Foi proposto que lêssemos “Raízes
do Brasil”, do Sérgio Buarque de Holanda. Inicialmente, éramos para termos lido
os capítulos 4 e 5, respectivamente, “O semeador e o ladrilhador” e “O homem
cordial”. De minha parte, li o livro na sua totalidade, isto é, os sete capítulos.
Embora isso me ajude a contextualizar os assuntos sugeridos em um contexto
maior na obra do autor, pretendo me ater aos capítulos de leitura sugerida, em
especial ao primeiro.
Em primeiro lugar, é com grata
surpresa que encontro em “O semeador e o ladrilhador” a resposta para uma
pergunta que até então eu não tinha conseguido formular de maneira específica:
por que essa distância enorme entre os portos de Ilhéus e do Rio de Janeiro sem
grandes cidades na costa? Fiquei sabendo que se deve aos povos tapuias, que
habitavam parte da costa da Bahia, o litoral inteiro do Espírito Santo e parte
da costa do Estado do Rio de Janeiro. Diferentemente dos povos tupiniquins,
mais afeitos ao convívio com os brancos estrangeiros, os povos tapuias não se
aliaram aos homens brancos em praticamente nenhuma empreitada, mantendo em
relação a eles uma postura territorial e beligerante.
De certa forma, embora o
parágrafo anterior pareça desconectado do texto que virá a seguir, já nele se pode
antever uma certa conformação de Portugal, um certo ‘deixar pra lá’ ante às
dificuldades de penetração no território brasileiro.
Mas o que realmente me interessa
discutir nesse momento é a diferença entre as colonizações espanhola e
portuguesa na América Latina.
Espanhóis e portugueses são povos
ibéricos. Ser ibérico significa ser europeu, mas significa também ser
fronteiriço, ser mestiço, ser quase Norte da África, e ter sido dominado por
povos mouros durante algumas centenas de anos.
Ser ibérico iguala dois povos
vizinhos em uma nomenclatura que os diferencia dos demais. Mas em que pese esta
nomenclatura que os unifica, talvez haja entre eles mais aspectos divergentes
do que semelhantes. Similarmente, podemos dizer que ser brasileiro nos
iguala do Oiapoque ao Chuí quando nos comparamos a um colombiano ou a um
chileno. Mas as diferenças entre um gaúcho e um potiguar são, talvez, mais
numerosas e mais evidentes do que as suas semelhanças, se os tomarmos em
separado.
As diferenças da colonização
portuguesa em relação à espanhola na América Latina são várias. Nossas
primeiras cidades parecem não seguir qualquer planejamento, cedendo à
topografia local, ao passo em que as cidades espanholas seguem um planejamento
meticuloso e escrutinado; nossa primeira universidade só chega a partir da
vinda da corte para o Rio de Janeiro, em 1808 ao passo em que já no século XVI
são erigidas universidades na Cidade do México e em Lima; nossas primeiras
cidades foram costeiras e portuárias, ao passo em que as hispânicas são interiorizadas
e altiplanas; a relação dos portugueses com os habitantes das terras do Novo
Mundo foi muitas vezes mediada pela negociação e pelo aculturamento, ao passo
em que nas terras hispânicas o tom dessa relação foi a do massacre, etcétera.
Sérgio Buarque de Holanda
sustenta a tese de que Portugal operou seu processo de colonização na América
com um alto grau de ‘desleixo’, palavra que, segundo o próprio, tem em nosso
idioma uma carga vernacular tão ímpar quanto ‘saudade’.
Somos, portanto, filhos do
desleixo, filhos de Portugal.
Nossos vizinhos, por outro lado,
foram filhos da atenção. Os planos de formação das cidades não eram apenas
estabelecidos na forma de normas, como também rigorosamente cumpridos e
monitorados pela metrópole além-mar.
O ordenamento territorial não
apenas estabelecia diretrizes para o estabelecimento de portos e de praças,
como também se encarregava de criar zonas de moradia e de circulação para os
colonos, de forma que, na América hispânica, as cidades coloniais se
constituíram muito menos como espaço de troca entre os seus concidadãos, ou
entre os seus habitantes, para usar um termo mais seguro, do que na América
portuguesa (cf. ‘A cidade no Brasil’, Antonio Risério).
Parece-me que o termo
‘desleixo’ foi uma escolha muito feliz de Sérgio Buarque de Holanda. Isso
porque, se por um lado, podemos estabelecer, como pôde ser visto acima, o
binômio desleixo-atenção ou desleixo-cuidado, na oposição entre a colonização
portuguesa e a espanhola na América, por outro, é igualmente possível que se
opte por utilizar a dicotomia desleixo-austeridade.
Se por um lado, parece-nos ser
melhor a ideia de recebermos atenção à de recebermos desleixo, ou seja, a ideia
de desde muito cedo dispor de universidades, ter imprensa, ter conhecimento do
território (posto que precisam ser conhecidos os caminhos do porto à cidade) e
de ter uma cidade com ordenamento territorial e urbano, por outro lado, em
contrapartida, é certamente melhor a ideia de recebermos desleixo à de
recebermos austeridade. Nesse caso, prevalecem os benefícios, na América
portuguesa: de uma miscigenação maior entre os portugueses e os índios, num
primeiro momento e, entre os portugueses e os negros, em um momento posterior;
de um convívio maior entre as diversas etnias na cidade, que, embora não
alterasse as hierarquias da ordem social, certamente permitiu aos seus
habitantes um maior contato com a alteridade do que na América espanhola (o que
encaro como positivo); e do estabelecimento das bandeiras paulistas, que
puderam ser levadas a cabo no período seiscentista e que, embora tenham
contribuído sobremaneira para a expansão do território brasileiro em direção ao
interior, foram realizadas, se não à revelia da Corte, certamente sob vista
grossa da metrópole, mais interessada no desenvolvimento das cidades costeiras
e dos estabelecimentos rurais nas franjas do litoral.
O que se pode concluir, portanto,
é que o desleixo do qual somos fruto sempre pode ser interpretado como uma faca
de dois gumes.
Ao mesmo tempo em que esse
desleixo nos forneceu bases muito precárias para o desenvolvimento de uma
sociedade brasileira, no início de nossa colonização, entendo que tenha sido
esse mesmo desleixo, paradoxalmente, o elemento que permitiu que, de alguma
maneira, longe do controle excessivo da metrópole, pudéssemos começar a nos
autodeterminar.
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