quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Pobreza, Excremento e Ruína

O livro é excelente. Se Risério não é reconhecido atualmente como intérprete do Brasil, brevemente o será. As grandes costuras, janelas e pontes que constrói entre arquitetura, política, urbanismo e história enriquecem o escopo do título, que aparece inicialmente restrito ao que se chama de cidade. Num olhar mais próximo, nenhuma análise da cidade pode ter seu escopo restrito. A meu ver, temos um novo Paulo Prado, desta vez baiano, quem sabe já paulista.

Paulo Prado, contudo, certamente não empregaria a palavra “enquanto” de maneira inadequada com tanta frequência (como “projeto reformador pombalino enquanto programa ideológico e enquanto forma). Também não lançaria mão de verbos inexistentes, como “inexistir”, e outros vocábulos estranhos, como massivo e massivamente.

Contendo tantas opiniões e citações, o ensaio carece de números e responsabilidade acadêmica. Torna-se, então, outro retrato impressionista. Mas um retrato atual. Publicado há poucos anos, o livro nos fala mais perto. Não é preciso se imaginar um quatrocentão da SP de 1920 para compreender o contexto do livro. Nós estamos nele, em cada página.

O livro é vivo. O ensaio dá vida a cada uma das cidades que descreve, ou de seus modelos. O passeio pelos períodos e projetos, autores, arquitetos e países é delicioso.
As considerações políticas são de grande confluência com as minhas, como quando ele diz que o liberalismo econômico impede a inserção da população operária e o seu atendimento por políticas governamentais de moradia. O liberalismo econômico leva à plutocracia (governo do 1% para o 1%). “Para os pobres, higiene. Para os ricos, Higienópolis”.

Em vários capítulos aparece a expressão “segregação socioespacial”, de que gostei muito. O ponto não ganhou um capítulo específico, foi explicado e desenvolvido dispersamente, mas mais concentradamente numa seção do capítulo 5 e no último capítulo, mais autoral ainda que os anteriores, assim como o último capítulo da Formação Econômica do Brasil (Celso Furtado), e, também como ele, mais propositivo.

Apesar do estilo paulopradiano, às vezes Risério tem momentos freyreanos. Seu elogio irrestrito à capacidade brasileira de se misturar chega a ser irritante de tão míope. Brasileiro gosta de imigrante branco e rico. “O brasileiro gosta de se misturar”, assim, dito simplesmente, sem atentar para as nuances, chega a ser uma falácia. Há um nazista xenófobo dentro de cada coração conservador tupiniquim. Imigrantes nordestinos sofrem o diabo quando vêm para o sudeste, muitos migram de volta, especialmente no momento atual, em que o sudeste deixou de ser a grande ponta de crescimento econômico do país. Imigrantes africanos e haitianos (esses africanos da América) sofrem ainda mais, correndo risco de serem assassinados. O que ele chama de know-how de convivência, que seria a nossa mensagem planetária, não se sustenta quando o imigrante é pobre ou preto. Ou quase pretos de tão pobres.

O acolhimento brasileiro aos imigrantes, ricos e brancos, vem com uma fascinação. Vemos o gringo clássico, o turista americano ou europeu em Copacabana, como uma pessoa a princípio interessante, quiçá superior, ou uma possibilidade de ascensão social interpaíses, de ganhar dinheiro. Isto nada mais é do que um braço do nosso complexo de vira-latas, que considera tudo o que vem do país como brega, o que nos transformou, durante muito tempo, em “uma nação de copistas”. Hoje temos, a bem da verdade, uma dimensão que não nos permite ser meros copistas. Produtos, ideias, técnicas, projetos têm de ser desenvolvidos aqui. Não dá mais para importar tudo ou quase tudo. Risério aponta, e eu concordo, que este talvez seja o mais importante legado do positivismo nacional. Uma preocupação com o desenvolvimento vinda de dentro, dos médicos e engenheiros, após o fim da exclusividade bacharelista.

A discussão da segregação socioespacial, em escala geopolítica e local, me fez pensar na opulência da Europa e dos Estados Unidos, e dos condomínios fechados, ou dos bairros ricos. Enquanto houver muito ricos e muito pobres, vai haver violência e discriminação. Um detalhe importante que ele cita é a baixa fertilidade dos brancos ricos, em sua reação “com posturas etnocêntricas, preconceituosas e mesmo agressivamente racistas, ao tempo em que se reproduzem pouco e envelhecem a olhos vistos”. Acabou a pureza de raça.

