sábado, 2 de abril de 2016

Vendo o Brasil (ver, vender ou vendar?)



Instado a ler o livro “Nem céu, nem inferno”, de Jorge Caldeira, fui advertido de que ali poderia haver um autor coxinha. Isso significa que algum momento do livro ele poderia se apresentar como conservador, reacionário, anti-direitos humanos, que é o estofo semântico que a palavra ‘coxinha’ carrega nos dias atuais.

Jacques Derrida, o filósofo da desconstrução, em seu livro “Pensar em não ver” argumenta que o olho humano tem basicamente duas funções: ver e chorar. Vamos nos concentrar na primeira. Ver é uma coisa que fazemos o tempo todo, até mesmo quando fechamos os olhos. Mas poucas vezes nos questionamos ou prestamos atenção no que significa o ato de ver. Para além de toda uma explicação que se baseia num modelo anatomo-mecanicista, (e que inclui a retina, a córnea, o cristalino, os cones e os bastonetes), existe uma explicação, e mais do que isso, uma discussão do que significa o ato de ver no campo da filosofia.

A pequena palavra ‘ver’ está imbricada em uma rede sígnica que engloba uma miríade de processos, ou de outros atos: pensar, entender, apreender, captar, etc... Dois desses processos ou atos levantados por Derrida serão particularmente caros à nossa análise.

O primeiro deles é “pré-ver”. Pré-ver, prever, antever, ver o que vem, ver vir. De acordo com Derrida, quase todo ato de ver é precedido de da pré-visão. Vê-se o que está vindo. A função da pré-visão é proteger o ser humano daquilo que vem. Se você vê vir a pedra rolando a montanha ou um leão andando na sua direção, existe tempo para a fuga. Pré-ver é, portanto, um ato de proteção.

Nesse sentido, Derrida postula que o acontecimento é aquilo que irrompe sem que se o possa ver vir. Portanto, não pode acontecer o que se vê vindo na linha do horizonte, na horizontal, na linha dos olhos. O acontecimento, dessa maneira, é tudo aquilo que se vê sem antevisão e que, por isso, chega por outros caminhos que não o horizontal: por debaixo, por detrás, pelos lados. Só acontece o que não se vê vir, só pode ser nominado como acontecimento aquilo que é inesperado.

O acontecimento, nos termos de Derrida, é, portanto, raríssimo. Nesse sentido, acho que do que temos lido até então, um dos poucos livros que surgiu no Grupo de Estudos de Botafogo como acontecimento é o do Celso Furtado (“Formação Econômica do Brasil”). O do Antonio Risério (“A cidade no Brasil”) também chegou a mim carregado de acontecimentalidade, mas isso aconteceu antes, por outros caminhos.

Entretanto, o que Derrida não fala no capítulo do livro a que tive acesso (talvez ele fale em outros capítulos ou em outros livros) é que embora haja muita antevisão e pré-visão nas coisas do mundo, muitas vezes não existe uma correspondência entre o que se pré-vê e o que se vê. A pedra que se vê vir rolando a montanha pode ser só um monte de feno; o leão que se vê correndo para si pode ser um gato, um camelo ou até mesmo um carro.

Portanto, apesar da pré-visão, Jorge Caldeira não é exatamente um coxinha no textos que compõem “Nem céu, nem inferno”. Taxá-lo de coxinha é absorver o mais-do-que-batido discurso binário e binarizante do nós-contra-eles, do bem-contra-o-mal.

