quarta-feira, 20 de maio de 2015

Currupaco, Paco e Tal, Quero Ir Pra Portugal

Descontinuidade entre família e Estado – mãe suficientemente boa.

Não há continuidade entre família e Estado. O Estado é a negação da família. As bolsas e outros instrumentos de distribuição de renda, quando pagos individualmente, reduzem a autoridade da família, que tradicionalmente se apoia sobre a renda de um ou dois membros. No momento em que o Estado paga uma pessoa, ela deixa de depender de seus familiares para renda. Isso gera uma maior liberdade para certos grupos antes mais submissos, como mulheres de baixa renda.

“As boas mães causam mais estragos do que as más...”. Segundo o pediatra e psicanalista D W Winnicott, a mãe suficientemente boa é aquela que percebe as necessidades do filho e que, à medida que este cresce e pode desempenhar certas tarefas, começa ela mesma a se ocupar da própria vida. Este processo é essencial para que o bebê consiga perceber a existência de um outro que tem suas exigências, e que há um mundo independente de suas vontades, necessidades ou caprichos. É um processo de subjetivação, de formação do indivíduo quando ele se percebe diferente do meio.

Ora, perceber-se diferente do meio é essencial para uma vida saudável, e não é algo tão universal quanto possa parecer.  Uma das maneiras de um indivíduo se perceber diferente é exatamente adotando pensamentos e atitudes diferentes do prescrito. Ao negar a família, eu existo individualmente.

O homem cordial tem um caráter fortemente normativo. A prescrição de comportamentos compromete a individualidade e o respeito às diferenças. Vai contra, portanto, o rumo da independência. Só pode se unir em um coletivo quem se percebe muito claramente como indivíduo capaz de ser sujeito de sua história, capaz de modificar o seu meio.


O desleixo luso-brasileiro e o compromisso coletivo.

O desleixo luso-brasileiro, um traço de fatalismo, de descrença no próprio poder de mudança no atacado, tem a ver com a dificuldade em acreditar que seja possível mudar algo no coletivo. Nós não nos organizamos, temos muita dificuldade em montar projetos e participar de mudanças consistentes. As grandes mudanças políticas do país aconteceram com pouca ou nenhuma participação popular direta. Ativismo é coisa de gringo. Isso reforça um Dom-Sebastianismo, uma crença em um salvador da Pátria, que um dia vai chegar e resolver tudo. Enquanto isso, eu fico cuidando aqui do que é meu.
Se eu estou cuidando do que é meu com tanto zelo a ponto de não pensar muito no dos outros, não é absurdo imaginar que o outro esteja agindo ou pensando da mesma forma, o que gera falta de confiança no outro, que, somando-se à falta de confiança no coletivo e nas minhas próprias ações macro, alimentam o ciclo do fatalismo e do desleixo.
Estou aqui para resolver o que é meu e voltar pra Portugal (Currupaco, Paco e Tal). Os políticos, o sistema, os governantes, o mercado, tudo é visto com uma alteridade absoluta, como entidades desprovidas de humanidade e da qual eu não faço parte. Obviamente isto não é homogêneo, mas acho que pode ser considerado geral.


 A questão da vara – Vigiar e punir

A respeito da questão da punição pela vara, que “tem um efeito que termina em si, ao passo que se forem incentivadas as comparações (...) lançar-se-ão as bases de um mal permanente”, ser humano depara-se com um dilema antigo; punir o ato com um gesto firme, eficaz e finito, ou punir o indivíduo, punir a biografia, como disse Foucault (Vigiar e Punir).


O patrimonialismo

O patrimonialismo está entre as características brasileiras que, a meu ver, prolongam muito as desigualdades sociais e diferenças de classe. Perverte-se a função do Estado, que seria para servir a todos de maneira mais ou menos equânime, para servir a poucos, aos amigos. É importante entendermos que isso não se deve apenas ao caráter individual de cada funcionário público ou juiz ou parlamentar; é profundamente entranhado no modo de viver nacional. Favorecer os amigos quando se está em posição pública é visto como uma virtude. Grande parte do apoio que Eduardo Cunha tem no parlamento e no Rio vem daí, de sua capacidade de agraciar quem o segue.

Se um grau de patrimonialismo, no sentido de poder obter vantagens pessoais fáceis, pode facilitar que pobres cometam crimes, no caso dos ricos o dano é ainda maior, pois as vantagens são grandes, à custa de muitos e em geral eles não sofrem as mesmas punições biográficas  - ou até atávicas e transgeracionais -  reservadas aos menos favorecidos econômica e racialmente.

Chego até a pensar que, no caso brasileiro, e talvez muitos outros, a formação do Estado tenha sido não para satisfazer à função manifesta  de servir a todos e ordenar as relações, mas justamente por sua função latente, a de proteger os poderosos.



A Nobreza e a Burguesia

Portugal não teve completa revolução burguesa. Justamente pela proximidade precoce, não houve ruptura. A burguesia que tão cedo chegou ao poder, com Mestre João de Avis, acho que no século XIV, se viu envolvida na nobiliarquia, e dela pegou o desdém às atividades arriscadas dos comércios “Depois eu conto-lhe as cousas só dos homens/ E ele sorri, porque tudo é incrível/ Ri dos reis, e dos que não são reis,/ e tem pena de ouvir falar das guerras,/ e dos comércios, e dos navios” ( Alberto Caeiro – excerto do Canto VIII d’O Guardador de Rebanhos). Que triste destino de um povo que despreza aquilo de que vive – o comércio.

Um tipo de comércio muito particular, esse inundado pelas relações de amizade. A cordialidade gera uma prescrição de como são feitos os negócios, mas essa prescrição não é compartilhada por toda a sociedade de forma justa e equânime, segue os preceitos da proximidade, do afeto e da amizade.


A proximidade entre patrão e empregado se baseia na estabilidade da distinção hierárquica, de nascimento, determinista entre eles, e vai a pique no momento em que o empregado se pretende cidadão e sujeito. Leis mais rígidas – não no sentido de severas, mas de menos flexíveis – não são compatíveis com este modelo de cordialidade. Hoje o empregado não aceita trabalho em troca de um prato de comida. Tanto quanto seu patrão tampouco aceitaria, caso se lhe fosse oferecido. Não o é.

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