O livro “A Tolice da Inteligência
Brasileira”, do Jessé Souza é um enorme exercício de desconstrução. Como tudo
aquilo que se propõe a desconstruir, o livro é tão melhor quanto maior for a
quantidade de elementos de ‘construção’ que o leitor tem. Ainda que não se
trate exatamente de um livro para iniciados, o texto se torna mais interessante
à medida que a desconstrução proposta pelo autor reverbera em alguns
conhecimentos que o leitor tem ou supõe ter.
O mote do livro é o de tentar
mostrar como a tradição intelectual brasileira vem sendo construída de maneira
a legitimar os privilégios já existentes, tanto em nível de nações, com a
opressão dos países do Atlântico Norte sobre os do ‘terceiro mundo’, quanto em
nível brasileiro, com a opressão das classes privilegiadas (o 1% mais rico)
sobre as outras, tanto a classe média quanto o que Jessé chama de ‘a ralé
brasileira’.
Segundo Jessé, toda a teoria que
busca interpretar o Brasil em seus vícios e suas virtudes, em suas mazelas e
suas contradições, acaba por seguir um dos dois caminhos: o culturalismo ou o
economicismo. No culturalismo, reforça-se uma posição racista, de que nós
brasileiros somos mesmo um tipo de gente inferior: mais corrupta, menos
confiável, mais pessoalizada, e até mesmo mais ‘exótica’. No economicismo,
busca-se explicar e entender o Brasil como se tudo se resumisses a índices e
variáveis econômicas. Ambas as perspectivas, para Jessé, estão erradas, e o que
ele propõe é quase uma ciência nova. O autor parece querer construir (às vezes,
quase como uma militância) uma teoria crítica do Brasil que explique as causas
de nossa brutal desigualdade sem apelar para neo-racismos (os que travestem
nossa suposta pequenez sob a égide de uma abordagem pseudocientífica) nem para abordagens
puramente econômicas, que desconsideram a complexidade dos fenômenos sociais.
O livro é muito bom. Mas,
justamente por isso, acho importante começar por suas fragilidades. Uma das
coisas que mais incomoda é, precisamente, o excesso de desconstrução. Na ânsia
de construir algo realmente novo, Jessé Souza desce o pau em vários
intelectuais brasileiros: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto
DaMatta. Sobre até para Florestan Fernandes e para alguns mais contemporâneos,
como Marcelo Neri. Em seu furor desconstrutivista que só parece reconhecer sem
muitas ressalvas a obra de Max Weber e do sociólogo canadense Charles Taylor,
Jessé Souza acaba por soar arrogante, como se fosse o único cientista político
sério e verdadeiro no Brasil. É também curioso notar como alguém que procura
entender o Brasil, e, justamente, mostrar como somos intelectualmente
dominados, acaba por se escorar em dois intelectuais oriundos do estrangeiro
para erigir sua argumentação.
Um outro ponto que merece
atenção, e que vai no mesmo sentido, é o tom apocalíptico de seu discurso.
Pessoalmente, não aprecio discursos meio paranoicos do tipo “tudo que você sabe
até agora está errado”. É importante deixar claro que Jessé Souza não carrega o
Santo Graal.
Quanto ao estilo do texto, é
patente o esforço do autor para se fazer entender por seus leitores. Mesmo
tratando de um tema complexo, difícil mesmo, Jessé assume uma posição de tentar
escrever para ser lido, e numa das raras manifestações desse tipo em ensaios e textos
acadêmicos, pede desculpas de antemão aos seus leitores se não se fizer
compreender. Nem sempre é fácil. Em especial nas passagens sobre Weber, o texto
fica meio turvo e é difícil avançar nas páginas. Mas no geral, o texto flui
bem. Jessé consegue realizar a difusão de seu trabalho junto ao público leigo,
através de uma boa estruturação de capítulos e de um manejo adequado da
linguagem, sem grande perda de densidade científica e sem soar tatibitate. É,
de fato, um trabalho árduo. Comparando com as duas últimas leituras que tivemos
no grupo, pode-se dizer que, no que diz respeito a difusão do conhecimento, o
trabalho de Jessé Souza em ‘A tolice da inteligência brasileira’ é melhor que o
realizado por Márcia Tiburi (‘Como conversar com um fascista’) e pior do que o
realizado por Jorge Caldeira (‘Nem céu, nem inferno’).