O tema da desigualdade social é central. Estamos atingindo níveis de desigualdade de patrimônio e renda similares aos anteriores à Primeira Guerra. A violência é gerada pela desigualdade. Os ricos não sabem, não querem governar para os pobres. O Estado serve aos ricos sempre, com raríssimas exceções consistentes (alguns países nos anos 1950-80).

Outro ponto divergente que tenho com o pensamento de Risério é a particularidade do brasileiro em ver seu tempo glorioso no futuro. Eu não vejo assim. Risério dá sua opinião, não cita pesquisas que comprovem ou refutem isto. Portanto, a minha opinião é que o Brasil adulto está coalhado de “antigamente é que era bom”. Como nação não achamos nosso ponto glorioso no passado, mas percebemos que, se não foi glorioso, agora está pior. Há sempre alguém “acabando com este país”. E quem diz isso nunca diz que está bom, só que está piorando. Uma sociedade capaz de construir uma manchete que critica uma ciclovia porque vai tirar a vista do mar a partir dos carros não me parece muito com o olhar no futuro.


De volta às convergências, no último capítulo — meu favorito — Risério coloca de maneira sintética, clara e eloquente os principais problemas das cidades de hoje e do caminho que elas seguem. E a segregação está no cerne desse problema. A guerra urbana está instalada e estamos dando respostas tardias e não só insuficientes, mas contraproducentes. Assim são as soluções violentas propostas pela maioria. O projeto da UPP naufragou, sem a continuidade da criação de projetos de lazer, educação, saneamento básico (e avançado). A cidade, como ele mesmo fala em um capítulo anterior, é forçada a resolver localmente problemas globais. A desigualdade social é um problema crônico e mundial, e muito grave no Brasil, mas a solução é cobrada na ponta, na cidade. Não há como resolver a questão da violência sem lidar com o problema da desigualdade, e esta, por sua vez cede muito pouco às ações tímidas até o momento postas em prática pela sequência de governos federais brasileiros desde a redemocratização. Para abordar de modo eficaz os verdadeiros problemas brasileiros, cicatrizar a ferida na alma que ela nos traz, e que supura e fede, é necessário contrariar interesses dos ricos e poderosos. 
A leitura do livro A cidade no Brasil ocorreu durante a minha viagem de férias para Holanda e Bélgica. Por coincidência uma das cidades citadas no livro é Amsterdam, lugar onde passei a maior parte do tempo. Um certo dia parei em um dos canais da cidade para observar o mapa e pude compreender aquilo que o autor descrevia. Depois pensei no Rio, minha cidade natal. E, que ao longo dos últimos anos, ou talvez décadas, esteja passando por aquilo que Risério chama atenção logo nas primeiras páginas “crise urbana brasileira” e em seguida o autor nos provoca “(...) ou promovemos a transformação das estruturas fundiárias de nossas cidades, ou elas, as cidades, irão se encalacrar de vez, multiplicando seus absurdos (...), obrigação de quem quer que se dedique a pensar o Brasil (...) em especial à juventude”.

Entender o desenvolvimento das cidades é tão importante quanto entender o desenvolvimento da sociedade. Uma não existe sem a outra.

Algumas passagens me chamaram atenção. Indico abaixo pontos para reflexão (até pág. 100 e anexo):

1.     Risério aponta a Igreja como um dos autores de fracasso para o desenvolvimento das cidades “A Igreja Católica combatia o lucro” e Lisboa e Madri, ao logo do século XVII declinavam, enquanto outros centros europeus floresceram e se afirmaram.
2.     Outra passagem é que nos primórdios a América foi pensada como a possibilidade de construção de uma Nova Europa e que havia dois caminhos para materializar tal projeto. Contudo “o Brasil foi criado não para transformar ou transcender, mas para reproduzir Portugal”.
3.     Cidades renascentistas x barrocas.
4.     A discordância do autor com Sérgio Buarque, em Raízes do Brasil, sobre a ocupação do litoral x ocupação do interior e também sobre a comparação hispânica e a portuguesa no novo mundo.
5.     A segregação espacial, montada na estratificação social, não existiu desde sempre, de forma tão aguçada, no Brasil. Na cidade barroco-escravista, senhores e escravos conviviam o mesmo espaço central citadino.

