quarta-feira, 27 de abril de 2016

Caem os mitos brasileiros



O livro “A Tolice da Inteligência Brasileira”, do Jessé Souza é um enorme exercício de desconstrução. Como tudo aquilo que se propõe a desconstruir, o livro é tão melhor quanto maior for a quantidade de elementos de ‘construção’ que o leitor tem. Ainda que não se trate exatamente de um livro para iniciados, o texto se torna mais interessante à medida que a desconstrução proposta pelo autor reverbera em alguns conhecimentos que o leitor tem ou supõe ter.

O mote do livro é o de tentar mostrar como a tradição intelectual brasileira vem sendo construída de maneira a legitimar os privilégios já existentes, tanto em nível de nações, com a opressão dos países do Atlântico Norte sobre os do ‘terceiro mundo’, quanto em nível brasileiro, com a opressão das classes privilegiadas (o 1% mais rico) sobre as outras, tanto a classe média quanto o que Jessé chama de ‘a ralé brasileira’.

Segundo Jessé, toda a teoria que busca interpretar o Brasil em seus vícios e suas virtudes, em suas mazelas e suas contradições, acaba por seguir um dos dois caminhos: o culturalismo ou o economicismo. No culturalismo, reforça-se uma posição racista, de que nós brasileiros somos mesmo um tipo de gente inferior: mais corrupta, menos confiável, mais pessoalizada, e até mesmo mais ‘exótica’. No economicismo, busca-se explicar e entender o Brasil como se tudo se resumisses a índices e variáveis econômicas. Ambas as perspectivas, para Jessé, estão erradas, e o que ele propõe é quase uma ciência nova. O autor parece querer construir (às vezes, quase como uma militância) uma teoria crítica do Brasil que explique as causas de nossa brutal desigualdade sem apelar para neo-racismos (os que travestem nossa suposta pequenez sob a égide de uma abordagem pseudocientífica) nem para abordagens puramente econômicas, que desconsideram a complexidade dos fenômenos sociais.

O livro é muito bom. Mas, justamente por isso, acho importante começar por suas fragilidades. Uma das coisas que mais incomoda é, precisamente, o excesso de desconstrução. Na ânsia de construir algo realmente novo, Jessé Souza desce o pau em vários intelectuais brasileiros: Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto DaMatta. Sobre até para Florestan Fernandes e para alguns mais contemporâneos, como Marcelo Neri. Em seu furor desconstrutivista que só parece reconhecer sem muitas ressalvas a obra de Max Weber e do sociólogo canadense Charles Taylor, Jessé Souza acaba por soar arrogante, como se fosse o único cientista político sério e verdadeiro no Brasil. É também curioso notar como alguém que procura entender o Brasil, e, justamente, mostrar como somos intelectualmente dominados, acaba por se escorar em dois intelectuais oriundos do estrangeiro para erigir sua argumentação.

Um outro ponto que merece atenção, e que vai no mesmo sentido, é o tom apocalíptico de seu discurso. Pessoalmente, não aprecio discursos meio paranoicos do tipo “tudo que você sabe até agora está errado”. É importante deixar claro que Jessé Souza não carrega o Santo Graal.

Quanto ao estilo do texto, é patente o esforço do autor para se fazer entender por seus leitores. Mesmo tratando de um tema complexo, difícil mesmo, Jessé assume uma posição de tentar escrever para ser lido, e numa das raras manifestações desse tipo em ensaios e textos acadêmicos, pede desculpas de antemão aos seus leitores se não se fizer compreender. Nem sempre é fácil. Em especial nas passagens sobre Weber, o texto fica meio turvo e é difícil avançar nas páginas. Mas no geral, o texto flui bem. Jessé consegue realizar a difusão de seu trabalho junto ao público leigo, através de uma boa estruturação de capítulos e de um manejo adequado da linguagem, sem grande perda de densidade científica e sem soar tatibitate. É, de fato, um trabalho árduo. Comparando com as duas últimas leituras que tivemos no grupo, pode-se dizer que, no que diz respeito a difusão do conhecimento, o trabalho de Jessé Souza em ‘A tolice da inteligência brasileira’ é melhor que o realizado por Márcia Tiburi (‘Como conversar com um fascista’) e pior do que o realizado por Jorge Caldeira (‘Nem céu, nem inferno’).