Entendo que uma das maiores virtudes do Grupo de Estudos de Botafogo é justamente a desconstrução do pensamento binário em relação aos problemas do Brasil e a aceitação das nuances que compõem o que somos. Esse é um esforço diário, mas se livrar do binarismo seja talvez tão difícil quanto se livrar dos outros ‘ismos’ incrustados em nós, como o machismo e o racismo: talvez só exista mesmo como utopia. É claro que devemos perseguir isso sempre, mas a noção binária do mundo existe mesmo em quem se propõe a desconstruí-lo. Penso, por exemplo, no livro “Como conversar com um fascista”, da Márcia Tiburi, que foi lido e discutido no último encontro. Até mesmo ela, com seu discurso desbinarizante, incorre na falácia da divisão do mundo entre ‘nós’ e ‘os fascistas’. Mesmo num discurso que se propõe a desconstruir os modelos do eu (na função do mesmo) e do outro (em referência a esse ‘mesmo’), mesmo nesse discurso que joga para lá e para cá essas conceituações teóricas na busca da construção de algo realmente novo ou explicativo, mesmo nele, a lógica inescapável do ‘against’, dos contrários, dos opostos, dos yin-yang da vida ou de como se quiser chama-los, está presente.

O livro de Jorge Caldeira está estruturado sob a forma de pequenos capítulos, de caráter ensaístico, sobre o processo de formação da sociedade brasileira, seja a partir de personalidades históricas (na primeira parte do livro), seja a partir de algumas ideias que o autor desenvolve.

A familiaridade que temos com o texto de Caldeira é muito da forma. Penso que se um dia nos dedicássemos a publicar o que temos escrito para os encontros do Grupo de Estudos de Botafogo, teríamos um material que não seria essencialmente diferente de “Nem céu, nem inferno”, no que diz respeito à apresentação. Textos curtos (mas nem tanto), expositivos, calcados em fatos, mas com uma verve argumentativa que vai destilando algumas opiniões de maneira muito apropriada e sustentada. Para usar o termo que tem se tornado popular na internet, o que Jorge Caldeira faz é puramente ‘textão’; coletânea de textão; ou, mais precisamente, uma ótima coletânea de textão.

A beleza do texto de Caldeira, e mais do que isso, sua força argumentativa, está centrada não na busca de uma neutralidade discursiva (coisa que Celso Furtado parece tentar fazer em “Formação Econômica do Brasil”, sem sucesso), nem na negação do binarismo (como Márcia Tiburi tenta fazer em “Como conversar com um fascista”, também sem sucesso), tampouco na adoção de uma postura ideológica clara e enviesada para um dado espectro (como faz Paulo Prado em “Retrato do Brasil”).

A opção discursiva adotada por Jorge Caldeira é aquela que assume a existência dos eixos binários de pensamento, entende suas nuances, e apresenta suas ideias e seus modelos conceituais sempre em justaposição ao modo como essas mesmas ideias e modelo conceituais são trabalhados num discurso típico de direita (neoliberal conservador) e de esquerda (marxista-leninista).

Ainda que possa parecer um pouco cansativa, a opção de colocar o modo como as ideias que ele apresenta foram trabalhadas/entendidas pela direita e pela esquerda serve, principalmente, como um atestado de honestidade, de idoneidade do escritor. Isto não significa que o autor se proponha a adotar uma postura centrista em tudo que escreve. Não acho realmente que Jorge Caldeira seja alguém equidistante das extremidades esquerda e direita no espectro político. Essa equidistância não apenas é desnecessária, como é também irrelevante. O que importa é que quem quer que se atreva a ler os textos de Caldeira saberá como é o seu posicionamento, para que lado a balança pende numa questão ou noutra. Na minha opinião, essa idoneidade é o mínimo que se deveria esperar no jornalismo, nos ensaios, ou em qualquer coisa que pretenda se levar a sério, mas não é o que vem sendo observado.

Enquanto a pré-visão serve à nossa análise no que diz respeito à forma e às opções discursivo-argumentativas de Jorge Caldeira, um outro elemento do ato de ver, conforme as ideias de Derrida, servirá como balizadora para algumas observações sobre o conteúdo de “Nem céu, nem inferno”: a cegueira.

