sábado, 2 de abril de 2016

“Nem Paulo Prado, Nem Antônio Risério” ou “O Parlamento Diferentão”





Jorge Caldeira reúne em Nem Céu Nem Inferno, 2015, uma série de ensaios muito bem escritos sobre personagens e fatos chave na história do Brasil. Logo no primeiro ensaio, o melhor, na minha opinião — Jean de Léry e a teoria de valor tupinambá — ele mostra a que veio. A partir de documentos nem sempre na corrente principal da narrativa histórica brasileira, ele faz reflexões importantes entre diversos campos do saber. Comparando a visão de valor tupinambá com a de pensadores ocidentais, somos forçados a questionar a glorificação da acumulação e do consumo. E ainda acrescenta o ponto de vista da natureza e de como o ser humano se relaciona com ela, seja julgando-se parte dela, seja dela se servindo vorazmente. A falta de limites consequente à nefasta fusão felicidade=consumo começa a nos cobrar seu preço com o aquecimento global e outras geomodificações neste nosso antropoceno, como tem se chamado a era geológica em que vivemos.

Depois começa a aparecer o tema, que de forma mais ou menos conspícua, se coloca em vários dos ensaios seguintes: O Maravilhoso Parlamento de Pindorama. Caldeira mostra e reitera (entendo que essa iteratividade do tema se deva também ao fato de os ensaios terem sido escritos de maneira independente, e não pensados como livro desde o início) que há tradição democrática no Brasil desde a colônia, comparável à ponta de lança democrática da época, quiçá mais avançada, a vanguarda mesma da democracia tomava corpo na vereança de Campinas ou Jundiaí e suas esferas de cera, Atenas de Péricles reeditada na Serra do Mar. Ironias à parte, ele traz à ordem do dia um questionamento importante sobre nossa noção atual da juventude de nossa democracia. Ele contribui, portanto, para reforçar a máxima de Pedro Malan (quem sabe ele volta), de que ainda não temos certeza sobre nosso passado.

À custa de ocasionalmente minimizar o engessamento do Parlamento na última ditadura militar, e dar um sobrevoo no fechamento deste por Getúlio, o autor exalta a continuidade temporal das legislaturas, e que a maior parte delas chegou ao final de seus mandatos. Sem qualquer dúvida isto deve ser valorizado. Mas o ponto que merece maior valorização é justamente o ponto de inflexão; onde e como o Brasil, com um sistema parlamentar sólido e cujo teor democrático equivalia às grandes repúblicas da época — seja colônia, império ou república — se deixou ultrapassar, em termos de respeito às decisões de seus cidadãos, por nações sem tradição democrática, como Alemanha, que nem país era quando DPII comemorou 30 anos de coroação?

Este ponto, crucial, não fica muito claro no texto, em nenhum dos ensaios. Entendo que ele destaque a solidez parlamentar, mas não dá para mencionar en passant o gritante problema atual de representatividade, que, ainda que de forma alguma seja uma exclusividade nacional, encontra no Brasil expressão gigantesca.

A tradição democrática brasileira talvez tenha ficado na reunião de condomínio, ou seja, um pouco submetida à tradição fascista, de resolver as coisas na porrada, de democraticamente todos votarem e decidirem que tal ou tal pessoa não pode morar ali. Deslocando o ponto de vista, podemos pensar também que as democracias G7 em algum momento impediram o sequestro de seus mecanismos de decisão por poucos; ao invés de procurar identificar no passado uma virada antidemocrática no Brasil, talvez seja o caso de pensarmos onde foi que os cidadãos alemães criaram a necessidade de regras mais democráticas do poder e isso concretamente se implantou. Nossa última janela democrática, 1988, foi o que melhor conseguimos fazer. Queria muito entender melhor a transição democrática e a gestação da Constituição.

Mesmo no G7 a democracia foi crescentemente, desde o fim dos anos 70, sequestrada pelas decisões do dinheiro. O modelo neoliberal entendia que o capital financeiro devia ter pouca ou nenhuma rédea. As decisões políticas são quase sempre favoráveis aos que já têm poder. A indignação contra isso aparece em todo o mundo, e, no entanto, consertar esse viés é marchar contra forças muito poderosas.

Aqui os parlamentares são majoritariamente representantes dos ricos. São também os (poucos) donos dos meios de comunicação, que praticamente escolhem como uma boa parte do povo deve pensar. Isto não é da noite para o dia, óbvio. A ameaça comunista, por exemplo, é bradada há muito tempo, parece que há sempre um fantasma do plano Cohen sobre nossas cabeças. A ameaça anticomunista é muito pior, pois apenas reforça os dispositivos de perpetuação da pobreza, da desigualdade e da exclusão.