6.     Me chamou atenção, no Anexo, o posicionamento do autor com relação ao “Projeto Amazônico”.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Cidade: (des)encantos

Vista aérea de Belo Horizonte

Aos 17 anos, ao achar que tinha repetido a matéria de Física I na faculdade, meu pai me deu um livro: ‘O Jogo da Amarelinha’, do Julio Cortázar. Embora a repetência não tenha de fato ocorrido, aquele foi um evento marcante. Ler ‘O Jogo da Amarelinha’ foi uma experiência de tal arrebatamento, de tal encantamento, que mudou completamete a minha forma de enxergar o mundo, de pensar a literatura, de me entender. Mais do que isso, ‘O Jogo da Amarelinha’ foi o cartão de visitas para que eu descobrisse Julio Cortázar: hoje minha biblioteca pessoal tem cerca de 20 livros dele. Ou seja, salvo algumas poucas coisas não traduzidas e outras, também poucas, que me escaparam ao longo do caminho, posso dizer sem muitos floreios que passei os últimos dez anos da minha vida imerso numa atmosfera cortazariana: essa experiência literária e existencial é indissociável do que sou hoje.

Em 2012, numa Primavera dos Livros (feira de pequenas editoras aqui no Rio, que costuma rolar no início da primavera no Museu da República), parei no stand da editora 34. ‘A cidade no Brasil’ aparecia com certo destaque porque era um lançamento. Olhei o livro e, após breve hesitação, decidi comprá-lo. Comprei pela capa, confesso, que por sinal, é mesmo muito bonita: uma padronagem assimétrica em preto em branco, convidativa. Na esteira das indicações e das leituras impositivas e semi-obrigatórias, fui deixando o livro meio de lado. ‘A cidade no Brasil’ dormiu por uns dois anos na minha estante. Um dia, desobrigado de tanto ler o que era de certa maneira imperativo, decidi assumir o risco de encarar as quase quatrocentas páginas em letras pequeninas do texto de Antonio Risério. E aí, dez anos depois (portanto, aos 27), o mesmo arrebatamento, o mesmo encanto, o mesmo sentimento de espelho, de ter um duplo, de se encontrar indubitável nas linhas escritas por outra pessoa.

‘A cidade no Brasil’, então, além de me apesentar ao autor, Antonio Risério, inaugura na minha vida um novo ciclo: o dos ensaios. Este foi o primeiro livro de não-ficção, ensaístico, que me propus a ler a sério. Dessa forma, após dez anos de literatura cortazariana, que se esgotou porque findou a obra do Cortázar e porque meu interesse foi se deslocando, começa um novo ciclo, capitaneado por Antonio Risério, e que vai me levar não sei exatamente aonde, mas que com certeza já me trouxe até este ponto em que me encontro, no Grupo de Estudos de Botafogo, lendo e produzindo não-ficção. O arrebatamento provocado pela ‘Cidade no Brasil’ já me fez ler outros dois livros do Risério, o belíssimo ensaio ‘Oriki Orixá’, em que ele traduz poemas do iorubá para o português e um livro de entrevistas com ele da série ‘Encontros’, que sempre traz ótimas entrevistas com intelectuais brasileiros. Mas já estou montando meu plantel rumo à obra semi-completa dele com livros esgotadíssimos comprados a peso de ouro na Estante Virtual. O encanto que senti com Cortázar, e que sinto agora com Risério, acho que só senti também, em menor grau, com Lima Barreto; mas isso já é outra história.

De certa forma, é ruim estar apaixonado. A visão ofuscada, quase enceguecida que apresento neste momento em que ora escrevo deturpa um olhar mais crítico que eu pudesse ter em relação à ‘Cidade no Brasil’, faz com que eu realmente não consiga enxergar seus defeitos, seus pontos fracos. A visão desapaixonada e alheia que tive para com o Celso Furtado no texto que escrevi para o último encontro no grupo é o que, de alguma maneira, me permitiu construir, sem falsa modéstia, um texto audacioso e com um acento de acinte àquele que é considerado um dos maiores economistas do Brasil.

Foi positiva, de qualquer modo, a quebra de paradigma proporcionada por um texto certeiro, que expunha sem melindres o racismo de Celso Furtado, para aqueles que tinham dele uma visão romântica, maniqueísta, ou ainda, para os portadores de uma visão que, embora percebesse seus defeitos, era capaz de contextualizá-la de forma redentora porque o altar respeitoso no qual o colocaram foi erigido de maneira sólida, concreta.