Para Derrida, a cegueira é tão importante quanto a visão. Se pensarmos a focalização de um objeto como uma escolha deliberada, e se pensarmos que a cada vez que se escolhe algo é porque, necessariamente está a se abdicar de alguma outra coisa, então, a escolha do que se vê pode ser entendida, nos mesmos moldes, como a escolha do que não se vê. Mais do que isso, e esticando um pouco mais a corda da abstração, se é possível dizer que, para cada coisa que se vê, existe algo que não se vê, é possível dizer que só vemos umas coisas porque não vemos outras. Ou seja, só vemos porque não vemos. Portanto, a cegueira é parte constitutiva e necessária da visão, ou seja: a visão é composta de cegueira.

Apesar de não ter um domínio mais aprofundado de teoria historiográfica, sei que a questão do que permanece na história como História é uma questão de fundamental relevância. Essa é, precisamente, a discussão do sistema visão/cegueira.

Na História, existe um olhar. Ou para citarmos o termo que Derrida utiliza, existe um ver. Só que a condição para que se possa ver alguma coisa é, justamente, a de haver pontos cegos.

Jorge Caldeira exercita a busca por uma nova visão da História do Brasil ao jogar a luz para outros lugares e para dar a ver outros fenômenos. Esse exercício é bastante similar ao que foi realizado por Paulo César de Araújo, no seu livro “Eu não sou cachorro, não”, em que resgata a história da música brega brasileira dos anos 1960-70, um período que musicalmente ficou marcado na História de forma inequívoca pela MPB.

Um dos principais argumentos de Caldeira, e que aparece em alguns de seus ‘textões’ é o de que, ao contrário do que diz a maior parte dos livros sobre a História do Brasil, somos uma nação com uma forte tradição democrática.

Para Caldeira, essa tradição pode ser evidenciada na prática do voto, presente na história brasileira mais remota, na primeira fase colonial, quando o que se entendia por Brasil era um território de sertões adentro, dominado por selvagens nativos e degredados de além-mar. Mesmo nessas condições, em que a macropolítica era gerida pelas capitanias hereditárias vinculadas de forma direta à Coroa Portuguesa, na micropolítica as coisas funcionavam à base do voto, com eleições para deputados locais, com regras próprias e com sucessões que, na maior parte das vezes, ocorriam de forma ordeira. A tradição de eleição de deputados no Brasil, para resolução das questões que não demandavam o apoio da metrópole (seja pela alta urgência ou pela baixa gravidade) estende-se desde o Brasil Colônia, atravessa a fase imperial e desemboca no parlamento brasileiro tal como hoje o conhecemos. O argumento de Caldeira, bastante interessante, é o de entendermos porquê, na história que fabricaram sobre nós, e depois naquela que nós mesmos aprendemos a escrever, sempre escamoteamos a experiência democrática brasileira para algum lugar abscôndito, obscuro, como se não quiséssemos, não pudéssemos ou mesmo não devêssemos entrar em contato com ela. A questão de Caldeira, em última análise, é: por que nos recusamos a nos reconhecer como um povo democrático?

É claro que o autor sabe e entende (e apresenta) os argumentos que fazem de nós brasileiros um país pouco democrático: o coronelismo, as fraudes eleitorais, o Poder Moderador durante o tempo de sua vigência, a herança das ditaduras (tanto o Estado Novo quanto a que decorreu do golpe miliar de 1964). Tudo isso ele sabe, entende e pondera à luz da infinidade de historiadores que sempre discutiram essas questões. Mas por que não o outro lado? Por que não contar a história dos pelouros, as urnas eleitorais antigas? Por que não contar que, mesmo no último período ditatorial da história brasileira, não foi possível prescindir de uma instituição parlamentar?

Em um dos capítulos mais interessantes do livro, “História do voto no Brasil”, Jorge Caldeira assume o tom didático que precisa ser utilizado para contar em minúcias algo sobre o qual pouca gente falou. E vai discorrendo, período por período, como era o sistema de votação: o que estava em jogo, quem podia votar, quem podia ser votado, qual era o tempo de mandato, quais eram as regras de funcionamento das eleições etc.

Fico me perguntando, um pouco depois de ter lido o livro, qual o motivo desse escamoteamento sistemático de nossa tradição democrática?