No mais, o livro é realmente um
achado. Mais do que apresentar uma teoria nova, seu grande mérito é abrir um
campo de possibilidades vasto para repensar o Brasil, e também para nos repensarmos
a nós mesmos.
Uma das coisas interessantes que
ele apresenta é o mito da fundação de São Paulo. Existe toda uma tradição
teórica brasileira, capitaneada por Sérgio Buarque de Holanda, que dá contorno
míticos à fundação do Estado. Os bandeirantes, centro desse mito, são muitas
das vezes pintados como uma ‘legião de empreendedores’, quando na maior parte
das vezes são o contrário: quase nômades, e com um modo de pensar econômico tão
preocupado com o aqui-agora que querer ver neles o proto-industrial paulista do
século vinte soa bastante absurdo. No entanto, este mito está lá, assemelhado
ao mito do homem de mentalidade protestante das treze colônias
norte-americanas: um empreendedor, um homem em quem se pode confiar, um homem
honesto. É curioso observar que esse imaginário reproduz o paulista como um
antibrasileiro. Em oposição a essa descrição do paulista, temos uma tradição
intelectual que pinta o brasileiro como um homem preguiçoso, um homem em quem
não se pode confiar, um homem corrupto.
Passei boa parte da vida sem
saber quem foram os bandeirantes, o que fizeram e por que foram importantes
para o Brasil. No Rio, nossos mitos são outros. A invenção da ‘Cidade
Maravilhosa’ (e a crença que temos nisso) é capaz de ofuscar todo o restante do
país e fazer com que olhemos apenas para o nosso umbigo. Mas São Paulo é outra
coisa.
A criação de São Paulo como um
anti-Brasil, ou do paulista como um anti-brasileiro, ainda nos dias de hoje repercute.
Não é uma coincidência que quem hoje esteja na linha de frente do movimento
golpista seja a FIESP, a Federação das Indústrias de São Paulo. É a crença no
mito de que São Paulo é a locomotiva do país e de que ele irá redimir o Brasil
de toda essa corrupção: é isso (dentre outras coisas) que alimenta o golpe. A
elite paulista, tanto em sua versão aristocrata-latifundiária quanto em sua
versão burguesa pós-industrial, se crê como esteio da moralidade brasileira,
calcada em valores de uma ética protestante norte-americana. Ainda que essa
moralidade protestante não dependa de uma prática religiosa (mesmo com a
bancada evangélica tocando o terror no Congresso), é essa moralidade que vai
ganhando os corações e mentes de uma elite e de uma classe média, e que vai
sendo irradiada principalmente para o Centro-Sul brasileiro.
Voltando aos bandeirantes, sempre
soube pouco sobre eles. Mas conversando com amigos paulistas, parece que esse
personagem histórico transformado em herói mítico (através da vida escolar e da
transmissão oral) reforça uma visão positiva dos valores paulistas. Vale notar
que o bandeirante mítico é apenas paulista, quando na verdade as entradas e
bandeiras aconteceram em várias partes do Brasil.
O que importa disso tudo, para a
discussão do livro do Jessé, é a percepção de que não é o mito que gera o
sucesso. Não é porque havia um bandeirante com características percebidas como
positivas que São Paulo ‘deu certo’, em termos econômicos. Não. É o contrário.
É justamente porque São Paulo ‘deu certo’ que se criou esse mito de ser o
paulista o descendente de um povo de ideal nobre e corajoso que desbravou
nossos sertões.
O que Jessé Souza aponta é que
essa construção do mito tem sido utilizada em sentido invertido para o Brasil.
Justamente porque ‘não demos certo’, ou para dizer melhor, justamente porque
fomos oprimidos, é que nos colocaram essa pecha de sermos um povo exótico,
pouco confiável, personalista e corrupto. Essa história da carochinha nos foi
empurrada goela abaixo e, deglutida e regurgitada por nossa própria intelectualidade
tupiniquim, aparece como uma verdade quase inabalável, de certa forma mítica, e
que está incrustada em cada um de nós. É a crença no mito de que não somos bons
que nos torna piores. Somos aquela criança a quem costumeiramente se chama de
‘burra’ e que, precisamente por isso, não aprende nada. De alguma maneira, toda
profecia é autorrealizável.
