Instado a ler
o livro “Nem céu, nem inferno”, de Jorge Caldeira, fui advertido de que ali
poderia haver um autor coxinha. Isso significa que algum momento do livro ele
poderia se apresentar como conservador, reacionário, anti-direitos humanos, que
é o estofo semântico que a palavra ‘coxinha’ carrega nos dias atuais.
Jacques
Derrida, o filósofo da desconstrução, em seu livro “Pensar em não ver”
argumenta que o olho humano tem basicamente duas funções: ver e chorar. Vamos
nos concentrar na primeira. Ver é uma coisa que fazemos o tempo todo, até mesmo
quando fechamos os olhos. Mas poucas vezes nos questionamos ou prestamos
atenção no que significa o ato de ver. Para além de toda uma explicação que se
baseia num modelo anatomo-mecanicista, (e que inclui a retina, a córnea, o
cristalino, os cones e os bastonetes), existe uma explicação, e mais do que
isso, uma discussão do que significa o ato de ver no campo da filosofia.
A pequena
palavra ‘ver’ está imbricada em uma rede sígnica que engloba uma miríade de
processos, ou de outros atos: pensar, entender, apreender, captar, etc... Dois
desses processos ou atos levantados por Derrida serão particularmente caros à
nossa análise.
O primeiro
deles é “pré-ver”. Pré-ver, prever, antever, ver o que vem, ver vir. De acordo
com Derrida, quase todo ato de ver é precedido de da pré-visão. Vê-se o que
está vindo. A função da pré-visão é proteger o ser humano daquilo que vem. Se
você vê vir a pedra rolando a montanha ou um leão andando na sua direção, existe
tempo para a fuga. Pré-ver é, portanto, um ato de proteção.
Nesse sentido,
Derrida postula que o acontecimento é aquilo que irrompe sem que se o possa ver
vir. Portanto, não pode acontecer o que se vê vindo na linha do horizonte, na
horizontal, na linha dos olhos. O acontecimento, dessa maneira, é tudo aquilo
que se vê sem antevisão e que, por isso, chega por outros caminhos que não o
horizontal: por debaixo, por detrás, pelos lados. Só acontece o que não se vê
vir, só pode ser nominado como acontecimento aquilo que é inesperado.
O
acontecimento, nos termos de Derrida, é, portanto, raríssimo. Nesse sentido,
acho que do que temos lido até então, um dos poucos livros que surgiu no Grupo
de Estudos de Botafogo como acontecimento é o do Celso Furtado (“Formação
Econômica do Brasil”). O do Antonio Risério (“A cidade no Brasil”) também
chegou a mim carregado de acontecimentalidade, mas isso aconteceu antes, por
outros caminhos.
Entretanto, o
que Derrida não fala no capítulo do livro a que tive acesso (talvez ele fale em
outros capítulos ou em outros livros) é que embora haja muita antevisão e
pré-visão nas coisas do mundo, muitas vezes não existe uma correspondência
entre o que se pré-vê e o que se vê. A pedra que se vê vir rolando a montanha
pode ser só um monte de feno; o leão que se vê correndo para si pode ser um
gato, um camelo ou até mesmo um carro.
Portanto,
apesar da pré-visão, Jorge Caldeira não é exatamente um coxinha no textos que
compõem “Nem céu, nem inferno”. Taxá-lo de coxinha é absorver o
mais-do-que-batido discurso binário e binarizante do nós-contra-eles, do
bem-contra-o-mal.