Nesse sentido, entendo que caiba a mim um papel mais passivo; devido ao meu bloqueio, é a minha vez de ouvir, sou eu que preciso ser desconstruído, sou eu que preciso ser levado para ver coisas que não estou vendo.

É bom que os olhares sejam múltiplos, afinal. É importante que pensemos de forma diferente, e que tenhamos pontos de partida diferentes para que as visões sobre um mesmo assunto se possam enriquecer. Isso acontece não apenas com os textos que postamos aqui, mas também com as cidades. Para ser um pouco mais específico, com a cidade no Brasil.

A nós citadinos não nos é dada a oportunidade de nos vermos a partir do lado de fora. Só alguém que vem de um meio não-urbano é capaz de criticar a cidade como entidade. Portanto, no que concerne à vida urbana, não podemos ter uma visão alheia, desapaixonada. Estamos todos imersos, mergulhados na cidade.

Podemos, contudo, pensar a cidade não como entidade, mas como singularidade: a nossa cidade, aquela na qual vivemos, em que habitamos. E uma das formas pelas quais isso pode ser feito é através da comparação. Consigo pensar melhor o Rio de Janeiro quando olho para Niterói, para São Paulo, para Brasília. Consigo ver o que deu certo, o que deu errado, quais são nossas semelhanças e diferenças.

Consigo pensar melhor a cidade no Brasil quando vejo e percebo as cidades no Brasil. Risério, de certa forma, faz isso no seu livro. A construção do conceito da cidade brasileira é feita por uma espécie de somatório empírico: cada uma das cidades (ao menos as maiores) é visitada, comentada, estudada. A partir dessa coleção de experiências e da construção desses ‘casos’ da cidade brasileira, que são não apenas teóricos, mas vivenciais (a impressão que temos é que Risério esteve em quase todas as cidades da qual fala), o livro se desenrola.

As cidades brasileiras existem nos planos objetivo e subjetivo. Se pudermos, ainda que por hipótese, destrinchar essas duas faces da cidade, podemos colocar do lado objetivo da cidade tudo aquilo que é sólido, que constitui a cidade construída: as ruas, a ‘grelha’ (ou seja, a maneira pela qual as ruas estão dispostas no espaço), os prédios, os parques, os monumentos. A dimensão subjetiva tem a ver com o uso que as pessoas fazem da cidade, ou seja, as trocas, as relações entre as pessoas, a construção de uma indentidade urbana vinculada de forma específica a uma determinada cidade, etc.

Subjetivamente, temos cidades muito diferentes. Ser paulistano é muito diferente de ser manauara, que por sua vez é muito diferente de ser niteroiense. As trocas subjetivas em cada uma dessas cidades são completamente diferentes entre si.

Mas se fizermos um esforço (que nem sempre é possível) para nos atermos a uma cidade construída, erigida, podemos perceber que, salvo alguns espaços bem delimitados, como o bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, o Pelourinho, em Savador, ou a cidade velha de Olinda, as cidades não possuem grandes diferenças arquitetônicas e urbanísticas entre si.

As grandes metrópoles brasileiras são todas muito parecidas. Isso se deve muito ao fato de boa parte delas, ainda que tenham nascido sob a forma de pequenos vilarejos em um passado colonial, se constituírem como núcleos urbanos apenas durante o século XX, o grande século da urbanização brasileira. Ainda que muitas delas já tivessem atravessado o século XVIII e o XIX como cidades efetivas, como o Rio de Janeiro e Recife, por exemplo, foi no século XX que essas cidades tomaram a ‘cara’ que têm hoje. Foi neste século que a cidade cresceu para os lados, ocupando áreas periurbanas que que eram utilizadas como agricultura ou pastagens, e para cima, num processo de verticalização que tem sua vertente mais óbvia na ereção de prédios e arranha-céus, mas que também pode ser observada na ocupação dos morros e encostas (Rio de Janeiro) e na construção de helipontos (São Paulo).

O grande ‘boom’ de urbanização do século XX se, por um lado, trouxe inovações estéticas e arquitetônicas que contribuíram para essa diferenciação subjetiva inter-cidades (a cidade de Brasília, o Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro, o MAC em Niterói, o vão livre do MASP em São Paulo), por outro lado, deu às cidades brasileiras todas um aspecto muito parecido, revelando a pobreza da arquitetura e do urbanismo produzidos no Brasil, que parecem só ter espaço para superstars.

