc.). DaMatta estrutura o seu breve ensaio sustentando a ideia de que o Brasil se constitui através de uma espécie de “caminho do meio”. Entre o preto e o branco, o mulato. Entre o sagrado e o profano, o sincretismo e o catolicismo popular. Entre a liberação e a proibição, o jeitinho. Causa, portanto, um certo impacto para quem o lê, a ideia de que os ritos da ordem e os ritos da desordem sejam mantidos em caixas tão estanques. Ora, não pode haver algum rito ou festa que esteja entre a ordem e a desordem? O que é que há, afinal, a meio do caminho entre o Carnaval e a peregrinação até a Igreja de Nossa Senhora Aparecida? Esta dicotomia entre um Carnaval completamente libertino e os ritos da ordem completamente enquadrados em seus modelos de hierarquia social nos remetem a um fato importante: o livro foi escrito em 1984. É certo que de lá para cá, caminhamos de forma a nos tornarmos mais híbridos, mais a meio do caminho entre a ordem e a desordem. Prova disso é que o nosso Carnaval rapidamente se tornou um espaço em que foi implantado o choque de ordem, no qual os blocos devem desfilar por tais ruas, em que o trânsito deve fluir por tais avenidas, e no qual o xixi deve ser feito em tais locais, sob pena de multa. De outro lado, os ritos da ordem foram perdendo relevância na vida nacional, como pode ser visto nas Paradas de Sete de Setembro com cada vez menos apelo e pelas procissões católicas que minguam sem renovação de público, à espera da morte de suas senhorinhas. De um lado, temos que um de nossos mais emblemáticos fenômenos sociais recentes, as manifestações de junho de 2013, podem ser colocadas como pertencente ao grupo dos “ritos da ordem”, posto que passeata de caráter cívico. Por outro lado, suas características de ser amorfa, desorganizada e sem liderança apontam para uma rito, ou evento, “da desordem”. Portanto, nesse contexto em que o Carnaval pode se transformar num evento da ordem e uma passeata cívica pode caminhar de maneira inequívoca para uma carnavalização, minha reflexão final sobre esse livro é a seguinte: “Nos últimos trinta anos, estivemos caminhando para um processo que dilui nossa identidade em meio aos processos globalizatórios ou estivemos por mergulhar ainda mais nessa identidade brasileira, nisso que somos? Ou seja, nos últimos trinta anos, estivemos caminhando para tornar o Brasil, brasil, ou para o tornar o brasil, Brasil?”

O outro texto, de Alberto Costa e Silva, de leitura extremamente fluida e prazerosa, apresenta a população e a sociedade na vida brasileira de 1808, chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, até 1830, abdicação de D. Pedro I ao trono, em favor de seu filho mais novo de cinco anos, que viria a ser o Imperador D. Pedro II alguns mais tarde. O que me chamou bastante atenção nesse texto foi o pretume das cidades. As cidades brasileiras, antes das grandes imigrações europeias do final do século XIX e início do século XX, eram majoritariamente pretas. Isso se devia não apenas a um alto contingente populacional, que muitas vezes era maior do que o dos brancos, mas especialmente ao fato dos pretos circularem pelas ruas da cidade, diferentemente dos brancos e, em especial, das mulheres brancas, que ficavam encalacradas em suas próprias casas. Isto levava a uma situação especial em que apenas os brancos eram cidadãos, posto que tinham algo que se aproximava da cidadania na época, isto é, não eram considerados mercadoria e tinham direito à vida, à liberdade e à propriedade. Por outro lado, os pretos eram os citadinos, os verdadeiros donos da cidade, que exploravam as suas ruas, realizando pequenos serviços como escravos de ganho ou como pretos libertos, muitas vezes de porta em porta. Esta era uma situação bastante especial que ocorria nas cidades brasileiras, em que os citadinos não eram cidadãos e os cidadãos não eram citadinos. Ou seja, a cidadania era daqueles que não habitavam a cidade, não ocupavam a cidade. Isto explica, em certa medida, a feiura e a sujeira das grandes cidades à época da chegada da família real no Rio de Janeiro. Somente a partir da chegada da corte, com seus hábitos europeus de flanar pelas ruas, a cidade realmente passa a ter uma preocupação com seu apuro estético e higiênico. Esta corte, ao configurar seus membros ao mesmo tempo como cidadãos e como citadinos, faz com que a cidade possa se transformar. De forma similar, em que pese o fato de a lei nos garantir a todos como cidadãos (iguais perante a lei) e citadinos (tendo assegurado o direito de ir e vir), vivemos uma situação que segrega cidadãos e citadinos em esferas diferentes da vida pública. Se, na letra da lei, não podemos afirmar que existe uma gradação entre cidadãos e citadinos, a vida prática nos impõe uma dinâmica em que uns são mais cidadãos do que outros, na medida em que têm seus direitos mais assegurados do que outros, e uns são mais citadinos do que outros, na medida em que usam mais a cidade, circulam mais pelas ruas, do que outros. O que ocorre, no geral, é uma relação de proporcionalidade inversa em entre esses segmentos. Aqueles que são mais citadinos, porque moram longe do trabalho, porque dependem das praças públicas para se divertir e dos transportes públicos para se locomover, acabam por ser menos cidadãos, uma vez que são mais pobres, menos ouvidos e mais alijados das grandes esferas de decisão sobre a cidade. Por outro lado, aqueles que são mais cidadãos, e estão mais perto das esferas de poder, acabam por ser menos citadinos, uma vez que percorrem distâncias curtas, e percorrem as cidades em seus carros silenciosos e de vidro fumê, num tal grau de barreira visual e acústica em relação ao restante da cidade que causaria inveja às moças brancas da época colonial que se deslocavam de um lugar ao outro carregadas em cadeirinhas, seges ou carruagens. As transformações urbanas só podem ocorrer quando se conjugam as categorias de cidadão e citadino. É importante ressaltar que à vinda da família real para o Brasil, que conjugou ambas as categorias na corte recém-chegada, as transformações urbanas foram extremamente excludentes, de forma a privilegiar unicamente aquele seleto grupo que podia exercer de maneira simultânea seu papel de cidadão e citadino. Minha reflexão final a partir deste texto, portanto, é: “Como fazer com que todo cidadão seja citadino e todo citadino seja cidadão, para garantir que as cidades brasileiras se transformem de forma justa?”

Minha intenção inicial era falar sobre a questão dos negros, e não da cidade, mas minhas ideias acabaram me empurrando para este lado. Embora não devesse, vou colocar apenas minhas reflexões sobre essa questão aqui, para que eu possa me lembrar delas no nosso encontro, mas sem desenvolvê-las em demasia. “Ao contrário do que muita gente pensa, a cidade mais preta do Brasil em 1831 não era nem Salvador, nem o Rio de Janeiro, mas Niterói, com 80% de sua população composta por pretos. Pouca gente também sabe, mas havia nos bairros de Catete e Laranjeiras, no Rio e Janeiro, quilombos estabelecidos, que possuíam trocas comerciais com a capital. É também muito pouco disseminada a ideia de que não foram simplesmente ‘negros’ que chegaram da África, mas um mosaico complexo de diversas etnias, como os quetos, fons, iorubás, hauçás, etc. Por que é que descobrir essas coisas é sempre uma surpresa? Ou seja, o que falta para a historiografia preta chegar às pessoas comuns?”