Entendo que
uma das maiores virtudes do Grupo de Estudos de Botafogo é justamente a
desconstrução do pensamento binário em relação aos problemas do Brasil e a
aceitação das nuances que compõem o que somos. Esse é um esforço diário, mas se
livrar do binarismo seja talvez tão difícil quanto se livrar dos outros ‘ismos’
incrustados em nós, como o machismo e o racismo: talvez só exista mesmo como
utopia. É claro que devemos perseguir isso sempre, mas a noção binária do mundo
existe mesmo em quem se propõe a desconstruí-lo. Penso, por exemplo, no livro
“Como conversar com um fascista”, da Márcia Tiburi, que foi lido e discutido no
último encontro. Até mesmo ela, com seu discurso desbinarizante, incorre na
falácia da divisão do mundo entre ‘nós’ e ‘os fascistas’. Mesmo num discurso
que se propõe a desconstruir os modelos do eu (na função do mesmo) e do outro
(em referência a esse ‘mesmo’), mesmo nesse discurso que joga para lá e para cá
essas conceituações teóricas na busca da construção de algo realmente novo ou
explicativo, mesmo nele, a lógica inescapável do ‘against’, dos contrários, dos
opostos, dos yin-yang da vida ou de como se quiser chama-los, está presente.
O livro de
Jorge Caldeira está estruturado sob a forma de pequenos capítulos, de caráter
ensaístico, sobre o processo de formação da sociedade brasileira, seja a partir
de personalidades históricas (na primeira parte do livro), seja a partir de algumas
ideias que o autor desenvolve.
A
familiaridade que temos com o texto de Caldeira é muito da forma. Penso que se
um dia nos dedicássemos a publicar o que temos escrito para os encontros do
Grupo de Estudos de Botafogo, teríamos um material que não seria essencialmente
diferente de “Nem céu, nem inferno”, no que diz respeito à apresentação. Textos
curtos (mas nem tanto), expositivos, calcados em fatos, mas com uma verve
argumentativa que vai destilando algumas opiniões de maneira muito apropriada e
sustentada. Para usar o termo que tem se tornado popular na internet, o que
Jorge Caldeira faz é puramente ‘textão’; coletânea de textão; ou, mais
precisamente, uma ótima coletânea de textão.
A beleza do
texto de Caldeira, e mais do que isso, sua força argumentativa, está centrada
não na busca de uma neutralidade discursiva (coisa que Celso Furtado parece
tentar fazer em “Formação Econômica do Brasil”, sem sucesso), nem na negação do
binarismo (como Márcia Tiburi tenta fazer em “Como conversar com um fascista”,
também sem sucesso), tampouco na adoção de uma postura ideológica clara e
enviesada para um dado espectro (como faz Paulo Prado em “Retrato do Brasil”).
A opção
discursiva adotada por Jorge Caldeira é aquela que assume a existência dos
eixos binários de pensamento, entende suas nuances, e apresenta suas ideias e
seus modelos conceituais sempre em justaposição ao modo como essas mesmas
ideias e modelo conceituais são trabalhados num discurso típico de direita
(neoliberal conservador) e de esquerda (marxista-leninista).
Ainda que
possa parecer um pouco cansativa, a opção de colocar o modo como as ideias que ele
apresenta foram trabalhadas/entendidas pela direita e pela esquerda serve, principalmente,
como um atestado de honestidade, de idoneidade do escritor. Isto não significa
que o autor se proponha a adotar uma postura centrista em tudo que escreve. Não
acho realmente que Jorge Caldeira seja alguém equidistante das extremidades
esquerda e direita no espectro político. Essa equidistância não apenas é
desnecessária, como é também irrelevante. O que importa é que quem quer que se
atreva a ler os textos de Caldeira saberá como é o seu posicionamento, para que
lado a balança pende numa questão ou noutra. Na minha opinião, essa idoneidade
é o mínimo que se deveria esperar no jornalismo, nos ensaios, ou em qualquer
coisa que pretenda se levar a sério, mas não é o que vem sendo observado.
Enquanto a
pré-visão serve à nossa análise no que diz respeito à forma e às opções
discursivo-argumentativas de Jorge Caldeira, um outro elemento do ato de ver,
conforme as ideias de Derrida, servirá como balizadora para algumas observações
sobre o conteúdo de “Nem céu, nem inferno”: a cegueira.
Para Derrida,
a cegueira é tão importante quanto a visão. Se pensarmos a focalização de um
objeto como uma escolha deliberada, e se pensarmos que a cada vez que se
escolhe algo é porque, necessariamente está a se abdicar de alguma outra coisa,
então, a escolha do que se vê pode ser entendida, nos mesmos moldes, como a
escolha do que não se vê. Mais do que isso, e esticando um pouco mais a corda
da abstração, se é possível dizer que, para cada coisa que se vê, existe algo
que não se vê, é possível dizer que só vemos umas coisas porque não vemos
outras. Ou seja, só vemos porque não vemos. Portanto, a cegueira é parte
constitutiva e necessária da visão, ou seja: a visão é composta de cegueira.