Esse fenômeno também se reflete
no modo como a ‘ralé brasileira’ (termo cunhado por Jessé Souza para
identificar os pobres, excluídos e marginalizados no Brasil) se perpetua. De
acordo com Jessé, a perpetuação da ralé se dá, principalmente, através de um
processo de socialização de seus membros que, desde a infância, não têm
inculcados os valores que os tornariam aptos e competitivos no mundo moderno.
Um dos exemplos que mais chama a atenção é a falta de capacidade de
concentração. Jessé argumenta que valores que temos como ‘naturais’, como por
exemplo, pensar no futuro e se concentrar em alguma atividade, são na verdade
construções sociais. É muito duro pensar que a ‘ralé brasileira’ evolui pouco
ou quase nada não porque lhe falte o mínimo, mas porque lhe falta o que vem
antes disso. Muitos de nós (que estamos nas classes médias ou nas mais
privilegiadas) sequer conseguimos atribuir dignidade a essas pessoas que não
carregam consigo os atributos elementares que os façam pertencer a uma
sociedade de consumo. Esse não reconhecimento da dignidade do outro acaba por
explicar muita coisa, e é o cerne da discussão sobre os processos de opressão e
de truculência que desumaniza pessoas o tempo todo. Nesse ponto, a contribuição
de Jessé (assim como a de Márcia Tiburi em ‘Como conversar com um fascista’) é
fundamental para um entendimento mais claro dos fenômenos sociológicos
brasileiros.
Não só dos fenômenos
sociológicos, mas também dos pessoais. É muito interessante a forma como, a
partir das questões apontadas por Jessé, a gente é capaz de se perceber não
apenas como ator social, mas como indivíduo mesmo (na verdade, essa diferença
acaba ficando bastante imprecisa). A busca por dignidade, e depois por
autenticidade, parecem mesmo espelhar o sentido da vida que tentamos construir.
Quem é que não quer construir uma trajetória própria, autêntica? Penso que a
busca por autenticidade na vida contemporânea deve ser o que restou da busca
por uma vida de honras e glórias, a tônica da vida pré-moderna.
Voltando à ralé brasileira, que
aliás dá título ao mais novo livro do autor (e que tenho muita vontade de ler),
Jessé fala um pouco da divisão dessa ralé. Em sua argumentação, ele menciona como,
entre os mais desfavorecidos, existe uma divisão grande entre aqueles que se
marginalizam (e, portanto, aceitam estar à margem de um sistema que os oprime)
e aqueles que vivem a vida lutando dentro desse sistema opressor, em
subempregos e condições precárias de trabalho (e que, portanto, vêm-se a si mesmos
como ‘trabalhadores’, e homens honestos). Essa argumentação vai ao encontro de
ideias pregressas que eu já tinha (e que não sei se cheguei a colocá-las
textualmente alguma vez), de que enxergar as nuances e as complexidades dos
fenômenos é coisa de rico. Para quem é mais pobre, a complexidade e a nuance
não são uma opção porque a posição binária dos elementos que perpassam a vida
das pessoas se coloca como uma linha mortal e inescapável. Nessa lógica, a
única forma de não ser percebido pela sociedade como ‘bandido’ é assumir uma
posição de ‘anti-bandido’. Ou seja, para quem vive atormentado pelo grande
número de marginais à sua volta e para quem se vê assombrado pela perspectiva
de ser percebido como marginal o tempo todo, a única possibilidade é a de se colocar
frontalmente contra essa forma de ser. Daí decorre que muitos dos que compõem
essa tal ‘ralé’ sejam a favor da pena da morte, acham que ‘bandido bom é
bandido morto’ e não conseguem pensar em direitos humanos. Para essas pessoas, os
direitos humanos acabam soando como uma relativização; mais do que isso, uma
transigência com a bandidagem. ‘E se fosse com a sua mãe?’, eles perguntariam.
O ponto em que Jessé avança na discussão (em relação às ideias que eu já tinha)
é que essa polarização do mundo no seio da ralé entre honestos e bandidos acaba
por cindir essa classe social que, preocupada com o outro lado da própria
classe, não consegue se perceber enquanto tal. A consciência de classe é um
luxo de quem conseguiu superar o binarismo mais elementar. Ou para usar os
termos que Jessé utiliza no seu livro, a consciência de classe funciona como um
elemento de autenticidade para aqueles que já superaram a fronteira da
dignidade. Entendo essa cisão como tão profunda que chego mesmo a pensar que o
trabalhador que recebe um salário mínimo possa se identificar mais com uma
classe média que o oprime do que com um morador de rua ou um assaltante, posto
que ele compartilha (ou supõe compartilhar) com a classe de cima os valores de
honestidade e tenacidade, e que estes lhe são valores muito caros, uma vez que
eles lhe protegem de serem percebidos como marginais.