No mais, o livro é realmente um achado. Mais do que apresentar uma teoria nova, seu grande mérito é abrir um campo de possibilidades vasto para repensar o Brasil, e também para nos repensarmos a nós mesmos.

Uma das coisas interessantes que ele apresenta é o mito da fundação de São Paulo. Existe toda uma tradição teórica brasileira, capitaneada por Sérgio Buarque de Holanda, que dá contorno míticos à fundação do Estado. Os bandeirantes, centro desse mito, são muitas das vezes pintados como uma ‘legião de empreendedores’, quando na maior parte das vezes são o contrário: quase nômades, e com um modo de pensar econômico tão preocupado com o aqui-agora que querer ver neles o proto-industrial paulista do século vinte soa bastante absurdo. No entanto, este mito está lá, assemelhado ao mito do homem de mentalidade protestante das treze colônias norte-americanas: um empreendedor, um homem em quem se pode confiar, um homem honesto. É curioso observar que esse imaginário reproduz o paulista como um antibrasileiro. Em oposição a essa descrição do paulista, temos uma tradição intelectual que pinta o brasileiro como um homem preguiçoso, um homem em quem não se pode confiar, um homem corrupto.

Passei boa parte da vida sem saber quem foram os bandeirantes, o que fizeram e por que foram importantes para o Brasil. No Rio, nossos mitos são outros. A invenção da ‘Cidade Maravilhosa’ (e a crença que temos nisso) é capaz de ofuscar todo o restante do país e fazer com que olhemos apenas para o nosso umbigo. Mas São Paulo é outra coisa.

A criação de São Paulo como um anti-Brasil, ou do paulista como um anti-brasileiro, ainda nos dias de hoje repercute. Não é uma coincidência que quem hoje esteja na linha de frente do movimento golpista seja a FIESP, a Federação das Indústrias de São Paulo. É a crença no mito de que São Paulo é a locomotiva do país e de que ele irá redimir o Brasil de toda essa corrupção: é isso (dentre outras coisas) que alimenta o golpe. A elite paulista, tanto em sua versão aristocrata-latifundiária quanto em sua versão burguesa pós-industrial, se crê como esteio da moralidade brasileira, calcada em valores de uma ética protestante norte-americana. Ainda que essa moralidade protestante não dependa de uma prática religiosa (mesmo com a bancada evangélica tocando o terror no Congresso), é essa moralidade que vai ganhando os corações e mentes de uma elite e de uma classe média, e que vai sendo irradiada principalmente para o Centro-Sul brasileiro.

Voltando aos bandeirantes, sempre soube pouco sobre eles. Mas conversando com amigos paulistas, parece que esse personagem histórico transformado em herói mítico (através da vida escolar e da transmissão oral) reforça uma visão positiva dos valores paulistas. Vale notar que o bandeirante mítico é apenas paulista, quando na verdade as entradas e bandeiras aconteceram em várias partes do Brasil.

O que importa disso tudo, para a discussão do livro do Jessé, é a percepção de que não é o mito que gera o sucesso. Não é porque havia um bandeirante com características percebidas como positivas que São Paulo ‘deu certo’, em termos econômicos. Não. É o contrário. É justamente porque São Paulo ‘deu certo’ que se criou esse mito de ser o paulista o descendente de um povo de ideal nobre e corajoso que desbravou nossos sertões.

O que Jessé Souza aponta é que essa construção do mito tem sido utilizada em sentido invertido para o Brasil. Justamente porque ‘não demos certo’, ou para dizer melhor, justamente porque fomos oprimidos, é que nos colocaram essa pecha de sermos um povo exótico, pouco confiável, personalista e corrupto. Essa história da carochinha nos foi empurrada goela abaixo e, deglutida e regurgitada por nossa própria intelectualidade tupiniquim, aparece como uma verdade quase inabalável, de certa forma mítica, e que está incrustada em cada um de nós. É a crença no mito de que não somos bons que nos torna piores. Somos aquela criança a quem costumeiramente se chama de ‘burra’ e que, precisamente por isso, não aprende nada. De alguma maneira, toda profecia é autorrealizável.

