quarta-feira, 6 de maio de 2015

Começando: O "jeitinho", o "sabe com quem está falando" e a formação do Brasil Colônia



Sobre as primeiras leituras do nosso grupo, tenho três apontamentos a fazer: (i) sobre a defasagem das ideias defendidas por Damatta; (ii) sobre como o mundo jurídico é desafiado pelo "jeitinho" e pelo "sabe com quem está falando"; e (iii) sobre a formação do Brasil nos seus primórdios - e o impacto desta formação para o problema da desigualdade, que é o meu maior interesse neste grupo.

Inicio falando sobre o que me pareceu ser uma certa defasagem das ideias do Roberto Damatta. o antropólogo publicou "O que faz o Brasil, Brasil" na década de 1980, o que poderia explicar como parte de suas ideias estão defasadas (embora não explique totalmente, pois em 2004 publicou "O que é o Brasil", no qual repete exatamente os mesmos argumentos). As ideias que considero defasadas referem-se à defesa da tendência conciliadora existente na sociedade brasileira. Se algum dia houve essa tendência (e tenho cá minhas dúvidas se de fato houve, pois como Alberto da Costa e Silva bem aponta, sempre houve a divisão em dois Brasis, um branco, rico, colonizador, outro negro ou mulato, escravizado e oprimido, dois Brasis que se tratavam com cordialidade, mas que sempre se olharam com desconfiança mútua), está muito claro que o Brasil contemporâneo admite cada vez menos a conciliação das suas diferenças - especialmente políticas. Marcar politicamente as diferenças desses dois Brasis antagônicos, um de oportunidades e outro de submissões, talvez seja a forma de, ao expor o conflito, melhor enfrentá-lo, deixando pra trás afirmações paliativas do tipo "deixa disso" ou "não existe preconceito no Brasil" (o ótimo filme "Casa Grande" faz um apurado retrato dessa dificuldade cada vez maior de se conciliarem as contradições brasileiras).

Outro aspecto que considero defasado - senão equivocado mesmo - da argumentação do Roberto Damatta é o olhar condescendente - quase de admiração - em relação ao "jeitinho" e ao "você sabe com quem está falando". Concordo com o argumento dele de que se tratam de duas faces da mesma moeda: a da necessidade de pessoalidade (característica que torna insuportável os impessoais papéis de "cidadão", "contribuinte", "eleitor", "condômino", etc); porém, daí a dizer que essa é a maneira que o brasileiro encontrou para lidar com um Estado autoritário, confuso e pouco transparente é forçar demais a barra. Quase como se o autor estivesse a defender ou tolerar a postura de dar um "jeitinho", como se essa postura em si já não reforçasse a profusão de normas que torna o Estado brasileiro caótico e engessado. Damatta argumenta que essa capacidade de transigir e negociar pode nos tornar missionários de um novo tipo de sociedade, para além do individualismo e consumismo excessivo das sociedades ocidentais. Talvez no plano da cultura, da culinária, da música, das artes esse talento para a ambiguidade seja positivo. Contudo, para a construção de um Estado de Direito que trata seus cidadãos de maneira igualitária (na famosa fórmula de igualar na medida em que se igualam e desigualar na medida em que se desigualam), o "jeitinho" e o "sabe com quem está falando" são absolutamente desastrosos.

Para a minha perspectiva - que é sobre o problema da desigualdade e da (falta de) democracia -, o apontamento do Roberto Damatta de que existe uma regra da casa, da pessoalidade, do "padrinho" (que tem profunda dificuldade em lidar com a regra da rua, da impessoalidade, do que é público) é fundamental. Isso ajuda a entender a dificuldade do universo jurídico  em criar regras "que colam", que funcionam no mundo real (como a mal fadada cobrança pelo uso das sacolinhas plásticas, por exemplo) e que sejam de fato obedecidas. Talvez uma maneira de lidar com este fenômeno, conforme o próprio autor sugeriu, seja a criação de instituições e instrumentos formais que possam lidar com a peculiaridade do universo da casa e da religião (ainda mais importante num país cada vez mais evangélico), tão presentes na cultura brasileira. Não sei bem como seria, nem me parece que a saída seja a criação de mais normas (que burocratizariam ainda mais). Parece-me que a solução estaria no sentido de tornar mais transparente e simples a gestão dos assuntos públicos (o ótimo Brasil 2030 pode ser uma boa iniciativa neste sentido), de forma que o "jeitinho" seja cada vez mais desnecessário e a aplicação das leis e a prestação dos serviços públicos sejam cada vez mais uniformes e semelhantes para todos.

Por fim, o texto do Alberto Silva é muito importante para entender as raízes da desigualdade no Brasil. Como bem apontou Lília Schwarcz na introdução do livro, o Brasil não é uma pátria - é uma "mátria". Uma "matria" com padrões muito passionais e personalistas de tratamento dos seus indivíduos, conforme sua cor e classe. A descrição vívida de Alberto Silva nos faz perceber o quanto foi desigual o tratamento dado a cada indivíduo na formação do país - mas, ao mesmo tempo, também é possível perceber como foi rico o caldo de cultura que nos formou, e como o sincretismo influenciou as artes, a culinária, a arquitetura, a língua, a religião - e, é claro, as instituições e leis que foram criadas. Desde o início, a existência de muitos Brasis ficou muito clara. O fato de não explicitarmos essa diferença e esses preconceitos não fez com que a desigualdade diminuísse; ao contrário, só a intensificou. Como aponta Lília Schwarcz, houve diferentes "Brazis" (com "z" mesmo, olhado de fora) - e nem o Império, nem a República, nem as ditaduras, nem a redemocratização fizeram esta característica desaparecer. 

Entender melhor nossas origens ajuda a compreender o Brasil de hoje, suas desigualdades e sua (falta de) democracia. Tal qual o texto do Roberto Damatta, não aponta soluções (nenhum dos textos se propõe a fazê-lo), mas apresenta características que são fundamentais para repensarmos que tipo de sociedade somos, como podemos nos reinventar e aonde queremos chegar.

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