É por isso que a ascensão de Jair Bolsonaro é tão perigosa. Ela encontra eco nas classes mais favorecidas, que
apoiam uma política higienista e de eliminação dos pobres (mas não da pobreza),
e também em considerável parte da ralé, que ao apoiar a morte do que percebem
como bandidos, marginais e subversivos, se coloca moralmente como não sendo
essas coisas. É uma estratégia de defesa. O pobre para se defender de ser bandido
precisa ser o anti-bandido, assim como as mulheres para se defenderem de ser putas
precisam ser ‘belas, recatadas e do lar’, assim como pretos para se defenderem
do racismo precisam ser ‘pretos de alma branca’, e até mesmo como os paulistas
para se defenderem de uma carga negativa atribuída à personalidade brasileira
precisam se afirmar moralmente como anti-brasileiros.
O último ponto que considero
importante mencionar como destaque em “A Tolice da Inteligência Brasileira” é a
crítica ao economicismo. Talvez muito de vocês não se deem conta da tolice real
que é esse tipo de abordagem, mas ela atualmente funciona como sustentáculo de
boa parte da ciência no Brasil. Não digo nem tanto em relação à pesquisa
(mestrado e doutorado), mas em relação ao ensino nos cursos superiores de
graduação, especialmente na administração e na engenharia de produção. Nesta
última, que é a minha área de formação, atuei tanto como aluno e como
professor, e, puxando pela memória meu papel e minha experiência nesses dois
lados da moeda, posso dizer que é muito difícil, em ambos, furar o bloqueio da
corrente economicista que habita o ensino superior.
Em Teoria Geral da Administração,
aprendemos que o objetivo de toda empresa é gerar lucro. Essa foi possivelmente
a colocação mais axiomática de tudo que aprendi no curso superior. É assim
porque sim. O dinheiro como um fim em si mesmo. Todo o resto (marketing,
sustentabilidade, promoção da cultura, etc...) é visto como um meio através do
qual se pode gerar mais lucro. Em nenhum momento foi discutido que essa
concepção faz parte do sistema capitalista, que é o que atualmente temos em
vigência, etc, etc, etc... Essas informações são transmitidas aos alunos não
como verdades conjunturais e válidas para um sistema econômico específico, mas
como uma verdade absoluta.
Consigo me lembrar de dois
professores que se dispuseram a apresentar caminhos alternativos para a
compreensão do mundo empresarial na graduação em engenharia de produção no
CEFET/RJ. Um deles apresentou textos para discussão que iam de Frederick Taylor
a Bertrand Russell e que enriqueceram muito a minha formação (Vinicius Cardoso
o nome dele). O outro foi o professor José Peixoto, que apresentou perspectivas
sobre a formação e utilidade das empresas sob diferentes óticas (técnica,
computacional, sociológica, psicológica, etc...). Só. Dois professores. É muito
pouco. No mestrado e no doutorado (que realizei na UFF), essa quantidade
aumenta consideravelmente, mas a carga de discussão sobre os modelos
socioeconômicos vigentes permanece baixa. No mais, nas conversas que tenho com
amigos, percebo que isso não é um problema desta ou daquela instituição: é o
cenário que temos. Os campos social e ambiental vêm sendo reiteradamente
colocados como acessórios, a serviço de um campo econômico que todo mundo
aprendeu a manejar. De maneira mais ferramental, faça-se um teste de valor
presente líquido ou use-se uma taxa interna de retorno e pronto: resumem-se a
esses dois números, unicamente, a decisão total sobre a necessidade de execução
de um projeto ou não, seja para reformar um apartamento de quarto-e-sala, seja
para construir uma hidrelétrica.
Seguindo na parte do uso das
ferramentas, a maioria dos livros utilizados na graduação foi escrito no
exterior, e vinha como um enlatado estadunidense até aqui. É verdade que muita
coisa mudou nesses últimos dez anos, e temos boa produção teórica para
graduação acontecendo no Brasil. Mas essas mudanças se restringem a pequenas adaptações
locais, e ninguém parece muito preocupado em apresentar uma teoria crítica ao
que vem sendo apresentado nos livros estrangeiros: permanecemos no
economicismo.