Esse fenômeno também se reflete no modo como a ‘ralé brasileira’ (termo cunhado por Jessé Souza para identificar os pobres, excluídos e marginalizados no Brasil) se perpetua. De acordo com Jessé, a perpetuação da ralé se dá, principalmente, através de um processo de socialização de seus membros que, desde a infância, não têm inculcados os valores que os tornariam aptos e competitivos no mundo moderno. Um dos exemplos que mais chama a atenção é a falta de capacidade de concentração. Jessé argumenta que valores que temos como ‘naturais’, como por exemplo, pensar no futuro e se concentrar em alguma atividade, são na verdade construções sociais. É muito duro pensar que a ‘ralé brasileira’ evolui pouco ou quase nada não porque lhe falte o mínimo, mas porque lhe falta o que vem antes disso. Muitos de nós (que estamos nas classes médias ou nas mais privilegiadas) sequer conseguimos atribuir dignidade a essas pessoas que não carregam consigo os atributos elementares que os façam pertencer a uma sociedade de consumo. Esse não reconhecimento da dignidade do outro acaba por explicar muita coisa, e é o cerne da discussão sobre os processos de opressão e de truculência que desumaniza pessoas o tempo todo. Nesse ponto, a contribuição de Jessé (assim como a de Márcia Tiburi em ‘Como conversar com um fascista’) é fundamental para um entendimento mais claro dos fenômenos sociológicos brasileiros.

Não só dos fenômenos sociológicos, mas também dos pessoais. É muito interessante a forma como, a partir das questões apontadas por Jessé, a gente é capaz de se perceber não apenas como ator social, mas como indivíduo mesmo (na verdade, essa diferença acaba ficando bastante imprecisa). A busca por dignidade, e depois por autenticidade, parecem mesmo espelhar o sentido da vida que tentamos construir. Quem é que não quer construir uma trajetória própria, autêntica? Penso que a busca por autenticidade na vida contemporânea deve ser o que restou da busca por uma vida de honras e glórias, a tônica da vida pré-moderna.

Voltando à ralé brasileira, que aliás dá título ao mais novo livro do autor (e que tenho muita vontade de ler), Jessé fala um pouco da divisão dessa ralé. Em sua argumentação, ele menciona como, entre os mais desfavorecidos, existe uma divisão grande entre aqueles que se marginalizam (e, portanto, aceitam estar à margem de um sistema que os oprime) e aqueles que vivem a vida lutando dentro desse sistema opressor, em subempregos e condições precárias de trabalho (e que, portanto, vêm-se a si mesmos como ‘trabalhadores’, e homens honestos). Essa argumentação vai ao encontro de ideias pregressas que eu já tinha (e que não sei se cheguei a colocá-las textualmente alguma vez), de que enxergar as nuances e as complexidades dos fenômenos é coisa de rico. Para quem é mais pobre, a complexidade e a nuance não são uma opção porque a posição binária dos elementos que perpassam a vida das pessoas se coloca como uma linha mortal e inescapável. Nessa lógica, a única forma de não ser percebido pela sociedade como ‘bandido’ é assumir uma posição de ‘anti-bandido’. Ou seja, para quem vive atormentado pelo grande número de marginais à sua volta e para quem se vê assombrado pela perspectiva de ser percebido como marginal o tempo todo, a única possibilidade é a de se colocar frontalmente contra essa forma de ser. Daí decorre que muitos dos que compõem essa tal ‘ralé’ sejam a favor da pena da morte, acham que ‘bandido bom é bandido morto’ e não conseguem pensar em direitos humanos. Para essas pessoas, os direitos humanos acabam soando como uma relativização; mais do que isso, uma transigência com a bandidagem. ‘E se fosse com a sua mãe?’, eles perguntariam. O ponto em que Jessé avança na discussão (em relação às ideias que eu já tinha) é que essa polarização do mundo no seio da ralé entre honestos e bandidos acaba por cindir essa classe social que, preocupada com o outro lado da própria classe, não consegue se perceber enquanto tal. A consciência de classe é um luxo de quem conseguiu superar o binarismo mais elementar. Ou para usar os termos que Jessé utiliza no seu livro, a consciência de classe funciona como um elemento de autenticidade para aqueles que já superaram a fronteira da dignidade. Entendo essa cisão como tão profunda que chego mesmo a pensar que o trabalhador que recebe um salário mínimo possa se identificar mais com uma classe média que o oprime do que com um morador de rua ou um assaltante, posto que ele compartilha (ou supõe compartilhar) com a classe de cima os valores de honestidade e tenacidade, e que estes lhe são valores muito caros, uma vez que eles lhe protegem de serem percebidos como marginais.

