quarta-feira, 20 de maio de 2015

"Ai, que preguiça!"


"No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. (...) Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro: passou mais de seis anos não falando. Sio incitavam a falar exclamava: If — Ai! que preguiça!. . . e não dizia mais nada." (...) Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. "

Com essa frase, Mario de Andrade abre a obra que talvez seja a mais biográfica do Brasil: Macunaíma, criança parida feia de uma índia, preto, filho do medo da noite, preguiçoso, malandro, adepto do lucro fácil e nada afeito ao trabalho. Seus feitos foram fabulosos e assunto de toda a gente. Não era um personagem famoso pela dedicação ao trabalho, pela personalidade disciplinada, pelo caráter ordeiro e trabalhador. Como os brasileiros também não o são - defende Sérgio Buarque de Holanda.

Não coincidentemente, Sérgio Buarque de Holanda e Mário de Andrade foram contemporâneos - na mesma época em que, entusiasticamente, se buscava uma identidade nacional. Era da difusão do livro Brasil afora, através da empreitada de Monteiro Lobato e sua incansável defesa pela transformação em um país de leitores; época de utilização do rádio como meio de comunicação nacional, abrangendo do Oiapoque ao Chuí com uma única programação que nos tornava irmãos, a despeito das diferenças regionais; época das revistas com suas sátiras e grandes reportagens - e da divulgação de um ideal urbano glamouroso e nacional; época do Catálogo Brasilianas, que divulgava as grandes obras nacionais, que todo brasileiro culto deveria ler para entender o seu país. Época de buscarmos uma explicação sobre quem somos, pois com esta compreensão, talvez, fôssemos capazes de encontrar uma fórmula para o desenvolvimento como nação.

Talvez não tenhamos nos saído tão bem na tarefa de nos desenvolvermos (graus variáveis de sucesso podem ser atribuídos, dependendo da lente ideológica que se usa para analisar o período), mas certamente fizemos um bom trabalho na compreensão das características que nos tornam singulares como sociedade. A pintura, no entanto, permanece em aberto, em constante mutação na construção da imagem do que somos, o que queremos e para onde desejamos ir.

Algumas pinceladas sobre a nossa origem foram dadas por Sérgio Buarque de Holanda: a supremacia do espírito de aventura sobre o modo disciplinado de viver a vida que o trabalho constante exige. Uma certa ânsia de prosperidade sem custo, de títulos honoríficos, de posições e riquezas fáceis. O êxito da colonização portuguesa em decorrência da sua capacidade de não manter a própria distinção com o mundo que vinham povoar - a docilidade com que o europeu se deixou absorver pela cultura indígena e a miscigenação com os traços característicos dos africanos verdadeiramente impressiona. Um fundo emotivo rico e transbordante, e uma certa ojeriza à visão ritualista, impessoal e procedimental da vida. A buscar pela riqueza - mas aquela que custa ousadia, não a riqueza que custa trabalho. A má fama do labéu tradicionalmente associado aos trabalhos braçais, que obrigava à escravidão, e que não infamava apenas quem os praticava, mas igualmente seus descendentes. A ausência de uma capacidade de livre e duradoura associação entre os elementos empreendedores do país - e a constante dependência de um elemento "externo" (o governo, os pais, o padrinho) para nos salvar de nossas fraquezas. Por fim, como bem colocou Sérgio Buarque de Holanda, uma das características que mais nos marcam como nação:

"O peculiar da vida brasileira parece ter sido, por essa época, uma acentuação singularmente enérgica do afetivo, do irracional, do passional, e uma estagnação ou antes uma atrofia correspondente das qualidades ordenadoras, disciplinadoras, racionalizadoras. Quer dizer, exatamente o contrário do que parece convir a uma população em vias de organizar-se politicamente" (Sérgio Buarque de Holanda, "Trabalho e Aventura", pp. 61)

Essas impressões esboçadas por Sérgio Buarque de Holanda sobre a nossa origem ajudam a desenhar o quadro tão bem materializado por Macunaíma, herói de toda a gente. Porém, nossa pintura está longe de se completar - nossa identidade e nosso projeto de desenvolvimento estão ainda por se construir. Mas os traços presentes na nossa colonização estarão presentes na nossa sociedade contemporânea? Estará a nossa jovem democracia ainda inundada pelo personalismo, pela reatividade ao trabalho, pela necessidade de hierarquias e títulos? E será possível um modelo de desenvolvimento igualitário, justo e sustentável com essas caraterísticas tão pouco republicanas da nossa gente? Essas respostas ainda não foram encontradas, e mais pinceladas serão necessárias para que a pintura se complete, para que a fotografia se torne mais nítida. Contudo, a lição que nos deixam os artistas, escritores, pesquisadores, sociólogos, antropólogos que se debruçaram para construir essa imagem é a de que não podemos importar os modelos de nações com características da disciplina, da ordem e do ritual. Nosso caminho segue pelo som dos berimbaus, dos atabaques, dos chocalhos e dos fados, a compor a trilha sonora que, muito provavelmente, não irá acompanhar uma história de ordem, disciplina e trabalho.

E, deitados nas redes de balançar, iremos, preguiçosamente, testemunhar as pinturas que ainda hão de se constituir para a compreensão da nossa realidade. Ou não.... Ai, que preguiça!



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