No momento, me vêm à tona dois pensamentos. O primeiro deles é a já velha conhecida síndrome de vira-latas brasileira. Existe uma dificuldade muito grande em nos reconhecermos como bons em alguma coisa, e, no meu entendimento, essa síndrome cruza as foronteiras do cotidiano e chega sem muitas dificuldades ao mundo acadêmico. Fazemos muito, mas não sabemos reconhecer, até para nós mesmos, o quão bons somos em alguma coisa. Mas, de alguma forma, acredito que isso seja um ponto pacífico e que não apresenta grande novidade.

O meu segundo pensamento surge na verdade como uma hipótese. Acho que temos uma História que, de algum modo, se entende como propositiva. Ainda que tenha um pouco a ver com o complexo de vira-latas já mencionado, acho que o fato de termos uma História que olha sempre para o que temos como falta, como lacuna, em vez de olhar para o que temos de concreto, de realizado, funciona como um estímulo para que possamos ter mais e mais coisas. Nesse sentido é que acho que a História funciona de forma propositiva, como uma mola propulsora de nossos desejos mesmo.

Vou tentar dar um exemplo. Sempre olhamos para a nossa falta de democracia, e escrevemos sobre ela, e chegamos mesmo a acreditar piamente nisso, de que a democracia é algo sempre a nos faltar. Temos a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, ainda em vigor, que é uma das constituições mais ‘garantistas’ em relação ao direito dos trabalhadores no mundo. Temos a Constituição de 1988, também em vigor, que é também uma das constituições mais democráticas e mais garantidoras de direitos humanos no mundo, aí incluído o direito à saúde por meio do Sistema Único de Saúde – o SUS. Mas não olhamos para essas coisas. Colocamos essas conquistas em segundo plano. O que colocamos em evidência é o quanto a CLT está sempre em ameaça, quais são as coisas em relação ao trabalho (especialmente em suas novas modalidades) que ela não garante, etc. Em relação à Constituição, o que colocamos em evidência é a de que ela é costumeiramente desrespeitada, de que há emendas constitucionais que são ruins, etc. Através desse processo, enxergar nossas lacunas nos faz ir sempre além, e buscar sempre mais.

Penso que somos um povo inquieto. E acho que ter uma História que aponte o que nos falta é uma forma de fazer com que corramos atrás dessas faltas. A falta alimenta o desejo. Nossas realizações vão gerando novas faltas, e por isso, mais desejo. Desejos e faltas que são sempre muito expostos na História do Brasil; realizações que poucas vezes são expostas, a não ser como incitadoras de um novo desejo: por mais democracia, por mais direitos.

Entretanto, se formos nos entendendo cada vez mais como esse queijo suíço, cheio de buracos e de lacunas, acho que é preciso e que é importante que possa haver autores e historiadores que, na contramão dessa tendência, venham e apontem dizendo: ‘olhem, aqui temos queijo.’

No jogo do ter e do faltar que compõe a percepção do que somos, é mesmo necessário de vez em quando que haja alguém que nos dê um afago, nos faça um cafuné, e diga: ‘olha, como somos bons nisso’. Serve como um alento à percepção de que somos sempre medíocres, anda que essa percepção de mediocridade, de alguma maneira, nos mova à frente.

A optar por esse novo caminho, por essa nova via, Jorge Caldeira, ao dar a ver algumas coisas, coloca outros no espaço da cegueira. É normal, e, na verdade, é ótimo. Em tudo que se vê, sempre haverá pontos cegos. E a gente vai construindo nosso entendimento do mundo através do que vemos e do que não vemos.

O que Jorge Caldeira faz, jogando a luz para outro lugar, é nos dar a incrível oportunidade de colocar no espaço da visão aquilo que sistematicamente não nos vem sendo mostrado. Mas, por outro lado, especialmente considerando o momento político em que vivemos, penso que é ainda mais incrível que nos seja dada a oportunidade de colocar no espaço da cegueira justamente aquilo que nos torna quase cegos de tanto ver.

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