É por isso que a ascensão de Jair Bolsonaro é tão perigosa. Ela encontra eco nas classes mais favorecidas, que apoiam uma política higienista e de eliminação dos pobres (mas não da pobreza), e também em considerável parte da ralé, que ao apoiar a morte do que percebem como bandidos, marginais e subversivos, se coloca moralmente como não sendo essas coisas. É uma estratégia de defesa. O pobre para se defender de ser bandido precisa ser o anti-bandido, assim como as mulheres para se defenderem de ser putas precisam ser ‘belas, recatadas e do lar’, assim como pretos para se defenderem do racismo precisam ser ‘pretos de alma branca’, e até mesmo como os paulistas para se defenderem de uma carga negativa atribuída à personalidade brasileira precisam se afirmar moralmente como anti-brasileiros.

O último ponto que considero importante mencionar como destaque em “A Tolice da Inteligência Brasileira” é a crítica ao economicismo. Talvez muito de vocês não se deem conta da tolice real que é esse tipo de abordagem, mas ela atualmente funciona como sustentáculo de boa parte da ciência no Brasil. Não digo nem tanto em relação à pesquisa (mestrado e doutorado), mas em relação ao ensino nos cursos superiores de graduação, especialmente na administração e na engenharia de produção. Nesta última, que é a minha área de formação, atuei tanto como aluno e como professor, e, puxando pela memória meu papel e minha experiência nesses dois lados da moeda, posso dizer que é muito difícil, em ambos, furar o bloqueio da corrente economicista que habita o ensino superior.

Em Teoria Geral da Administração, aprendemos que o objetivo de toda empresa é gerar lucro. Essa foi possivelmente a colocação mais axiomática de tudo que aprendi no curso superior. É assim porque sim. O dinheiro como um fim em si mesmo. Todo o resto (marketing, sustentabilidade, promoção da cultura, etc...) é visto como um meio através do qual se pode gerar mais lucro. Em nenhum momento foi discutido que essa concepção faz parte do sistema capitalista, que é o que atualmente temos em vigência, etc, etc, etc... Essas informações são transmitidas aos alunos não como verdades conjunturais e válidas para um sistema econômico específico, mas como uma verdade absoluta.

Consigo me lembrar de dois professores que se dispuseram a apresentar caminhos alternativos para a compreensão do mundo empresarial na graduação em engenharia de produção no CEFET/RJ. Um deles apresentou textos para discussão que iam de Frederick Taylor a Bertrand Russell e que enriqueceram muito a minha formação (Vinicius Cardoso o nome dele). O outro foi o professor José Peixoto, que apresentou perspectivas sobre a formação e utilidade das empresas sob diferentes óticas (técnica, computacional, sociológica, psicológica, etc...). Só. Dois professores. É muito pouco. No mestrado e no doutorado (que realizei na UFF), essa quantidade aumenta consideravelmente, mas a carga de discussão sobre os modelos socioeconômicos vigentes permanece baixa. No mais, nas conversas que tenho com amigos, percebo que isso não é um problema desta ou daquela instituição: é o cenário que temos. Os campos social e ambiental vêm sendo reiteradamente colocados como acessórios, a serviço de um campo econômico que todo mundo aprendeu a manejar. De maneira mais ferramental, faça-se um teste de valor presente líquido ou use-se uma taxa interna de retorno e pronto: resumem-se a esses dois números, unicamente, a decisão total sobre a necessidade de execução de um projeto ou não, seja para reformar um apartamento de quarto-e-sala, seja para construir uma hidrelétrica.

Seguindo na parte do uso das ferramentas, a maioria dos livros utilizados na graduação foi escrito no exterior, e vinha como um enlatado estadunidense até aqui. É verdade que muita coisa mudou nesses últimos dez anos, e temos boa produção teórica para graduação acontecendo no Brasil. Mas essas mudanças se restringem a pequenas adaptações locais, e ninguém parece muito preocupado em apresentar uma teoria crítica ao que vem sendo apresentado nos livros estrangeiros: permanecemos no economicismo.

Um bom exemplo dessa miopia economicista é Donald Trump. Passei boa parte da minha juventude ouvindo que Donaldo Trump, o grande multimilionário, era um homem de sucesso (sempre me posicionei de forma crítica quanto a isso, ressalte-se). Talvez ele até seja se levarmos em conta o quão bom ele é em transformar dólares em mais dólares. Mas quem é o homem por trás do dinheiro, aquele com que ninguém parecia se preocupar? Hoje está claro: trata-se de alguém conservador, xenófobo, misógino, reacionário e retrógrado em todos os sentidos.

