quinta-feira, 7 de maio de 2015

A Redenção de Cam


          O primeiro livro da Bíblia, que nos fala sobre a criação, conta certa história sobre Noé (o escolhido por Deus para salvar a Criação do dilúvio). Certa feita, após ter exagerado no vinho, o patriarca ficou ébrio e lá pelas tantas, no auge do efeito do álcool, tirou a roupa e ficou perambulando por aí. Cam, um de seus filhos, o encontra nu e foi contar tal fato aos outros irmãos. Os irmãos ao saberem do ocorrido correm para ajudar o pai, cobrem-no (sem olhar para nudez de Noé) e cuidam da sua embriaguez. No dia seguinte, depois de passado o efeito do fermentado, o construtor da arca, ao saber do acontecido, amaldiçoa seu filho pelo ocorrido na noite anterior. Segundo a praga, Cam estaria fadado a ser escravo de seus irmãos. Ou pelo menos diz assim uma das possíveis interpretações. Cam é o antepassado de Canaã, ou, de todos os povos africanos da antiguidade (povos de pele escura). O quadro acima, datado de 1895, pertence ao pintor espanhol Modesto Brocos. A obra chama-se "A redenção de Cam". Nela vemos uma família. A filha, a mãe, o marido da filha e a avó. Esta última, de pele retinta, agradece aos céus pela descendente de pele clara. A imagem fala por si só.
        Durante a leitura dos dois textos "O que faz o brasil, Brasil" do Roberto Damatta e o primeiro capítulo do livro "História do Brasil - Crise Colonial e Independência" coordenado pelo Alberto da Costa e Silva, tiveram dois pontos, principalmente,  que me despertaram reflexões. O primeiro é sobre como muitos dos aspectos que surgiram durante o nosso processo de composição, não só não mudaram como persistiram e nos influenciam fortemente até hoje – Mesmo sendo atributos muitas vezes questionáveis, reprováveis, abomináveis, quando não ilícitos. E o segundo ponto é sobre como o processo de elaboração da nossa identidade é tardio.
        Nós somos o desdobramento de uma terra invadida que teve seu povo perseguido e dizimado pelos portugueses e que foi incessantemente explorada, utilizando seres humanos escravizados que foram removidos de suas terras (durante quase 4 séculos) num contingente estimado em cerca de 5,5 milhões de pessoas. E após a abertura dos portos a nações estrangeiras depois da chegada da família real, muitos povos complementaram a diversificação da nossa formação. Sendo assim, nossas principais características como religião, música, culinária, língua, entre outras refletem essa constituição diversa. Como exemplo negativo dessas influências, podemos citar o Patrimonialismo (indistinção entre o público e o privado) herdado do sistema político dos portugueses que se apresenta, hoje em dia, sobre os diversos casos que temos conhecimento de agentes públicos que utilizam recursos do Estado para fins de beneficiamento pessoal. E principalmente, devemos citar a escravidão como herança da nossa história, pois nos marcou profundamente. Nos principais períodos de servidão os seres humanos escravizados representavam mais da metade da população do Brasil e ainda hoje continuam sendo maioria. Para termos uma ideia da dimensão, hoje o Brasil abriga a maior população negra fora da África. Mas mesmo assim, a maior parte das vítimas da exclusão social são negros. Ganhando menos. Predominando nos presídios. Sendo as maiores vítimas de homicídios e da violência policial (a cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras). Sendo minoria nas universidades. Preenchendo a maior parte dos subempregos. E, como colocado por DaMatta, quando se trata de relações trabalhistas, somos definitivamente influenciados pelos tempos de cativeiro: as relações econômicas se misturam com laços pessoais como uma estratégia de dominação e controle que confunde o empregado.
          Alberto da Costa e Silva escreve que "a partir de 1821, a percepção que os naturais do Brasil tinham de si próprios mudou. Antes , consideravam-se portugueses da América e coerdeiros da mesma história e da mesma cultura que os da Europa. Depois passaram a tê-los como inimigos e a repudiar o legado lusitano. Valorizaram-se as raízes ameríndias, e muitos saíram a busca de seus antepassados indígenas". Quanto tempo se passou até começarmos a formar algum tipo de noção de nação? A independência aconteceu em 1822. Entretanto, todos os processos de emancipação, na sua maioria, significam um processo de ruptura a uma situação anterior. Uma emancipação de valores. Prevê um fortalecimento da identidade. Significa autonomia, uma não submissão. No entanto a independência do Brasil foi conservadora. Orquestrada pelas elites, na prática, as coisas permaneceram as mesmas. Mudou para poucos. Não foi um movimento de baixo pra cima, nenhuma cabeça foi cortada. O sistema escravocrata permaneceu intocado. Talvez isso explique um pouco o porquê de uma elite brasileira tão presente e reacionária. E como agravante para o nosso processo de construção, em mais de 500 anos de existência, temos apenas algumas décadas de democracia.
            A verdade é que a "colonização portuguesa nos dividiu mais do que nos fez dialogar", citando novamente o livro "História do Brasil - Crise Colonial e Independência". O que me faz voltar ao quadro de Modesto Brocos. A obra nos mostra claramente as consequências perversas, hediondas e abomináveis do racismo, mas, de certo modo, ela também serve como uma metáfora para o Brasil. Negando aquilo que somos, rejeitamos a nossa história. E ao valorizarmos e agradecermos aos céus pelo enbraquecimento, simbolicamente contestamos a nossa identidade.  Aguardemos o dia em que ao invés de procurarmos a redenção, nós busquemos a transgressão de Noé.

Um comentário:

  1. Estava em busca de uma interpretação da obra e por acaso encontrei sua análise! Muito boa por sinal, parabéns pelo texto.

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