Considerando que este sequestro se estende à própria criação das regras do jogo, muitas vezes me pergunto se é legítimo respeitar essas regras. Em geral me respondo que sim, que a ruptura com as regras é sempre algo muito arriscado, que às vezes é melhor mudar de dentro. Mas nunca me convenço inteiramente, pois as regras são injustas. Elas são moldadas para beneficiar um punhado de pessoas. Lembro sempre de passagens de Vigiar e Punir onde o Foucault reflete sobre a função das regras e códigos, sempre cheio de brechas, que agem como cristalizadores dos dispositivos. Longitudinalmente, contudo, parece haver algum progresso sustentado, se pensarmos na pouca plausibilidade que um golpe militar tem hoje, ou nas risadas que alguém pode ouvir se pregar o retorno ao Antigo Regime. Outra pergunta que me faço é qual seria a cara do Antigo Regime no mundo ocidental atualmente.

Depois dessas digressões sobre o elogio ao Parlamento, me lembrei que o livro não é só isso. Tem Feijó, tem Mauá, tem Piketty. Tem João Cândido. Quando fiz o meu treinamento militar (que por acaso foi na Brigada Paraquedista), percebi um ambiente de muita pressão psicológica sobre os recrutas, e alguns dos tenentes (oficiais), com falas algo defensivas, se esforçando para deixar claro para os oficiais em formação, médicos como eu, que não havia castigo físico.  Isso no Exército em 2006. Voltando 100 anos, dá para imaginar o clima dentro de um dreadnought. Confesso também que jamais tinha sabido tanto detalhe do fim da história de João Cândido. Senti uma tristeza profunda, semelhante à que senti no fim de Canudos. Este é o sistema de privilégios em que ainda vivemos e cujo questionamento incomoda setores muito poderosos.

É muito louvável que haja um livro destinado ao público em geral que reapresente figuras históricas nem sempre vistas demoradamente, como José Bonifácio e Diogo Feijó. Outras eu nem conhecia mesmo, como o padre Léry, Cairu ou o empreendedor diferentão do ferro em São Paulo cujo nome me fugiu. A questão do empreendedorismo se coloca também em vários dos ensaios. Aparece aqui também a promiscuidade entre Estado e os indivíduos poderosos, mas isso não merece muita reflexão do autor.

No ensaio sobre o Capital no Século XXI, vulgo “o Piketty”, alguns pontos me chamaram a atenção. Primeiro, ele mesmo, o Piketty, diz, se não no livro, em entrevistas, palestras e artigos, que o Brasil não entrou no estudo dele e de seus colegas por falta de transparência de dados. Apenas depois da publicação do livro é que dados de renda dos cidadãos foram liberados pela receita federal (um decreto de transparência do Governo Dilma, verdade seja dita), ainda de forma limitada, mas suficiente para permitir que esteja em curso uma pesquisa semelhante à dele na Universidade de Brasília.  Isso ele disse quando esteve aqui e depois, no exterior.

Esta falta de dados não é exclusiva do Brasil. Ele diz que em muitos países, mesmo na OCDE, detalhes sobre rendimento de capital são praticamente impossíveis de se obter. Os balanços de empresas são muito vagos e gerais e não dão informação concreta do quanto se ganha e quanto vai para quem. Para analisar, por exemplo, o rendimento de investimentos privados nos EUA, ele utiliza dados das fundações controladoras das Universidades, que são as poucas obrigadas a serem transparentes.

Recomendo muito o livro do Piketty. Ao contrário do que Caldeira diz, Piketty não ignora a questão ambiental. Realmente ela não é foco de grande atenção, é mencionada marginalmente, mas devemos levar em conta que o livro tem dados econômicos desde o século XVII, e que a preocupação com a finitude de recursos naturais é bem mais recente. O Capital no Século XXI é um livro excelente e com muitas impressões, dados e ideias colocadas ao longo de suas quase mil páginas. Por isso provoca no leitor muitas reflexões, e gera também uma frustração em não ver ali o Brasil bem retratado. Por outro lado, fico imaginando a vergonha de ver nossa desigualdade posta em números mais detalhados que um simples índice Gini. Mas Caldeira, ao comentar o livro, fala apenas de um recorte. No início do ensaio ele promete colocar intuições, mas elas não são tão interessantes assim. Ele vem com um olhar longitudinal da economia, mas mais um sobrevoo. Passa ao largo da grande questão do livro do Piketty, que é a progressão da concentração de renda baseada na diferença entre a remuneração do capital e o crescimento econômico. Ele pega um livro riquíssimo e reflete apenas sobre um detalhe. Uma pena.

Jorge Caldeira não é um escritor brilhante com ideias escrotas como Paulo Prado, e nem um intelectual brilhante e excelente escritor como Antônio Risério, mas tem um livro brilhantemente confeccionado com dados de pesquisas sérias e cuidadosas, sem medo de se colocar. Joga luz em detalhes que ainda não tínhamos visto. Entra para a fila dos que questionam Sergio Buarque de Holanda e seus pares. Contribui para a malânica falta de consenso sobre o passado. E, principalmente, realça a tradição de respeito ao Parlamento como extensão do voto popular na política brasileira.



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