É claro que é importante termos arquitetos e urbanistas como Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi e Lúcio Costa (podemos falar até do ilustre paisagista Burle Marx também). Mas duas coisas são importantes de serem observadas: a primeira é que eles estão mortos. A impressão de quem está de fora do que tem rolado na arquitetura (o meu caso) é a de que o Brasil, que surfou na vanguarda arquitetônica do século XX e que, de certa maneira, a produziu, viu morrer a sua geração de ouro e não foi capaz de inventar nada de novo a partir disso. Para onde foram os arquitetos?

A segunda é que, para além dos superstars, o arquiteto médio brasileiro parece ser muito pouco criativo. Por isso, andar no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, não é muito diferente de andar em um bairro central da cidade de São Paulo, que não é muito diferente de percorrer as ruas do centro de Belo Horizonte (exceto pela grelha), que não é muito diferente de percorrer o bairro do Batel, em Curitiba. É claro que paira sobre todos eles uma urbanidade que é a mesma, posto que construídos no mesmo tempo histórico. Mas não precisava ser tudo tão parecido. Nesses lugares, a subjetividade é construída a partir de outras coisas no fluxo urbano, que não têm necessariamente a ver com o modo e o tipo da maioria das construções. A subjetividade urbana se cria à revelia da arquitetura e do urbanismo médios brasileiros.

É importante colocar uma ressalva, talvez duas: a culpa não é só dos arquitetos. Falando desse modo ‘duro’, a impressão que se tem é a de que arquitetos e urbanistas não foram capazes de construir criativamente as cidades brasileiras no século XX. Isso é apenas em parte verdade. Mas o outro lado da moeda é que existem dois imperativos que freiam a atividade arquitetônica no Brasil, e que estão relacionados entre si.

O primeiro deles é o imperativo do mercado. A lógica capitalista prevê um certo grau de padronização, ou melhor, um certo fordismo na distribuição dos lotes de terra às corporações imobiliárias e na construção dos empreendimentos. Esta lógica, de maximização do lucro, acarreta na pobreza dos projetos por duas vias: pouco investimento direto na contratação dos arquitetos e dos escritórios de arquitetura, e a necessidade de maximização da quantidade de unidades a serem produzidas e vendidas. A inovação custa caro.

O segundo imperativo, que tem a ver com o primeiro é: as pessoas, que ocuparão os espaços, querem mesmo projetos criativos? Elas valorizam a invenção, a criatividade? Se chegarmos à conclusão de que o povo brasileiro é, em essência, conservador, não adianta termos uma classe de arquitetos com boa formação e bom preparo, capazes de promover inovações arquitetônicas e urbanísticas de vanguarda ou que flertem de algum modo com a ruptura, se as pessoas manifestarem preferência por uma casa típica de 70 metros quadrados, dois quartos, armários embutidos e esquadrias em alumínio; e, no plano urbanístico, se preferirem ruas organizadas em xadrez, com três pistas para carros, com uma praça central grande ao final da avenida principal, logo após um enorme obelisco. Embora não seja papel desse texto analisar o grau de conservadorismo e de repulsa à criatividade que a sociedade brasileira apresenta, vale lembrar que a esmagadora maioria dos carros vendidos no Brasil são da cor prata. Apesar de nossa vanguarda artística contemporânea ter produzido alguém com a força estética de Hélio Oiticica, parece que ao brasileiro-comprador-de-carros é preciso dizer que já inventaram a cor.

Risério fala um pouco de ambos os imperativos no capítulo ‘Vanguarda, memória e utopia’. Nesse trecho, ele cita Bruand: “Nenhuma originalidade podia ser entrevista nos numerosos edifícios recém-construídos, que não passavam de imitações, em geral medíocres, de obras de maior ou menor prestigio pertencentes a um passado recente ou longínquo, quando não eram meras cópias da moda então em voga na Europa. Ora, essa evolução só foi se acentuando durante as primeiras décadas do século XX. Os cariocas e paulistas abastados, que iam com frequência ao Velho Mundo,  admiravam, em seu contexto natural, os chalés suíços, as velhas casas normandas de estrutura de madeira aparente, as moradas rústicas da antiga França, os palácios florentinos ou venezianos, mas não compreendiam que o encanto dessas casas provinha de sua autenticidade, de sua perfeita adaptação às condições do meio e, não raro, de sua inserção num conjunto do qual não podiam ser desvinculadas.”