Um bom exemplo dessa miopia
economicista é Donald Trump. Passei boa parte da minha juventude ouvindo que
Donaldo Trump, o grande multimilionário, era um homem de sucesso (sempre me
posicionei de forma crítica quanto a isso, ressalte-se). Talvez ele até seja se
levarmos em conta o quão bom ele é em transformar dólares em mais dólares. Mas
quem é o homem por trás do dinheiro, aquele com que ninguém parecia se
preocupar? Hoje está claro: trata-se de alguém conservador, xenófobo, misógino,
reacionário e retrógrado em todos os sentidos.
Outro exemplo dessa miopia: o
investidor. Livros e livros e aulas e mais aulas falando sobre o mercado de
ações, o papel do investidor, a racionalidade do investidor, etc. Essa é uma
importação de um modelo que não é o nosso. Aqui não discutimos ações na mesa de
bar (mais do que há dez anos, é bem verdade), as pessoas não querem correr os
riscos do mercado de ações e, em sua maioria, preferem investir em imóveis e
viver como rentistas. Não quero que isso seja interpretado como o ‘racismo
cultural’ de que tanto fala Jessé Souza, mas isso serve apenas para mostrar que
esse ‘investidor’ que aparece nos livros, a pessoa física que vai lá e compra
uma ação ordinária de uma empresa é um mito, com muito pouca correspondência no
mundo real.
Certa vez, em Cuba, achei numa
das raras livrarias de Havana um livro de engenharia de produção. O livro, bem
fininho, se chamava ‘Inginiería de la Organización’ ou algo próximo disso. É
claro que o comprei. O livro falava dos mesmos conceitos que compõem o corpo
teórico da engenharia de produção (com ênfase no estudo de tempos e movimentos)
só que do ponto de vista da construção estatal, da eficiência em prol do
interesse coletivo, etc. Nessa época eu já não dava mais aulas, o que foi uma
pena e um alívio ao mesmo tempo. De fato, usá-lo em sala de aula seria bastante
arriscado, e haveria um grave risco de que eu fosse acusado de ‘oferecer
material ideológico’ aos meus alunos. Mas e os livros oriundos dos Estados
Unidos e mesmo os brasileiros de orientação semelhante? Ninguém percebe que
eles também funcionam como veículo de difusão de ideologias, nesse caso, as
ideologias do capitalismo?
Essa ideologia capitalista acaba
por gerar no Brasil, como apontado por Jessé, um endeusamento do mercado e uma
demonização do Estado, que passa a ser percebido como um antro de corrupção e
de ineficiência. Nesse sentido, minha tese de doutorado, que estuda o papel dos
engenheiros de produção no setor público brasileiro, joga um pouco de luz nessa
questão, ao mostrar que o motivo pelo qual muitos desses profissionais optam
pelo serviço público tem a ver com os melhores salários e com a estabilidade (alguns
até mesmo preferem o setor público por razões ideológicas). Ou seja, a partir
disso, é possível perguntar que mercado é este que se vende como tão
maravilhoso se aqueles que preferem o Estado fazem essa opção porque veem o
mercado como um lugar de baixos salários e relações de trabalho precárias. A
magnificência de um mercado impoluto aparece, portanto, como mais um mito.
“A Tolice da inteligência
brasileira”, portanto, é uma obra muito importante para que a gente possa se
questionar a respeito dos mitos com os quais nos acostumamos. Aqui nesse texto
vimos vários: o brasileiro desonesto e corruptível, o arquétipo do bandeirante
como o paulista proto-industrial, a crença desse mesmo paulista em si mesmo
como o esteio da moralidade (e seu posicionamento como anti-brasileiro), a
meritocracia que nega os privilégios das classes mais favorecidas e coloca na
ralé a culpa de seus próprios insucessos, o economicismo como único prisma do
mundo, o investidor brasileiro, o mercado hipereficiente.
Nesse sentido, a despeito de sua
fúria desconstrutivista (que por pouco não chega a soar como destrutiva), Jessé
Souza é hábil em nos conduzir a novos modelos de pensamento e de interpretação
do mundo, do Brasil e do sistema capitalista, e em fornecer à intelectualidade
brasileira e ao público leigo os alicerces de uma teoria que seja capaz de se
pensar como verdadeiramente crítica em relação aos modelos interpretativos de
que atualmente dispomos.