Outro exemplo dessa miopia: o investidor. Livros e livros e aulas e mais aulas falando sobre o mercado de ações, o papel do investidor, a racionalidade do investidor, etc. Essa é uma importação de um modelo que não é o nosso. Aqui não discutimos ações na mesa de bar (mais do que há dez anos, é bem verdade), as pessoas não querem correr os riscos do mercado de ações e, em sua maioria, preferem investir em imóveis e viver como rentistas. Não quero que isso seja interpretado como o ‘racismo cultural’ de que tanto fala Jessé Souza, mas isso serve apenas para mostrar que esse ‘investidor’ que aparece nos livros, a pessoa física que vai lá e compra uma ação ordinária de uma empresa é um mito, com muito pouca correspondência no mundo real.

Certa vez, em Cuba, achei numa das raras livrarias de Havana um livro de engenharia de produção. O livro, bem fininho, se chamava ‘Inginiería de la Organización’ ou algo próximo disso. É claro que o comprei. O livro falava dos mesmos conceitos que compõem o corpo teórico da engenharia de produção (com ênfase no estudo de tempos e movimentos) só que do ponto de vista da construção estatal, da eficiência em prol do interesse coletivo, etc. Nessa época eu já não dava mais aulas, o que foi uma pena e um alívio ao mesmo tempo. De fato, usá-lo em sala de aula seria bastante arriscado, e haveria um grave risco de que eu fosse acusado de ‘oferecer material ideológico’ aos meus alunos. Mas e os livros oriundos dos Estados Unidos e mesmo os brasileiros de orientação semelhante? Ninguém percebe que eles também funcionam como veículo de difusão de ideologias, nesse caso, as ideologias do capitalismo?

Essa ideologia capitalista acaba por gerar no Brasil, como apontado por Jessé, um endeusamento do mercado e uma demonização do Estado, que passa a ser percebido como um antro de corrupção e de ineficiência. Nesse sentido, minha tese de doutorado, que estuda o papel dos engenheiros de produção no setor público brasileiro, joga um pouco de luz nessa questão, ao mostrar que o motivo pelo qual muitos desses profissionais optam pelo serviço público tem a ver com os melhores salários e com a estabilidade (alguns até mesmo preferem o setor público por razões ideológicas). Ou seja, a partir disso, é possível perguntar que mercado é este que se vende como tão maravilhoso se aqueles que preferem o Estado fazem essa opção porque veem o mercado como um lugar de baixos salários e relações de trabalho precárias. A magnificência de um mercado impoluto aparece, portanto, como mais um mito.

“A Tolice da inteligência brasileira”, portanto, é uma obra muito importante para que a gente possa se questionar a respeito dos mitos com os quais nos acostumamos. Aqui nesse texto vimos vários: o brasileiro desonesto e corruptível, o arquétipo do bandeirante como o paulista proto-industrial, a crença desse mesmo paulista em si mesmo como o esteio da moralidade (e seu posicionamento como anti-brasileiro), a meritocracia que nega os privilégios das classes mais favorecidas e coloca na ralé a culpa de seus próprios insucessos, o economicismo como único prisma do mundo, o investidor brasileiro, o mercado hipereficiente.

Nesse sentido, a despeito de sua fúria desconstrutivista (que por pouco não chega a soar como destrutiva), Jessé Souza é hábil em nos conduzir a novos modelos de pensamento e de interpretação do mundo, do Brasil e do sistema capitalista, e em fornecer à intelectualidade brasileira e ao público leigo os alicerces de uma teoria que seja capaz de se pensar como verdadeiramente crítica em relação aos modelos interpretativos de que atualmente dispomos.

domingo, 3 de abril de 2016

NEM CÉU, NEM INFERNO – JORGE CALDEIRA
(Abril de 2016)

O livro se divide em 2 partes. Sendo a primeira mais deliciosa de ler, com eventos históricos pouco explorados nas escolas (alô MEC para reformular o currículo das aulas de história), contando de forma clara e ao mesmo tempo cheia de detalhes sobre personagens brasileiros, que, de tão fortes, me emocionei a cada capítulo.