Nesse trecho, que sintetiza um pouco das minhas observações a respeito da pobreza arquitetônica no Brasil, Risério ataca: “De outro ângulo e de uma perspectiva ampla, a atual prática urbanística brasileira tem sido predominantemente grosseira e fragmentária (...) A publicidade não dá destaque ao apartamento, mas ao que está fora dele: a paisagem, vista do terraço, da varanda, da janela. Quando plantas são estampadas em tais anúncios, vemos de imediato a razão do ocultamento. É a mediocridade da arquitetura.”

Sobre a arquitetura de superstars, sobre os calatravismos (referência às obras do arquiteto espanhol Santiago Calatrava, neologismo cunhado por Antonio Risério na FLIP de 2015, em que tive o prazer de assisti-lo discursar), Risério postula, muito sabiamente: “A arquitetura se afasta da história, da sociologia, da antropologia – e se divorcia do urbanismo. Para celebrar um casamento monogâmico com as belas-artes. Também entre nós isto vem acontecendo. A projeção ou realização de grandes intervenções arquitetônicas pontuais alheias a uma preocupação urbanística maior. Como a ideia do Guggenheim e a Cidade da Música, no Rio. Ou, em São Paulo, os prédios da Avenida Berrini.”

Poderíamos adicionar a essa lista o prédio do Museu da Imagem e do Som, na orla de Copacabana, que ficará pronto em breve e que está em completo desalinho à estética e ao urbanismo do bairro.

É claro que é difícil analisarmos as coisas do momento presente: não temos a neutralidade e o distanciamento que só o tempo histórico é capaz de fornecer. A cidade que está vendo o  surgimento do Museu da Imagem e do Som é a mesma que acabou de derrubar a Perimetral e, na esteira dessa derrubada, vem revitalizando a Praça Mauá, num esforço que parece resgatar o casamento entre a arquitetura (dos belos e ousados MAR e Museu do Amanhã) e o urbanismo (expresso em particular no bem elaborado paisagismo da praça, a despeito da ausência de árvores) que Risério supôs perdido.

Se nesse texto, como método de exposição de ideias, opto por uma separação entre cidade objetiva e subjetiva (e também entre arquitetura e urbanismo) é importante salientar que Antonio Risério, a partir de um ponto de vista que entende essas entidades apenas como pólos de referência, escreve seu ensaio tomando como ponto de partida justamente a multiplicidade de olhares sobre a cidade. Portanto, para quem lê ‘A cidade no Brasil’, a visão que se tem das aglomerações urbanas brasileiras não é nem tão-somente a ideia da cidade construída nem tampouco, unilateralmente, suas abstrações.
Quando coloco, no início desse texto, que as cidades brasileiras existem num plano objetivo e subjetivo, e falo um pouco desses planos, faço uma abordagem correta, à altura de uma postagem de blog no tamanho de mais ou menos cinco páginas.

Todavia, o que Antonio Risério faz é abordar a cidade não a partir de cada um desses planos objetivo e subjetivo, mas a partir do espaço tridimensional produzido pelo cruzamento desses planos, se os imaginamos ortogonais.

Esse espaço denso, complexo, em que coexistem os aspectos da objetividade e da subjetividade urbana, é o espaço para o qual devemos direcionar nosso olhar se quisermos apreender o significado da cidade e do ser citadino.

Embora o livro de Antonio Risério tenha diversos aspectos que são super interessantes de serem trabalhados e discutidos (a oposição à hipótese urbana do Sergio Buarque de Hollanda, a história da cidade de Curitiba, a oposição litoral-sertão, a grelha de Belo Horizonte, a solidão amazônica, etc), creio que o mais importante dos tópicos seja justamente esse olhar inteiro para a cidade.

Que a gente seja capaz de apurar o olhar para apreendermos essa integralidade, essa inteireza. Que a gente seja capaz de direcionar nossas ações e intervenções urbanas dentro das possibilidades fragmentadas que temos, cada um de nós, mas nunca perdendo de vista que a cidade é, de uma só vez, prédio e corpo, chão e fluxo, fumaça e maré.

De saída, deixo uma música que fala um pouco sobre a cidade brasileira. Pensei em “Rios, pontes e overdrives”, do Chico Science & Nação Zumbi, mas preferi fazer uma opção menos óbvia, que acho linda e profundamente lírica e que, de certa maneira, resgata também um pouco do realismo mágico do Julio Cortázar. Com vocês, “A Fundação da Cidade”, do Grupo Rumo.