Descontinuidade entre família e Estado – mãe suficientemente
boa.
Não há continuidade entre família e Estado. O Estado é a
negação da família. As bolsas e outros instrumentos de distribuição de renda,
quando pagos individualmente, reduzem a autoridade da família, que
tradicionalmente se apoia sobre a renda de um ou dois membros. No momento em
que o Estado paga uma pessoa, ela deixa de depender de seus familiares para
renda. Isso gera uma maior liberdade para certos grupos antes mais submissos,
como mulheres de baixa renda.
“As boas mães
causam mais estragos do que as más...”. Segundo o pediatra e psicanalista D W
Winnicott, a mãe suficientemente boa é aquela que percebe as necessidades do
filho e que, à medida que este cresce e pode desempenhar certas tarefas, começa
ela mesma a se ocupar da própria vida. Este processo é essencial para que o
bebê consiga perceber a existência de um outro que tem suas exigências, e que
há um mundo independente de suas vontades, necessidades ou caprichos. É um
processo de subjetivação, de formação do indivíduo quando ele se percebe
diferente do meio.
Ora, perceber-se diferente do meio é essencial para uma vida
saudável, e não é algo tão universal quanto possa parecer. Uma das maneiras de um indivíduo se perceber
diferente é exatamente adotando pensamentos e atitudes diferentes do prescrito.
Ao negar a família, eu existo individualmente.
O homem cordial tem um caráter fortemente normativo. A prescrição
de comportamentos compromete a individualidade e o respeito às diferenças. Vai
contra, portanto, o rumo da independência. Só pode se unir em um coletivo quem
se percebe muito claramente como indivíduo capaz de ser sujeito de sua
história, capaz de modificar o seu meio.
O desleixo luso-brasileiro e o compromisso coletivo.
O desleixo luso-brasileiro, um traço de fatalismo, de descrença
no próprio poder de mudança no atacado, tem a ver com a dificuldade em
acreditar que seja possível mudar algo no coletivo. Nós não nos organizamos,
temos muita dificuldade em montar projetos e participar de mudanças
consistentes. As grandes mudanças políticas do país aconteceram com pouca ou
nenhuma participação popular direta. Ativismo é coisa de gringo. Isso reforça
um Dom-Sebastianismo, uma crença em um salvador da Pátria, que um dia vai chegar
e resolver tudo. Enquanto isso, eu fico cuidando aqui do que é meu.
Se eu estou cuidando do que é meu com tanto zelo a ponto de não
pensar muito no dos outros, não é absurdo imaginar que o outro esteja agindo ou
pensando da mesma forma, o que gera falta de confiança no outro, que,
somando-se à falta de confiança no coletivo e nas minhas próprias ações macro,
alimentam o ciclo do fatalismo e do desleixo.
Estou aqui para resolver o que é meu e voltar pra Portugal
(Currupaco, Paco e Tal). Os políticos, o sistema, os governantes, o mercado,
tudo é visto com uma alteridade absoluta, como entidades desprovidas de
humanidade e da qual eu não faço parte. Obviamente isto não é homogêneo, mas
acho que pode ser considerado geral.
A respeito da questão da punição pela vara, que “tem um
efeito que termina em si, ao passo que se forem incentivadas as comparações
(...) lançar-se-ão as bases de um mal permanente”, ser humano depara-se com um
dilema antigo; punir o ato com um gesto firme, eficaz e finito, ou punir o
indivíduo, punir a biografia, como disse Foucault (Vigiar e Punir).
O patrimonialismo
O patrimonialismo está entre as características brasileiras
que, a meu ver, prolongam muito as desigualdades sociais e diferenças de
classe. Perverte-se a função do Estado, que seria para servir a todos de
maneira mais ou menos equânime, para servir a poucos, aos amigos. É importante
entendermos que isso não se deve apenas ao caráter individual de cada
funcionário público ou juiz ou parlamentar; é profundamente entranhado no modo
de viver nacional. Favorecer os amigos quando se está em posição pública é
visto como uma virtude. Grande parte do apoio que Eduardo Cunha tem no
parlamento e no Rio vem daí, de sua capacidade de agraciar quem o segue.
Se um grau de patrimonialismo, no sentido de poder obter
vantagens pessoais fáceis, pode facilitar que pobres cometam crimes, no caso
dos ricos o dano é ainda maior, pois as vantagens são grandes, à custa de
muitos e em geral eles não sofrem as mesmas punições biográficas - ou até atávicas e transgeracionais - reservadas aos menos favorecidos econômica e
racialmente.
Chego até a pensar que, no caso brasileiro, e talvez muitos outros, a formação do Estado tenha sido não para satisfazer à função manifesta de servir a todos e ordenar as relações, mas justamente por sua função latente, a de proteger os poderosos.
A Nobreza e a Burguesia
Portugal não teve completa revolução burguesa. Justamente pela
proximidade precoce, não houve ruptura. A burguesia que tão cedo chegou ao
poder, com Mestre João de Avis, acho que no século XIV, se viu envolvida na
nobiliarquia, e dela pegou o desdém às atividades arriscadas dos
comércios “Depois eu conto-lhe as cousas só dos homens/ E ele sorri, porque
tudo é incrível/ Ri dos reis, e dos que não são reis,/ e tem pena de ouvir
falar das guerras,/ e dos comércios, e dos navios” ( Alberto Caeiro – excerto do
Canto VIII d’O Guardador de Rebanhos). Que triste destino de um povo que
despreza aquilo de que vive – o comércio.
Um tipo de comércio muito particular, esse inundado pelas
relações de amizade. A cordialidade gera uma prescrição de como são feitos os
negócios, mas essa prescrição não é compartilhada por toda a sociedade de forma
justa e equânime, segue os preceitos da proximidade, do afeto e da amizade.
A proximidade entre patrão e empregado se baseia na
estabilidade da distinção hierárquica, de nascimento, determinista entre eles, e
vai a pique no momento em que o empregado se pretende cidadão e sujeito. Leis
mais rígidas – não no sentido de severas, mas de menos flexíveis – não são
compatíveis com este modelo de cordialidade. Hoje o empregado não aceita
trabalho em troca de um prato de comida. Tanto quanto seu patrão tampouco aceitaria,
caso se lhe fosse oferecido. Não o é.
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