quarta-feira, 20 de maio de 2015

Filhos do desleixo



Foi proposto que lêssemos “Raízes do Brasil”, do Sérgio Buarque de Holanda. Inicialmente, éramos para termos lido os capítulos 4 e 5, respectivamente, “O semeador e o ladrilhador” e “O homem cordial”. De minha parte, li o livro na sua totalidade, isto é, os sete capítulos. Embora isso me ajude a contextualizar os assuntos sugeridos em um contexto maior na obra do autor, pretendo me ater aos capítulos de leitura sugerida, em especial ao primeiro.

Em primeiro lugar, é com grata surpresa que encontro em “O semeador e o ladrilhador” a resposta para uma pergunta que até então eu não tinha conseguido formular de maneira específica: por que essa distância enorme entre os portos de Ilhéus e do Rio de Janeiro sem grandes cidades na costa? Fiquei sabendo que se deve aos povos tapuias, que habitavam parte da costa da Bahia, o litoral inteiro do Espírito Santo e parte da costa do Estado do Rio de Janeiro. Diferentemente dos povos tupiniquins, mais afeitos ao convívio com os brancos estrangeiros, os povos tapuias não se aliaram aos homens brancos em praticamente nenhuma empreitada, mantendo em relação a eles uma postura territorial e beligerante.

De certa forma, embora o parágrafo anterior pareça desconectado do texto que virá a seguir, já nele se pode antever uma certa conformação de Portugal, um certo ‘deixar pra lá’ ante às dificuldades de penetração no território brasileiro.

Mas o que realmente me interessa discutir nesse momento é a diferença entre as colonizações espanhola e portuguesa na América Latina.

Espanhóis e portugueses são povos ibéricos. Ser ibérico significa ser europeu, mas significa também ser fronteiriço, ser mestiço, ser quase Norte da África, e ter sido dominado por povos mouros durante algumas centenas de anos.

Ser ibérico iguala dois povos vizinhos em uma nomenclatura que os diferencia dos demais. Mas em que pese esta nomenclatura que os unifica, talvez haja entre eles mais aspectos divergentes do que semelhantes. Similarmente, podemos dizer que ser brasileiro nos iguala do Oiapoque ao Chuí quando nos comparamos a um colombiano ou a um chileno. Mas as diferenças entre um gaúcho e um potiguar são, talvez, mais numerosas e mais evidentes do que as suas semelhanças, se os tomarmos em separado.

As diferenças da colonização portuguesa em relação à espanhola na América Latina são várias. Nossas primeiras cidades parecem não seguir qualquer planejamento, cedendo à topografia local, ao passo em que as cidades espanholas seguem um planejamento meticuloso e escrutinado; nossa primeira universidade só chega a partir da vinda da corte para o Rio de Janeiro, em 1808 ao passo em que já no século XVI são erigidas universidades na Cidade do México e em Lima; nossas primeiras cidades foram costeiras e portuárias, ao passo em que as hispânicas são interiorizadas e altiplanas; a relação dos portugueses com os habitantes das terras do Novo Mundo foi muitas vezes mediada pela negociação e pelo aculturamento, ao passo em que nas terras hispânicas o tom dessa relação foi a do massacre, etcétera.

Sérgio Buarque de Holanda sustenta a tese de que Portugal operou seu processo de colonização na América com um alto grau de ‘desleixo’, palavra que, segundo o próprio, tem em nosso idioma uma carga vernacular tão ímpar quanto ‘saudade’.

Somos, portanto, filhos do desleixo, filhos de Portugal.

Nossos vizinhos, por outro lado, foram filhos da atenção. Os planos de formação das cidades não eram apenas estabelecidos na forma de normas, como também rigorosamente cumpridos e monitorados pela metrópole além-mar.

O ordenamento territorial não apenas estabelecia diretrizes para o estabelecimento de portos e de praças, como também se encarregava de criar zonas de moradia e de circulação para os colonos, de forma que, na América hispânica, as cidades coloniais se constituíram muito menos como espaço de troca entre os seus concidadãos, ou entre os seus habitantes, para usar um termo mais seguro, do que na América portuguesa (cf. ‘A cidade no Brasil’, Antonio Risério).

Parece-me que o termo ‘desleixo’ foi uma escolha muito feliz de Sérgio Buarque de Holanda. Isso porque, se por um lado, podemos estabelecer, como pôde ser visto acima, o binômio desleixo-atenção ou desleixo-cuidado, na oposição entre a colonização portuguesa e a espanhola na América, por outro, é igualmente possível que se opte por utilizar a dicotomia desleixo-austeridade.

Se por um lado, parece-nos ser melhor a ideia de recebermos atenção à de recebermos desleixo, ou seja, a ideia de desde muito cedo dispor de universidades, ter imprensa, ter conhecimento do território (posto que precisam ser conhecidos os caminhos do porto à cidade) e de ter uma cidade com ordenamento territorial e urbano, por outro lado, em contrapartida, é certamente melhor a ideia de recebermos desleixo à de recebermos austeridade. Nesse caso, prevalecem os benefícios, na América portuguesa: de uma miscigenação maior entre os portugueses e os índios, num primeiro momento e, entre os portugueses e os negros, em um momento posterior; de um convívio maior entre as diversas etnias na cidade, que, embora não alterasse as hierarquias da ordem social, certamente permitiu aos seus habitantes um maior contato com a alteridade do que na América espanhola (o que encaro como positivo); e do estabelecimento das bandeiras paulistas, que puderam ser levadas a cabo no período seiscentista e que, embora tenham contribuído sobremaneira para a expansão do território brasileiro em direção ao interior, foram realizadas, se não à revelia da Corte, certamente sob vista grossa da metrópole, mais interessada no desenvolvimento das cidades costeiras e dos estabelecimentos rurais nas franjas do litoral.

O que se pode concluir, portanto, é que o desleixo do qual somos fruto sempre pode ser interpretado como uma faca de dois gumes.

Ao mesmo tempo em que esse desleixo nos forneceu bases muito precárias para o desenvolvimento de uma sociedade brasileira, no início de nossa colonização, entendo que tenha sido esse mesmo desleixo, paradoxalmente, o elemento que permitiu que, de alguma maneira, longe do controle excessivo da metrópole, pudéssemos começar a nos autodeterminar.

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