Apesar de não
ter um domínio mais aprofundado de teoria historiográfica, sei que a questão do
que permanece na história como História é uma questão de fundamental
relevância. Essa é, precisamente, a discussão do sistema visão/cegueira.
Na História,
existe um olhar. Ou para citarmos o termo que Derrida utiliza, existe um ver.
Só que a condição para que se possa ver alguma coisa é, justamente, a de haver
pontos cegos.
Jorge Caldeira
exercita a busca por uma nova visão da História do Brasil ao jogar a luz para
outros lugares e para dar a ver outros fenômenos. Esse exercício é bastante
similar ao que foi realizado por Paulo César de Araújo, no seu livro “Eu não
sou cachorro, não”, em que resgata a história da música brega brasileira dos
anos 1960-70, um período que musicalmente ficou marcado na História de forma
inequívoca pela MPB.
Um dos
principais argumentos de Caldeira, e que aparece em alguns de seus ‘textões’ é
o de que, ao contrário do que diz a maior parte dos livros sobre a História do
Brasil, somos uma nação com uma forte tradição democrática.
Para Caldeira,
essa tradição pode ser evidenciada na prática do voto, presente na história
brasileira mais remota, na primeira fase colonial, quando o que se entendia por
Brasil era um território de sertões adentro, dominado por selvagens nativos e
degredados de além-mar. Mesmo nessas condições, em que a macropolítica era
gerida pelas capitanias hereditárias vinculadas de forma direta à Coroa
Portuguesa, na micropolítica as coisas funcionavam à base do voto, com eleições
para deputados locais, com regras próprias e com sucessões que, na maior parte
das vezes, ocorriam de forma ordeira. A tradição de eleição de deputados no
Brasil, para resolução das questões que não demandavam o apoio da metrópole (seja
pela alta urgência ou pela baixa gravidade) estende-se desde o Brasil Colônia,
atravessa a fase imperial e desemboca no parlamento brasileiro tal como hoje o
conhecemos. O argumento de Caldeira, bastante interessante, é o de entendermos
porquê, na história que fabricaram sobre nós, e depois naquela que nós mesmos
aprendemos a escrever, sempre escamoteamos a experiência democrática brasileira
para algum lugar abscôndito, obscuro, como se não quiséssemos, não pudéssemos
ou mesmo não devêssemos entrar em contato com ela. A questão de Caldeira, em
última análise, é: por que nos recusamos a nos reconhecer como um povo
democrático?
É claro que o autor
sabe e entende (e apresenta) os argumentos que fazem de nós brasileiros um país
pouco democrático: o coronelismo, as fraudes eleitorais, o Poder Moderador
durante o tempo de sua vigência, a herança das ditaduras (tanto o Estado Novo
quanto a que decorreu do golpe miliar de 1964). Tudo isso ele sabe, entende e
pondera à luz da infinidade de historiadores que sempre discutiram essas
questões. Mas por que não o outro lado? Por que não contar a história dos
pelouros, as urnas eleitorais antigas? Por que não contar que, mesmo no último
período ditatorial da história brasileira, não foi possível prescindir de uma
instituição parlamentar?
Em um dos
capítulos mais interessantes do livro, “História do voto no Brasil”, Jorge Caldeira
assume o tom didático que precisa ser utilizado para contar em minúcias algo
sobre o qual pouca gente falou. E vai discorrendo, período por período, como
era o sistema de votação: o que estava em jogo, quem podia votar, quem podia
ser votado, qual era o tempo de mandato, quais eram as regras de funcionamento
das eleições etc.
Fico me
perguntando, um pouco depois de ter lido o livro, qual o motivo desse
escamoteamento sistemático de nossa tradição democrática?