E assim, logo de cara, o livro já nos apresenta um velho índio tupinambá que naquele tempo já sabia mais de economia e sociedade (e tecnologia, pág. 23 – Sobre as drogas medicinais) do que de todos os autores clássicos que Caldeira cita. Contudo, não podemos deixar de lado a sutileza que o autor vai aos poucos nos envolvendo com Aristóteles, Adam Smith, Karl Marx, dentre outros, para contar a “evolução” da economia e da sociedade.

Do segundo personagem ao oitavo, uma aula de história de dar inveja e uma vontade ainda maior de estudar cada uma daquelas pessoas. Novas informações que o próprio autor provoca em notas de rodapés, afirmando que é normal que se confrontem com o que sabemos. A parte sobre que mais me chamou atenção foi sobre o nosso parlamento (pág. 53) “Há 188 anos de eleições de parlamentares e 174 anos de funcionamento regular do Congresso” e conclui: “a prática da democracia está impregnada na sociedade”. A verdade é que nunca havia parado para pensar nisso. E, se por um lado, isso é um fator positivo, quando analiso o cenário atual no Brasil e o que esses mesmos parlamentares, de certo modo, fizeram, por exemplo, com Visconde de Mauá, penso que o autor também poderia ter reservado um capítulo para mostrar como esse poder muitas vezes também pode ser perverso. Assim como os militares, que desde sempre, na nossa história, fazem parte de alguma forma de poder e não devem ser poucos os casos de abuso como com João Cândido. Gostaria de discutir isso no grupo: parlamento e militares.

 A segunda parte do livro (nos capítulos que não são de contexto histórico) é questionável já que são artigos são de 1997 e não mais tem uma relação direta com a nossa realidade. Aquele futuro que ele falava, já chegou (e não avançamos muito nos pontos que ele vislumbrava). Não entendi porque o livro foi publicado em 2015 e não se pensou em uma revisão. De qualquer forma, mais teoria, mais clássicos, mais ideologias e mais informação. E acho que, apesar de discordar (ou questionar) de alguns pontos do autor, o livro como um todo é muito bom, pois é muita informação histórica em apenas 300 páginas.

Sobre o último capítulo, não consegui fazer um link direto com os demais. Como ele não citou nomes, acredito que a crítica sobre a falta de informação venha do IPEA e da gestão do PT (se for do IPEA, podemos escolher o Jessé – presidente do IPEA – como próximo livro, que tem tudo a ver com o acúmulo de riqueza). Mas não quero ficar focada nesse ponto. O ponto mais importante de reflexão que ficou para mim desse capítulo e, sobre o qual gostaria de falar, diz respeito a efetividade da nossa gestão (interno) e o início do fim – esgotamento – do capitalismo (externo).


Se o que ele narra é que ao longo da história sempre fomos tão, ou mais, ricos que as outras nações e por erros cometidos dentro dos ciclos econômicos (ele cita dois momentos), há de se pensar que realmente o nosso problema está muito além da falta de informação transparente.  Sobre o esgotamento de um modelo que, como demostra a pesquisa de Piketty, no atualmente concentra a riqueza do mundo nas mãos de poucos, me lembrou a palestra que assisti há algumas semanas do David Harvey, que diz que o capitalismo cresce em progressão geométrica e isso não tem como ser sustentável. Gostaria de discutir isso no grupo: modelo Brasil e modelo mundo.

sábado, 2 de abril de 2016

“Nem Paulo Prado, Nem Antônio Risério” ou “O Parlamento Diferentão”





Jorge Caldeira reúne em Nem Céu Nem Inferno, 2015, uma série de ensaios muito bem escritos sobre personagens e fatos chave na história do Brasil. Logo no primeiro ensaio, o melhor, na minha opinião — Jean de Léry e a teoria de valor tupinambá — ele mostra a que veio. A partir de documentos nem sempre na corrente principal da narrativa histórica brasileira, ele faz reflexões importantes entre diversos campos do saber. Comparando a visão de valor tupinambá com a de pensadores ocidentais, somos forçados a questionar a glorificação da acumulação e do consumo. E ainda acrescenta o ponto de vista da natureza e de como o ser humano se relaciona com ela, seja julgando-se parte dela, seja dela se servindo vorazmente. A falta de limites consequente à nefasta fusão felicidade=consumo começa a nos cobrar seu preço com o aquecimento global e outras geomodificações neste nosso antropoceno, como tem se chamado a era geológica em que vivemos.

Depois começa a aparecer o tema, que de forma mais ou menos conspícua, se coloca em vários dos ensaios seguintes: O Maravilhoso Parlamento de Pindorama. Caldeira mostra e reitera (entendo que essa iteratividade do tema se deva também ao fato de os ensaios terem sido escritos de maneira independente, e não pensados como livro desde o início) que há tradição democrática no Brasil desde a colônia, comparável à ponta de lança democrática da época, quiçá mais avançada, a vanguarda mesma da democracia tomava corpo na vereança de Campinas ou Jundiaí e suas esferas de cera, Atenas de Péricles reeditada na Serra do Mar. Ironias à parte, ele traz à ordem do dia um questionamento importante sobre nossa noção atual da juventude de nossa democracia. Ele contribui, portanto, para reforçar a máxima de Pedro Malan (quem sabe ele volta), de que ainda não temos certeza sobre nosso passado.

À custa de ocasionalmente minimizar o engessamento do Parlamento na última ditadura militar, e dar um sobrevoo no fechamento deste por Getúlio, o autor exalta a continuidade temporal das legislaturas, e que a maior parte delas chegou ao final de seus mandatos. Sem qualquer dúvida isto deve ser valorizado. Mas o ponto que merece maior valorização é justamente o ponto de inflexão; onde e como o Brasil, com um sistema parlamentar sólido e cujo teor democrático equivalia às grandes repúblicas da época — seja colônia, império ou república — se deixou ultrapassar, em termos de respeito às decisões de seus cidadãos, por nações sem tradição democrática, como Alemanha, que nem país era quando DPII comemorou 30 anos de coroação?

Este ponto, crucial, não fica muito claro no texto, em nenhum dos ensaios. Entendo que ele destaque a solidez parlamentar, mas não dá para mencionar en passant o gritante problema atual de representatividade, que, ainda que de forma alguma seja uma exclusividade nacional, encontra no Brasil expressão gigantesca.

A tradição democrática brasileira talvez tenha ficado na reunião de condomínio, ou seja, um pouco submetida à tradição fascista, de resolver as coisas na porrada, de democraticamente todos votarem e decidirem que tal ou tal pessoa não pode morar ali. Deslocando o ponto de vista, podemos pensar também que as democracias G7 em algum momento impediram o sequestro de seus mecanismos de decisão por poucos; ao invés de procurar identificar no passado uma virada antidemocrática no Brasil, talvez seja o caso de pensarmos onde foi que os cidadãos alemães criaram a necessidade de regras mais democráticas do poder e isso concretamente se implantou. Nossa última janela democrática, 1988, foi o que melhor conseguimos fazer. Queria muito entender melhor a transição democrática e a gestação da Constituição.

Mesmo no G7 a democracia foi crescentemente, desde o fim dos anos 70, sequestrada pelas decisões do dinheiro. O modelo neoliberal entendia que o capital financeiro devia ter pouca ou nenhuma rédea. As decisões políticas são quase sempre favoráveis aos que já têm poder. A indignação contra isso aparece em todo o mundo, e, no entanto, consertar esse viés é marchar contra forças muito poderosas.

Aqui os parlamentares são majoritariamente representantes dos ricos. São também os (poucos) donos dos meios de comunicação, que praticamente escolhem como uma boa parte do povo deve pensar. Isto não é da noite para o dia, óbvio. A ameaça comunista, por exemplo, é bradada há muito tempo, parece que há sempre um fantasma do plano Cohen sobre nossas cabeças. A ameaça anticomunista é muito pior, pois apenas reforça os dispositivos de perpetuação da pobreza, da desigualdade e da exclusão.

Considerando que este sequestro se estende à própria criação das regras do jogo, muitas vezes me pergunto se é legítimo respeitar essas regras. Em geral me respondo que sim, que a ruptura com as regras é sempre algo muito arriscado, que às vezes é melhor mudar de dentro. Mas nunca me convenço inteiramente, pois as regras são injustas. Elas são moldadas para beneficiar um punhado de pessoas. Lembro sempre de passagens de Vigiar e Punir onde o Foucault reflete sobre a função das regras e códigos, sempre cheio de brechas, que agem como cristalizadores dos dispositivos. Longitudinalmente, contudo, parece haver algum progresso sustentado, se pensarmos na pouca plausibilidade que um golpe militar tem hoje, ou nas risadas que alguém pode ouvir se pregar o retorno ao Antigo Regime. Outra pergunta que me faço é qual seria a cara do Antigo Regime no mundo ocidental atualmente.