No momento, me
vêm à tona dois pensamentos. O primeiro deles é a já velha conhecida síndrome
de vira-latas brasileira. Existe uma dificuldade muito grande em nos
reconhecermos como bons em alguma coisa, e, no meu entendimento, essa síndrome
cruza as foronteiras do cotidiano e chega sem muitas dificuldades ao mundo
acadêmico. Fazemos muito, mas não sabemos reconhecer, até para nós mesmos, o
quão bons somos em alguma coisa. Mas, de alguma forma, acredito que isso seja
um ponto pacífico e que não apresenta grande novidade.
O meu segundo
pensamento surge na verdade como uma hipótese. Acho que temos uma História que,
de algum modo, se entende como propositiva. Ainda que tenha um pouco a ver com
o complexo de vira-latas já mencionado, acho que o fato de termos uma História
que olha sempre para o que temos como falta, como lacuna, em vez de olhar para
o que temos de concreto, de realizado, funciona como um estímulo para que
possamos ter mais e mais coisas. Nesse sentido é que acho que a História
funciona de forma propositiva, como uma mola propulsora de nossos desejos
mesmo.
Vou tentar dar
um exemplo. Sempre olhamos para a nossa falta de democracia, e escrevemos sobre
ela, e chegamos mesmo a acreditar piamente nisso, de que a democracia é algo
sempre a nos faltar. Temos a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, ainda em
vigor, que é uma das constituições mais ‘garantistas’ em relação ao direito dos
trabalhadores no mundo. Temos a Constituição de 1988, também em vigor, que é
também uma das constituições mais democráticas e mais garantidoras de direitos
humanos no mundo, aí incluído o direito à saúde por meio do Sistema Único de
Saúde – o SUS. Mas não olhamos para essas coisas. Colocamos essas conquistas em
segundo plano. O que colocamos em evidência é o quanto a CLT está sempre em
ameaça, quais são as coisas em relação ao trabalho (especialmente em suas novas
modalidades) que ela não garante, etc. Em relação à Constituição, o que
colocamos em evidência é a de que ela é costumeiramente desrespeitada, de que
há emendas constitucionais que são ruins, etc. Através desse processo, enxergar
nossas lacunas nos faz ir sempre além, e buscar sempre mais.
Penso que
somos um povo inquieto. E acho que ter uma História que aponte o que nos falta
é uma forma de fazer com que corramos atrás dessas faltas. A falta alimenta o desejo.
Nossas realizações vão gerando novas faltas, e por isso, mais desejo. Desejos e
faltas que são sempre muito expostos na História do Brasil; realizações que
poucas vezes são expostas, a não ser como incitadoras de um novo desejo: por
mais democracia, por mais direitos.
Entretanto, se
formos nos entendendo cada vez mais como esse queijo suíço, cheio de buracos e
de lacunas, acho que é preciso e que é importante que possa haver autores e
historiadores que, na contramão dessa tendência, venham e apontem dizendo: ‘olhem,
aqui temos queijo.’
No jogo do ter
e do faltar que compõe a percepção do que somos, é mesmo necessário de vez em
quando que haja alguém que nos dê um afago, nos faça um cafuné, e diga: ‘olha,
como somos bons nisso’. Serve como um alento à percepção de que somos sempre
medíocres, anda que essa percepção de mediocridade, de alguma maneira, nos mova
à frente.
A optar por
esse novo caminho, por essa nova via, Jorge Caldeira, ao dar a ver algumas
coisas, coloca outros no espaço da cegueira. É normal, e, na verdade, é ótimo.
Em tudo que se vê, sempre haverá pontos cegos. E a gente vai construindo nosso
entendimento do mundo através do que vemos e do que não vemos.
O que Jorge
Caldeira faz, jogando a luz para outro lugar, é nos dar a incrível oportunidade
de colocar no espaço da visão aquilo que sistematicamente não nos vem sendo
mostrado. Mas, por outro lado, especialmente considerando o momento político em
que vivemos, penso que é ainda mais incrível que nos seja dada a oportunidade
de colocar no espaço da cegueira justamente aquilo que nos torna quase cegos de
tanto ver.
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