Depois dessas digressões sobre o elogio ao Parlamento, me lembrei que o livro não é só isso. Tem Feijó, tem Mauá, tem Piketty. Tem João Cândido. Quando fiz o meu treinamento militar (que por acaso foi na Brigada Paraquedista), percebi um ambiente de muita pressão psicológica sobre os recrutas, e alguns dos tenentes (oficiais), com falas algo defensivas, se esforçando para deixar claro para os oficiais em formação, médicos como eu, que não havia castigo físico.  Isso no Exército em 2006. Voltando 100 anos, dá para imaginar o clima dentro de um dreadnought. Confesso também que jamais tinha sabido tanto detalhe do fim da história de João Cândido. Senti uma tristeza profunda, semelhante à que senti no fim de Canudos. Este é o sistema de privilégios em que ainda vivemos e cujo questionamento incomoda setores muito poderosos.

É muito louvável que haja um livro destinado ao público em geral que reapresente figuras históricas nem sempre vistas demoradamente, como José Bonifácio e Diogo Feijó. Outras eu nem conhecia mesmo, como o padre Léry, Cairu ou o empreendedor diferentão do ferro em São Paulo cujo nome me fugiu. A questão do empreendedorismo se coloca também em vários dos ensaios. Aparece aqui também a promiscuidade entre Estado e os indivíduos poderosos, mas isso não merece muita reflexão do autor.

No ensaio sobre o Capital no Século XXI, vulgo “o Piketty”, alguns pontos me chamaram a atenção. Primeiro, ele mesmo, o Piketty, diz, se não no livro, em entrevistas, palestras e artigos, que o Brasil não entrou no estudo dele e de seus colegas por falta de transparência de dados. Apenas depois da publicação do livro é que dados de renda dos cidadãos foram liberados pela receita federal (um decreto de transparência do Governo Dilma, verdade seja dita), ainda de forma limitada, mas suficiente para permitir que esteja em curso uma pesquisa semelhante à dele na Universidade de Brasília.  Isso ele disse quando esteve aqui e depois, no exterior.

Esta falta de dados não é exclusiva do Brasil. Ele diz que em muitos países, mesmo na OCDE, detalhes sobre rendimento de capital são praticamente impossíveis de se obter. Os balanços de empresas são muito vagos e gerais e não dão informação concreta do quanto se ganha e quanto vai para quem. Para analisar, por exemplo, o rendimento de investimentos privados nos EUA, ele utiliza dados das fundações controladoras das Universidades, que são as poucas obrigadas a serem transparentes.

Recomendo muito o livro do Piketty. Ao contrário do que Caldeira diz, Piketty não ignora a questão ambiental. Realmente ela não é foco de grande atenção, é mencionada marginalmente, mas devemos levar em conta que o livro tem dados econômicos desde o século XVII, e que a preocupação com a finitude de recursos naturais é bem mais recente. O Capital no Século XXI é um livro excelente e com muitas impressões, dados e ideias colocadas ao longo de suas quase mil páginas. Por isso provoca no leitor muitas reflexões, e gera também uma frustração em não ver ali o Brasil bem retratado. Por outro lado, fico imaginando a vergonha de ver nossa desigualdade posta em números mais detalhados que um simples índice Gini. Mas Caldeira, ao comentar o livro, fala apenas de um recorte. No início do ensaio ele promete colocar intuições, mas elas não são tão interessantes assim. Ele vem com um olhar longitudinal da economia, mas mais um sobrevoo. Passa ao largo da grande questão do livro do Piketty, que é a progressão da concentração de renda baseada na diferença entre a remuneração do capital e o crescimento econômico. Ele pega um livro riquíssimo e reflete apenas sobre um detalhe. Uma pena.

Jorge Caldeira não é um escritor brilhante com ideias escrotas como Paulo Prado, e nem um intelectual brilhante e excelente escritor como Antônio Risério, mas tem um livro brilhantemente confeccionado com dados de pesquisas sérias e cuidadosas, sem medo de se colocar. Joga luz em detalhes que ainda não tínhamos visto. Entra para a fila dos que questionam Sergio Buarque de Holanda e seus pares. Contribui para a malânica falta de consenso sobre o passado. E, principalmente, realça a tradição de respeito ao Parlamento como extensão do voto popular na política brasileira.